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Introdução
Em 1951, o filme japonês “Às Portas do Inferno” (Rashomon, 1950) de Akira Kurosawa foi galardoado com o Leão de Ouro no Festival Internacional de Veneza. Pela primeira vez a Europa olhava com interesse para a cinematografia do país do sol nascente. Com alguns filmes a tornarem-se conhecidos no Ocidente, principalmente as melhores obras de Akira Kurosawa, Yasujirō Ozu e Kenji Mizoguchi, o cinema japonês dos anos 50 e 60 atingiu uma popularidade inédita no estrangeiro, enquanto a nível nacional produzia-se como nunca, e os filmes nacionais batiam os americanos nas bilheteiras.
Pretende-se neste ciclo explorar um pouco do cinema desse período que ficou conhecido como era dourada do cinema japonês.
Nota: Longe de se apresentar uma lista exaustiva do cinema japonês da época em questão, opta-se por apresentar alguns dos filmes mais representativos dos realizadores mais conceituados do período, com especial incidência na chamada Santíssima Trindade: Kurosawa, Ozu e Mizoguchi.
Os primórdios do cinema japonês
Existem no Japão indícios de interesse pelo cinema desde o final do século XIX, com o primeiro filme conhecido a ser produzido em 1897, os primeiros estúdios a surgirem em 1904, e a primeira produtora a ser fundada em em 1912. Previligiava-se o entretenimento, com os estúdios de Tóquio a especializarem-se nos filmes gendai-geki (a vida tal como é), e os de Quioto a especializarem-se em filmes jidai-geki (filmes de época, geralmente do período Edo). Havia então uma enorme dependência do teatro tradicional japonês, o kabuki (drama histórico medieval do período Yedo, estilizado e de caracterização e actuação exageradas) ou shimpa (drama contemporâneo).
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Japão abriu-se ao Ocidente, e foi invadido pelo cinema americano, que veio influenciar temas e meios de produção no cinema japonês. O grande terramoto de 1923 viria a trazer um hiato à produção cinematográfica japonesa, relançada nos anos seguintes. Nascia um cinema japonês forte, e de clara inspiração ocidental, que valorizava os filmes históricos.
A partir de 1937, com o início da guerra sino-japonesa, e em particular depois do bombardeamento de Pearl Harbor em 1941, o cinema japonês passa a estar ao serviço da propaganda, e praticamente toda a produção que não tenha esse intuito cessa.
O pós-guerra
Finda a II Guerra Mundial, após os bombardeamentos de Hiroxima e Nagasaqui, o Japão ficou destroçado, quer a nível de infraestruturas, quer psicologicamente. Seguiu-se o controlo dos Aliados, que vêem no cinema um modo de reeducar o país, vigiando a produção através de um gabinete de censura que impeça qualquer conteúdo militarista.
Só aos poucos a produção japonesa vai libertar-se dessas amarras, com o crescimento económico a permitir a reconstrução de grandes estúdios Toho, Shochiku, Daiei, etc.
1951 é o ano do reconhecimento internacional, quando Akira Kurosawa é premiado em Veneza pelo seu filme “Às Portas do Inferno” (Rashômon, 1950), o filme que se diz, veio a originar o a categoria de Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Dois anos depois Teinosuke Kinugasa filmava “Amores de Samurai” (Jigokumon, 1953), o primeiro filme a cores do Japão a ter estreia internacional, e que receberia dois Oscars em 1954. A produção crescia consideravelmente, com os números a manterem-se acima das 3 centenas de filmes anuais nos anos seguintes. O cinema nacional batia pela primeira vez o americano, nas salas japonesas.
A produção tornava-se também mais variada, com o filme histórico e o de contexto social a serem os géneros mais apreciados. Surgem filmes controversos e provocadores, de tendência neo-realista, como “A Mãe” (Okasan) de Mikio Naruse e “Os Filhos de Hiroshima” (Genbaku no ko) de Kaneto Shindo, ambos de 1952, ano em que terminava a ocupação aliada.
