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Introdução
Aquilo que ficou conhecido como a nova vaga do cinema francês foi o resultado de uma atitude mais ou menos consciente e concertada de uma série de novos cineastas, no sentido de mudar alguma coisa no cinema do seu tempo. O resultado foi um grande número de filmes que surgiu a partir de 1958, dominando o cinema francês durante cerca de uma década, dando a conhecer novas linguagens cinematográficas que colocariam estes filmes e realizadores entre os mais citados e respeitados das décadas seguintes.
Pretende-se com este ciclo exemplificar a obra de alguns dos mais conceituados realizadores da Nouvelle Vague francesa, nas suas várias vertentes e linguagens.
Nota: O ciclo será composto por filmes estreados entre 1958 e 1968, procurando-se representar um diverso número de realizadores.
Os Cahiers du Cinema
Antes de mais, é importante perceber o que esta geração tinha em comum. Era a primeira geração de realizadores europeus que tinha sido formada, não trabalhando na indústria cinematográfica, mas sim vendo filmes. Eram estudantes, cinéfilos frequentadores da Cinemateca Francesa (criada graças à iniciativa de Henri Langlois), e mais tarde teóricos e críticos de cinema.
Este movimento consciente surge principalmente após o aparecimento da revista de crítica cinematográfica «Cahiers du Cinema», fundada em 1951 por André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze e Joseph-Marie Lo Duca. A revista dedicou-se a desmontar as verdades estabelecidas sobre o cinema francês e mundial reexaminando-o à luz de novos conceitos. Daí surgiram, como resultados mais polémicos, e contrastantes, o ataque ao que se chamava «La qualité française», ou seja o cinema conformista que se ia praticando em França; e o elogio da chamada «teoria de autor» na qual se recuperavam nomes do cinema americano (Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Nicholas Ray, Fritz Lang, Max Ophüls) e francês (Jean Renoir, Jean Cocteau) entre outras cinematografias (Roberto Rossellini, Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa), como autores de voz própria e um percurso coerente, cujo produto poderia ser reconhecido como reflectindo a sua visão criativa.
Defendiam os críticos dos «Cahiers du Cinema» que o realizador devia ser o responsável máximo pelo filme (muitas vezes sendo ele próprio produtor e argumentista), deixando-lhe a sua marca pessoal, e tendo liberdade para decidir acima das opções das produtoras e linhas directrizes da indústria cinematográfica.
Na revista escreviam críticos que acabaram por realizar filmes. À cabeça estavam François Truffaut e Jean-Luc Godard, mas também Claude Chabrol, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Jacques Doniol-Valcroze (estes três últimos com algumas curtas-metragens anteriores à revista). Todos eles estreariam as suas primeiras longas-metragens durante o período em que escreviam para a revista.
A Rive Gauche e os outros autores
Ao mesmo tempo surgia um segundo grupo que ficou conhecido como «Rive Gauche», ou «Left Bank», constituído por cineastas que costumavam frequentar os locais da vida boémia da margem esquerda do Sena. Estes tinham um maior empenho político e interesse por temas sociais. Sem serem críticos de cinema, como os realizadores dos «Cahiers do Cinema», estavam mais próximos do chamado «nouveau roman», um movimento literário de novos autores, alguns dos quais (por exemplo Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet) acabariam por trabalhar também no cinema. Entre estes realizadores estavam Chris Marker, Alain Resnais, Agnès Varda, Jacques Demy e Henri Colpi.
Notáveis excepções são alguns homens do cinema que, embora já com carreira iniciada, viram na Nouvelle Vague um novo fôlego e oportunidade para testarem novas ideias. Foi o caso de Louis Malle, anteriormente assistente de Robert Bresson e operador de câmara de Jacques-Yves Costeau; Georges Franju, co-fundador com Henri Langlois da Cinemateca Francesa (1936), mas que só em 1959 realizou a sua primeira longa-metragem de ficção; Alexandre Astruc, já conceituado, mas que com a teoria da «caméra-stylo» (a ideia de transportar a câmara como uma esferográfica, isto é de modo ligeiro sem grande preparação) se integrou no movimento; e Jean-Pierre Melville, um seguidor do Film Noir, que exerceu enorme influência nos jovens cineastas, sendo muitas vezes apelidado de o Padrinho da Nouvelle Vague.
Por fim há acrescentar alguns realizadores menores, que surgiram independentemente destes núcleos, mas inspirados pela estética da Nouvelle Vague, como Alain Jessua, René Allio, Claude Lelouch, Jean Eustache, Jean Rouch, Jacques Rozier, etc.
A Nouvelle Vague
Surgindo como um cinema marginal, alternativo, os realizadores da Nouvelle Vague muitas vezes co-financiavam os seus próprios projectos, em pequenas produções independentes, nas quais se ajudavam entre si.
