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La chienne

Na Paris da década de 1930, Maurice Legrand (Michel Simon) é um balconista que uma noite, a caminho de casa, encontra o chulo Dédé (Georges Flamant) a bater na sua prostituta Lulu (Janie Marèse). Julgando salvá-la, Maurice leva Lulu a casa, e passa a ter uma relação com ela às escondidas da mulher (Magdeleine Bérubet), acreditando que aquela o ama, e dando-lhe todo dinheiro que pode, não sabendo (ou preferindo não saber) que tudo o que lhe dá, Lulu dá ao amante, gigolo e gastador Dédé, por quem está apaixonada, por mais que ele a maltrate.

Análise:

Segundo filme sonoro de Jean Renoir – depois de “On purge bébé”, do mesmo ano –, “La Chienne” (literalmente “A Cadela”), é uma adaptação do romance homónimo de Georges de la Fouchardière, um escritor e jornalista conhecido por romances de pendor realista, pejados de humor e sátira social. É um dos filmes inaugurais daquilo que veio a ficar conhecido por Realismo Poético, um conjunto de filmes franceses dos anos 30 do século XX, geralmente baseados em obras literárias do realismo francês, dedicadas às condições sociais das classes mais baixas, mas olhadas com um certo romantismo poético.

Descrito logo no prólogo (o qual é contado por “robertos” de feira) como sendo uma história, não de heróis nem de vilões, mas de pessoas normais, “La Chienne” apresenta-nos depois o que descreve como personagens que todos conhecemos: Ele, Ela e o Outro. “Ele” é Maurice Legrand (Michel Simon), um empregado de balcão, pintor nos tempos livres, cuja esposa Adèle (Magdeleine Bérubet) trata com desprezo e antipatia, comparando-o depreciativamente ao seu primeiro marido, um sargento que morreu na guerra. “Ela” é Lulu (Janie Marèse), uma mulher facilmente manipulável, inocente à sua maneira, que vive para as migalhas da atenção do “Outro”, Dedé (Georges Flamant), um gigolo, que a trata com desprezo e superioridade, que está constantemente endividado pelo jogo e hábitos caros, e que não hesita oferecer Lulu a qualquer homem que lhe dê algum dinheiro. O encontro dos três elementos dá-se quando, regressando a casa à noite, Maurice vê Dédé, embriagado, a bater em Lulu. Maurice acaba por separá-los, e levá-los às respectivas casas e, pelo caminho, enamora-se da bela Lulu, que passa a ver como uma distracção à megera que em casa não hesita em lhe bater. A partir daí, Maurice usa todo o dinheiro que consegue para montar casa a Lulu, dar-lhe utensílios e roupas, e uma mesada, decorando a casa com os seus quadros, que a mulher quer deitar fora. Com Dédé a aproveitar-se de todo o dinheiro que Lulu recebe, e esta feliz por ver o seu homem satisfeito, tudo parece estar bem, mais ainda quando Dédé começa a vender os quadros de Maurice como sendo de uma inventada pintora chamada Clara Wolf.

Entretanto Maurice conhece o supostamente falecido primeiro marido de Adèle (Reger Gaillard), o qual confessa que fingiu a morte para se escapar dela. Mas agora, vivendo como mendigo, quer dinheiro. Maurice convence-o a assaltar a sua casa, para levar o dinheiro de Adèle, mas tal não passa de um truque para o apanhar em casa e confrontar Adèle, escapando-se-lhe ele. Só que, ao procurar Lulu, encontra-a na cama com Dédé, saindo destroçado, com esta a rir-se dele. Obviamente, Dédé fica desgostado com a atitude de Lulu, pois não queria hostilizar Maurice, com medo que os quadros párem de surgir. Entretanto, despedido por se descobrir que retirara dinheiro do escritório para si, Maurice volta a Lulu, mas esta continua a rir-se dele, e perdendo a cabeça, Maurice mata-a. Mais tarde, Dédé volta e encontra Lulu morta, sendo visto pelos vizinhos que o tomam pelo assassino. O tribunal condena Dédé, e Maurice sai inocentado. Tempos depois vemos Maurice como um vagabundo e pedinte, que encontra casualmente o sargento, também um pedinte, confraternizando juntos, enquanto vêem um antigo quadro de Maurice ser vendido por alto preço.