O cinema japonês aprendia com o americano em termos técnicos, mas sugeria soluções diferentes. Os filmes procuram retratar a vida quotidiana japonesa, situando-se nas grandes cidades, e questionando o papel da nova sociedade japonesa, e lançando um olhar sobre a questão nuclear, então tão presente. Os temas modernizam-se com a democracia e a emancipação feminina a ganharem relevo. Mesmo no caso dos dramas históricos e filmes de época, a ênfase está sempre nos valores sociais e morais como alegorias para a sociedade contemporânea.
Presentes, que por contraste, quer como referência, estavam ainda os temas tradicionais, o sistema feudal, a honra samurai, o papel das gueishas, a rígida estrutura familiar, os casamentos arranjados, a importância do filho primogénito, o teatro Nô, a poesia dos haiku, a ritual cerimónia do chá.
A geração da Era Dourada
A este novo cinema, que floresceu na década de 1950, dá-se vulgarmente o nome de Era Dourada do cinema japonês. São três os realizadores que mais se distinguem neste período: Kenji Mizoguchi, Yasujirō Ozu e Akira Kurosawa.
Kenji Mizoguchi (1898–1956) iniciou-se no cinema ainda no período mudo, primeiro como actor, em 1920, e três anos depois estreou-se como realizador. Inicialmente dedicado a filmes de samurais ou melodramas domésticos, Mizoguchi assinou mais de 50 filmes entre 1920 e 1930. Foi um período de aprendizagem que o ajudaria a definir a sua voz de autor, que surgiu amadurecida nos anos 50, famosa pelos longos planos-sequência, pelo evitar dos grandes planos, quase num pudor pelo excessivo dramatismo, e pelo olhar poético com que tratava os seus heróis atormentados, com um especial olhar sobre as mulheres, sempre figuras centrais na sua obra.
O reconhecimento internacional chegaria em 1952 com o Leão de Prata do Festival Internacional de Veneza, para o seu filme “A Vida de O’Haru” (Saikaku ichidai onna), onde mostra a queda de uma mulher numa sociedade de discriminação sexual. A sua obra, no período aqui apresentado, inclui filmes muito apreciados pelo mundo inteiro, como “Contos da Lua Vaga” (Ugetsu monogatari, 1953), “Festa em Gion” (Gion bayashi, 1953), “O Intendente” (Sansho Sanshô dayû, 1954) e “Os Amantes Crucificados” (Chikamatsu monogatari, 1954). Não havia tempo para mais, pois Mizoguchi morreria em 1956.
Yasujirō Ozu (1903–1963) estreou-se na realização em 1927, sendo já assistente de realização há quatro anos. Ozu realizou então comédias, histórias românticas e documentários, até ser mobilizado para a guerra. Foi após esta que o seu estilo próprio emergiu com a sua primeira grande obra-prima: “Primavera Tardia” (Banshun, 1949).
Com este filme Ozu, de quem já se disse que filmava como um haiku, definia o seu estilo, feito de planos fixos, ângulos baixos, e um modo espartano de narrar, incidindo nos acontecimentos do dia a dia, e deixando de lado os grande momentos dramáticos. Os seus temas eram quotidiano familiar, a transformação da sociedade, e o papel das mulheres no Japão moderno. A sua visão era tradicionalista, sendo por muitos considerado o mais japonês dos realizadores do seu tempo.
Seguiu-se uma obra extremamente consistente, com filmes muito influentes, como “Early Summer (Bakushû, 1951), “Viagem a Tóquio” (Tôkyô monogatari, 1953), “Primavera Precoce” (Sôshun, 1956), “A Flor do Equinócio” (Higanbana, 1958), “Floating Weeds” (Ukikusa, 1959), “The End of Summer” (Kohayagawa-ke no aki, 1961), “O Gosto do Saké” (Sanma no aji, 1962), este último no ano que precedeu a sua morte.
