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Introdução
Todos nós temos (seja qual for o nosso conhecimento do tema) a noção de que na Escandinávia nasceu uma cinematografia que iria influenciar o cinema mundial. Se hoje o nome de Ignmar Bergman é sinónimo de um monstro sagrado, foi antes dele, no período mudo, que surgiram os primeiros filmes dignos de nota, e a primeira escola europeia de renome internacional. Realizadores como Stiller, Sjöström, Christensen e Dreyer ficariam como marcos de um cinema diferente, de temas ousados, uso da paisagem de forma inovadora, técnicas de filmar diferentes, e um apurado uso da luz, que serviria de referência ao cinema que se seguiria.
É esse período que se pretente homenagear neste ciclo que passará por obras famosas, e outras menos conhecidas, de alguns dos realizadores mais importantes saídos dos países escandinavos no tempo do cinema mudo.
Nota: Por uma questão de escolha, apenas serão focados filmes produzidos na Europa, já que alguns dos realizadores aqui destacados filmaram fora do seu país. Os filmes americanos destes realizadores ficarão reservados para outro ciclo, uma vez que revelam já um confronto com a mentalidade forte do cinema de Hollywood.
A descoberta do cinema pela Escandinávia
Durante alguns anos, principalmente após 1910, os países escandinavos representaram (apesar da sua fraca expressão demográfica, e papel periférico na política e economia europeias), um enorme protagonismo no cinema mundial, quer a nível artístico quer como indústria. Beneficiaram, em primeiro lugar, do seu não envolvimento na Primeira Guerra Mundial, que viria a atrasar as indústrias alemã, francesa e italiana, e desenvolveram laços privilegiados com outros países, como o caso do cinema dinamarquês, fortemente distribuído na Alemanha e na Rússia czarista, e do sueco, com entrada no mercado norte-americano. A natural afinidade entre os países escandinavos alargava o seu mercado, promovendo ainda uma muito frutuosa rede de cooperação de autores e técnicos.
Reza a história que a primeira projecção de cinema num país escandinavo foi em 6 de Abril de 1896, no Varieté Club, em Oslo, capital de uma Noruega que até 1905 estaria unificada com a Suécia. Durante Junho do mesmo ano também Copenhaga, Helsínquia e Malmö veriam cinema, com projecções de filmes dos Lumière ou de Edison. Os primeiros cinemas permanentes na Escandinávia surgiriam quase uma década depois, marcando o nascimento da nova indústria.
Destacam-se principalmente as fases dinamarquesa (1910-13) e sueca (1917-23), que levaram ao surgimento de produtoras de grandeza internacional, e de realizadores de renome, que ainda hoje são venerados como marcantes.
Dinamarca
O primeiro filme dinamarquês de ficção data de 1903, e intitula-se “Henrettelsen”, do realizador Peter Elfet. Um ano depois, a 17 Setembro, surgia a primeira sala de cinema permanente, aberta por Constantin Philipsen. Mas o passo mais importante para o arranque da cinematografia do país foi a fundação, em 1906, da produtora a Nordisk Film Kompagni, por Ole Olsen, um antigo feirante, a qual seria, por volta de 1910, a segunda maior do mundo, apenas atrás da francesa Pathé Frères. Olsen aposta em dramas históricos e mundanos, e até 1910 produziria cerca de 250 filmes, muitos deles realizados por Viggo Larsen e Holger Madsen. O sucesso da Nordisk inspiraria o aparecimento de mais produtoras, como a Biorama (1909), a Fatorama (1909) e a Kinografen (1910).
Data ainda de 1910 o filme marcante “The White Slave Trade” (Den hvide slavehandel) de August Blom para a Nordisk, o qual aborda o tema difícil da prostituição, e inaugura um conjunto de filmes de cariz sensacionalista, nos quais Blom se tornaria mestre, como exemplificado na sua obra maior “Atlantis” de 1913. Ao mesmo tempo que Blom e Urban Gad experimentavam com a técnica (iluminação, silhuetas, contraluz, jogos de espelhos), os filmes criminais da série “Dr. Gar el Hama” inspirariam a série francesa “Fantômas”, enquanto o humor burlesco tornava conhecido Lau Lauritzen.
Estes ensinamentos, quer técnicos, quer narrativos, resultariam nos filmes com tanto de experimentalista como de emocional, de Benjamin Christensen na entretanto surgida Dansk Biograf Compagni, “O X Misterioso” (Det Hemmelighedsfulde X, 1914) e “Noite de Vingança” (Hævnens Nat, 1916), marcos na evolução da técnica fotográfica e dramática. O cinema dinamarquês não era tão naturalista como o americano (desconhecia o travelling, os flashbacks, e os close-ups), mas foi influente na passagem da curta para a longa-metragem, com produções elaboradas, uso de actores clássicos, e diminuição do número de intertítulos. Foi ainda influente quer para o cinema sueco que então surgia, como no estabelecer do Expressionismo Alemão.