O seu cinema era vivido com paixão, num constante trazer de novas ideias de renovação do cinema, e de discussão intelectual sem fronteiras. Tentavam subverter as fórmulas antigas, retirando a primazia à narrativa clássica, afrontando a montagem, desrespeitando o raccord (modo de ligar os planos na sala de montagem de modo a resultar uma acção fluída, sem saltos ou buracos). Devido à sua falta de meios, usavam câmaras leves, facilmente transportadas ao ombro, improvisavam travellings com cadeiras de rodas, filmavam exteriores com câmaras escondidas e sem autorização, usavam planos e diálogos improvisados, e não se preocupavam em chocar a audiência com inovadoras formas de contar histórias, criando novas linguagens como a freeze-frame de Truffaut (imagem parada) ou o jumpcut de Godard (montagem cheia de cortes súbitos).
Quanto à temática, era geralmente urbana, reflectindo as preocupações dos seus autores. Em foco estavam discussões filosóficas, o existencialismo, a vida boémia de Paris, e os conflitos psicológicos pessoais. Estes eram mostrados com maior ou menor preocupação narrativa, usando métodos que podiam ir do quase surrealismo (Malle, Resnais) à narrativa mais clássica com inspiração no Film Noir (Melville) ou no musical americano (Demy), por vezes abordando directamente questões sociais (Rohmer).
Embora diferentes entre si, os diversos realizadores que deram origem à Nouvelle Vague tinham em comum essa necessidade de ruptura e reinvenção. O resultado foi um imediato reconhecimento internacional com vários destes filmes a receberem prémios.
Considera-se habitualmente “Um Vinho Difícil” (Le beau Serge 1958), de Claude Chabrol, como a obra que deu início à Nouvelle Vague. Os primeiros êxitos além-fronteiras a seriam “Os Quatrocentos Golpes” (Les Quatre cents coups, 1959) de François Truffaut e “Acossado” (À bout de soufflé, 1960) de Jean-Luc Godard. A partir de então o mundo, sobretudo a Europa colocou os olhos no que se fazia em França, o que viria a influenciar muitas outras cinematografias.
A influência da Nouvelle Vague
Sendo ela próprios devedores de um cinema menos convencional, como o do Neo-realismo Italiano, principalmente na obra de Roberto Rossellini, e o «Free Cinema» inglês, os realizadores da Nouvelle Vague provocaram uma serena revolução internacional, mostrando ao mundo como era possível desenvolver novas linguagens, trabalhando num baixo custo, e usando temáticas ainda por explorar no cinema.
Em quase todas as cinematografias essa atitude provocou o aparecimento, nas décadas de 1960 e 1970, de novas correntes quase sempre apelidadas de «nova vaga». Citem-se a título de exemplo o «Novo Cinema Português», que a partir de 1963 nos trouxe obras de Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo, entre tantos novos cineastas, e o «Novo Cinema Brasileiro» iniciado com Glauber Rocha e Nélson Pereira dos Santos. Na Europa talvez o exemplo mais famoso seja a nova vaga do cinema checo, de onde saíram Jan Němec, Miloš Forman, Vera Chytilová e Ivan Passer. Fora da Europa, destaca-se a nova vaga do cinema japonês, Nagisa Oshima, Shohei Imamura, Toshio Matsumoto, etc. E a influência francesa chegaria mesmo a Hollywood, com a chamada «New Wave of Hollywood» dando ao mundo as obras de uma geração que incluía Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Sydney Pollack, Robert Altman, Peter Bogdanovich, entre muitos outros.
Bibliografia
- BRODY, Richard – Everything is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard. New York, NY, Metropolitan Books, 2008.
- DE ANDRADE, José Navarro – Alain Resnais. Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1992.
- MARIE, Michel – French New Wave: An Artistic School. New York, John Wiley & Sons, 2002.
- NEUPERT, Richard – A History of the French New Wave Cinema (Wisconsin Studies in Film). Milwaukee, WI, University of Wisconsin Press, 2007.
- OLIVEIRA, Luís Miguel (org.) – Nouvelle Vague. Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1999.
- OLIVEIRA, Luís Miguel (org.) – Jean-Luc Godard 1985-1999. Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1999.
- OLIVEIRA, Luís Miguel (org.) – Jacques Rivette. O segredo por trás do segredo. Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 2008.
- RODRIGUES, António (org.) – François Truffaut. A vida era o ecran. Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 2005.
- RODRIGUES, António (org.) – Jacques Demy. As folhas da cinemateca. Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 2009.
- VINCENDEAU Ginette (ed.), GRAHAM Peter (ed.) – The French New Wave: Critical Landmarks. London, British Film Institute, 2009.