Akira Kurosawa (1910–1993) é sem dúvida o mais internacional dos realizadores japoneses, e o mais conhecido em todo o mundo. Estreando-se na realização em 1943, Kurosawa cedo mostrou propensão para o drama histórico de características épicas. Já com o seu actor fetiche, Toshiro Mifune (com quem faria quinze filmes), Kurosawa surpreendeu o mundo ao ganhar o Leão de Ouro do Festival Internacional de Veneza com “Às Portas do Inferno” (Rashômon, 1950), um filme que através das narrativas de diversos personagens nos faz questionar o papel da verdade, da perspectiva e intenções humanas. O filme receberia um Oscar especial da Academia de Hollywood, que resultaria na criação da categoria de Oscar para Melhor Filme Estrangeiro.
A partir de então, Kurosawa entrou numa fase gloriosa com obras-primas como “Viver” (Ikiru, 1952), “Os Sete Samurais” (Shichinin no samurai, 1954), “Trono de Sangue” (Kumonosu-jô, 1957), “A Fortaleza Escondida” (Kakushi-toride no san-akunin, 1958) e “Yojimbo, o Invencível” (Yôjinbô, 1961). Neles, Kurosawa usava o passado para elaboradas parábolas sobre a sociedade do seu tempo, com inspiração que podia ir do teatro de Shakespeare ao cinema de John Ford. Os seus heróis são dramáticos, cheios de falhas, mas prontos a desafiar a ordem estabelecida para lá das consequências, quase numa antítese da mensagem naturalista e tradicionalista de Ozu
Esse ecletismo e mensagem universal valeu a Kurosawa a admiração de uma nova realização de realizadores americanos, desde John Sturges com o seu “Os Sete Magníficos” (The Magnificent Seven, 1960), um remake de “Os Sete Samurais”, até George Lucas e Steven Spielberg, que apontavam Kurosawa como o maior inspirador dos seus épicos. Akira Kurosawa prosseguiria a carreira, com mais filmes admirados por todos na década de 70 e 80. Morreria em 1998.
Para além destes três realizadores, outros autores se destacaram neste período. É o caso de Hiroshi Inagaki (1905–1980), Keisuke Kinoshita (1912–1998), Kon Ichikawa (1915–2008), Masaki Kobayashi (1916–1996) e Yasuzō Masumura (1924–1986) entre outros.
Os temas e géneros diversificavam-se, com o drama a predominar, mas também a comédia. A mulher desempenhava um papel central neste cinema, e apareciam as primeiras divas. As histórias ganhavam variações, e da noiva ou esposa passava-se à mãe, à empregada de um escritório, etc. Também os musicais foram reaparecendo, bem como os filmes de acção e de heróis galantes. Finalmente surgia a ficção científica e a fantasia, em particular depois dos estúdios terem popularizado a série Godzilla, a partir de 1954.
A geração seguinte
Nos anos 60 e 70 assistiu-se ao advento de uma nova geração de realizadores (alguns dos quais haviam sido assistentes do realizadores da era dourada), que é influenciada por novas linguagens cinematográficas. Esta geração, conhecida como Nova Vaga do Cinema Japonês, incluía realizadores como Nagisa Oshima, Shohei Imamura, Masahiro Shindona e Seijun Suzuki. Os seus filmes eram um quebrar da tradição, abordando temas modernos, tratados de modo provocante e até chocante, exploravam temas como o sexo, a criminalidade, o papel das minorias, os anti-heróis. Na sua linguagem usavam o surrealismo, e formas narrativas menos convencionais.
Embora coexistindo com os mais jovens representantes da geração da era dourada (Kurosawa, por exemplo filmou até 1993), estes novos realizadores vieram transformar consideravelmente o cinema japonês.
Bibliografia consultada
- RICHIE, Donald – Japanese Cinema, Film Style And National Character. New York: Anchor Books, 1971.
- Vários Autores – Akira Kurosawa: As Folhas da Cinemateca. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2001.
- Vários Autores – Kenji Mizoguchi: As Folhas da Cinemateca. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2005.
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Que foi feito dos filmes japoneses, anos 60 e 70, da Toho Films, especialmente os inesquecíveis “O Homem do Horizonte” e “Enamorados da Musica”?
Daria tudo para revê-los!