Surgia, então na Nordisk, Carl Theodor Dreyer, um poeta da imagem, que faria uma síntese entre as luzes nórdicas e o expressionismo alemão, produzindo peças de um lirismo estonteante, na aposta da dramatização do close-up. Dreyer realizaria alguns filmes formativos na Dinamarca, que o mostravam como grande nome do cinema dinamarquês, como “O Presidente” (Præsidenten 1919) e “Páginas do Livro de Satanás” (Blade af Satans bog, 1919).
Mas a Primeira Guerra Mundial trouxe os primeiros sinais de declínio no cinema dinamarquês, levando ao êxodo dos seus melhores realizadores. A partir dos anos 20, Dreyer procuraria melhores condições, filmando as suas obras principais na Suécia, Noruega, Alemanha (na poderosa UFA) e França. É o caso de Michael (1924) com a abordagem directa da homossexualidade, “A Paixão de Joana d’Arc” (La passion de Jeanne d’Arc, 1928), com a paixão de Cristo a ser transposta para o feminino, e o experimentalista “Vampiro” (Vampyr, 1931). Também Christensen sairia, filmando na Suécia aquele que é o seu filme mais famoso: “A Feitiçaria Através dos Tempos” (Häxan, 1924), antes de partir para os Estados Unidos.
A Nordisk apostou num regresso aos clássicos, sobretudo com Anders Wilhelm Sandberg, a quem pediu adaptações de Dickens. Apostava-se ainda na animação, com o primeiro filme do género a datar de 1920, “Storm P. tegner de Tree Små Mænd”, de Robert Storm Petersen. Os fracos resultados desses filmes confirmaram o declínio da indústria do país. Ficavam para trás cerca de 2700 filmes de ficção e não ficção, produzidos na Dinamarca entre 1896 e 1930. Desses sobrevivem hoje cerca de 400.
Suécia
O ponto mais marcante no estabelecimento da indústria cinematográfica sueca foi a fundação, em 1907, da Svenska Biografteatern, produtora de Estocolmo que, logo no ano seguinte, com a entrada do produtor e realizador Charles Magnusson, começou um crescimento considerável. Magnusson era um empreendedor incansável, tendo experimentado com diversas ideias, como o sincronizar de som nos filmes, com um gramofone que tocava atrás da tela, ou a adaptação do teatro de Strindberg ao ecrã, como em “Miss Julie” (Fröken Julie, 1912), e a aposta em épicos históricos como “Regina von Emmeritz and King Gustav II Adolf” (Regina von Emmeritz och konung Gustaf II Adolf, 1910). A Svenska Biografteatern tinha então como principal realizador Georg af Klercker, que era um exemplo de precisão figurativa de realismo social, dando especial atenção à interpretação, em filmes como “The Last Performance” (Dödsritten under cirkuskupolen, 1912).
Foi por iniciativa de Magnusson que a produtora construiu estúdios modernos em Lidingö (à saída de Estocolmo), e que contratou Mauritz Stiller como realizador. Este começou com comédias, sátira social e burlesco, rapidamente passando para contos morais de relações humanas. Consigo, Stiller traria o actor Victor Sjöström, que Magnusson incentivou a passar também à realização. Com estes dois nomes, Magnusson pediu que se desenvolvesse uma cinematografia com base em temas suecos, e a obra da autora nobelizada Selma Lagerlöf tornou-se a principal fonte da Svenska Biografteatern.
Filmes como “O Lobo do Mar” (Terje Vigen, 1917) e “Os Proscritos” (Berg-Ejvind och Hans Hustru, 1918) ambos de Sjöström, e “O Filho Bastardo” (Thomas Graals bästa barn, 1918) e “O Tesouro de Arne” (Herr Arnes Pengar, 1919), ambos de Stiller, eram exemplos desta nova cinematografia, de temas nacionais, uso da paisagem como personagem implacável, e grande intensidade dramática de conflitos inter e intra-pessoais, que começavam a interessar os mercados internacionais.
Em 1919 Ivan Kreuger promoveu a fusão entre a Svenska Biografteatern e a Film Scandia A/S de Malmö, originando a Svenska Filmindustri, que em 1920 seria já uma potência mundial. Os sucessos continuavam, com os famosos “Erotikon” (Riddaren Av i Gar, 1920) de Mauritz Stiller, que brincava com o tabu do casamento, “O Carro Fantasma” (Körkarlen, 1920) e “A Lenda de Gösta Berling” (Gösta Berlings Saga, 1924), ambos de Victor Sjöström, este último, aquele que dava a conhecer ao mundo, Greta Garbo.
Tanto Stiller como Sjöström emigraram para os Estados Unidos nos anos 20. O primeiro para acompanhar Greta Garbo, tendo a sua carreira como realizador falhado, o segundo realizando alguns filmes muito bem sucedidos no continente americano, sob o nome anglicizado de Victor Seastrom. O cinema sueco perderia então a sua importância, restando hoje cerca de 200 filmes de ficção dos 500 mudos produzidos na Suécia (incluindo curtas-metragens e filmes com som sincronizado).