Descrevendo-se perfeitamente no seu enredo, o filme de Renoir olha para as classes baixas, (uma prostituta, um proxeneta e um cliente) ridicularizando-os a todos, mostrando-os como mesquinhos, fracos, incapazes de se superarem, mesmo que Lulu possa mostrar bom coração (com Dédé, principalmente) ou Maurice a sensibilidade de um pintor. Mas é sempre a mesquinhez, a cobiça e a luxúria que movimentam as personagens, presos a vidas negras, rodeados de pessoas que habitualmente os tratam mal, ou no mínimo com desprezo.

O filme é, por isso, uma história universal, do homem que se apaixona pela mulher errada, e, cego a tudo o resto, permite que isso seja a sua perdição. Graças a um enredo sempre vivo, e prestações coloridas e imprevisíveis dos protagonistas, “La Chienne” consegue ser sempre surpreendente. Embora ainda estivesse a aprender a trabalhar o som – e isso nota-se por todo o filme – Renoir sente-se já à vontade para mexer a sua câmara ao longo do cenário com fluidez – veja-se o travelling inicial na mesa dos colegas de Maurice –, seja ao guiar-nos pelas ruas, seja ao dar-nos um interior de diferentes ângulos. As suas composições são sempre cativantes, não hesitando em trabalhar a luz e sombra, bebendo nas lições do expressionismo alemão – note-se o cenário angular da casa do crítico Waldstein.

Com a vida a imitar a arte, Michel Simon (Maurice) apaixonou-se mesmo por Janie Marèse (Lulu), a qual, por sua vez, preferia Georges Flamant (Dédé), aqui na sua primeira experiência de actor. Foi numa escapada de carro dos dois que Flamant, que mal conduzia, se acidentou, resultando na morte de Marèse, que teve, por isso, em “La Chienne” o seu último filme.

O mesmo livro de Georges de la Fouchardière daria, mais tarde, origem a “Almas Perversas” (Scarlet Street, 1945), realizado por Fritz Lang.

Michel Simon em "La chienne" (1931), de Jean Renoir

Produção:

Título original: La chienne [Título inglês informal: The Bitch/ Isn’t Life a Bitch?]; Produção: Les Établissements Braunberger-Richebé; Produtores Executivos: ; País: França; Ano: 1931; Duração: 96 minutos; Distribuição: Les Établissements Braunberger-Richebé (França); Estreia: 20 de Novembro de 1931 (França), 5 de Novembro de 2009 (Cinemateca Portuguesa, Portugal).

Equipa técnica:

Realização: Jean Renoir; Produção: Pierre Braunberger, Roger Richebé, Jean Renoir [não creditado]; Argumento: Jean Renoir [a partir do livro homónimo de Georges de la Fouchardière]; Fotografia: Theodor Sparkuhl [preto e branco]; Montagem: Denise Batcheff [como Denise Tual] (versão original), Pál Fejös (versão original), Jean Renoir [não creditado], Marguerite Renoir [não creditada]; Direcção Artística: Marcel Courmes; Cenários: Gabriel Scognamillo; Direcção de Produção: Charles David.

Elenco:

Michel Simon (Maurice Legrand), Janie Marèse (Lucienne ‘Lulu’ Pelletier), Georges Flamant (André ‘Dédé’ Jauguin), Roger Gaillard (Ajudante Alexis Godard), Romain Bouquet (Henriot, Patrão de Maurice), Pierre Desty (Gustave Brocheton), Mlle Doryans (Yvonne), Lucien Mancini (Wallstein), Jane Pierson (Philomène, A Senhoria), Christian Argentin (O Juiz de Instrução), Max Dalban (Bernard, Colega de Maurice), Jean Gehret (Senhor Dugodet), Magdeleine Bérubet (Adèle Legrand).