Finlândia
A Finlândia, na era moderna, esteve sempre ligada à Rússia. Embora ganhando autonomia em 1809, e com o estabelecimento do finlandês como língua nacional por volta de 1870 (coexistindo com o sueco), só em 1917 ganharia independência. Ainda que tivesse já uma cinematografia nacional desde o início do século XX, esta foi a espaços muito reprimida pela Rússia czarista.
Data de 1907 o primeiro filme finlandês de ficção, a curta-metragem “Salaviinanpolttajat” do sueco Louis Sparre, para a produtora Atellier Apollo de Karl Emil Ståhlberg (o dono do primeiro cinema de Helsínquia, o Maailman Ympäri), a qual deterá um monopólio até 1913.
Várias companhias surgem nos anos seguintes como a Pohjoismaiden Biografi Komppania (1907) do sueco David Fernander e do norueguês Rasmus Hallseth; a companhia de Frans Engström, que descobre Teuvo Puro e Teppo Raikas; e a Finlandia Filmi (1912) de Erik Estlander. Mas é após uma proibição russa de cinema finlandês que dura entre 1916 e 1917, que a Finlândia se restrutura, e nasce a Suomi Filmi, por iniciativa dos realizadores e produtores Teuvo Puro e Erkki Karu.
O filme mais importante dessa fase é Anna-Liisa (1922) de Teuvo Puro e Jussi Snellman, que, na tradição escandinava, aposta na paisagem e em dramas inter-pessoais que tocam tabus pouco explorados noutras cinematografias. A tentativa de internacionalização continuou com outros filmes da Suomi, mas sem grande sucesso, exceptuando-se o seu mais conhecido filme “Finland” (Rakkauden kaikkivalta – Amor Omnia, 1922) de Erkki Karu e Eero Leväluoma.
Sobrevivem hoje cerca de 40 filmes de ficção mudos, dos cerca de 80 produzidos na Finlândia até 1933.
Noruega
A Noruega, que apenas obteria independência em relação à Suécia em 1905, teve como primeiro filme de ficção a curta-metragem “Fiskerlivets farer: et drama på havet” (1907) de Hugo Hermansen. A sua primeira produtora importante (Cristiania Film Co. A/S) nascia em 1916. Outras produtoras menores foram a Norsk Kinematograf A/S, International Fim Kompagni A/S, Nora Film Co. A/S, Gladtvet Film, resultando em apenas 18 títulos entre 1908 a 1918.
Só em 1920 se deu uma primeira tentativa de estabelecimento de um cinema de raiz nacional, com os filmes “Jackal” (Kaksen på Øverland) de G. A. Olsen e “Gipsy Anne” (Fante Anne) de Rasmus Breistein.
“Til sæters” (1924), de Harry Ivarson, é o primeiro filme norueguês que passa no circuito internacional, num período áureo de dois ou três anos, culminando com o maior sucesso nacional de então, “Troll-elgen” (1927) de Walter Fyrst. Tirando algumas colaborações com a Suécia e a Finlândia, o cinema norueguês voltava a cair no esquecimento a nível internacional. Sobreviveram cerca de 30 filmes mudos de ficção.
Islândia
Parte integrante da Dinamarca até 1918, a Islândia teve o seu primeiro cinema permanente em 1906, estabelecido pelo Alfred Lind. Mesmo depois dessa data, o cinema feito em solo islandês foi quase sempre de iniciativa dinamarquesa. É o caso de “Sons of the Soil” (Borgslægtens historie, 1919) de Gunnar Sommerfeldt. Aos poucos surgem alguns autores locais, como Loftur Guðmundsson, que realizam curtas-metragens. Uma delas é “The Adventures of Jon and Gvendur” (Ævintýri Jóns og Gvendar, 1923), o primeiro filme inteiramente islandês. Curiosamente será também Loftur Guðmundsson o realizador da primeira longa-metragem islandesa, a qual surgiria apenas em 1949, e intitulada “Between Mountain and Shore” (Milli fjalls og fjöru).
A herança: Estados Unidos e Europa
Se por um lado a herança escandinava marca precença nos Estados Unidos com a chegada da actriz, e protegida de Mauritz Stiller, Greta Garbo (que se tornaria a maior estrela da MGM entre 1926 e 1941), por outro são essencialmente alguns realizadores escandinavos que vêm trazer uma lufada de ar fresco ao cinema norte-americano.
Começando com Mauritz Stiller, além de acompanhar Garbo e a dirigir (embora não creditado) em “Torrente” (Torrent, 1926), realizaria ainda “Hotel Imperial” (1927), “A Grande Culpa” (The Woman on Trial, 1927) e “Street of Sin” (1928). Os resultados foram decepcionantes, com Stiller a regressar à Suécia, mas a abandonar a realização.
Sorte inversa teve Victor Sjöström, cujo apelido nos Estados Unidos foi modificado para Seastrom. Naquele país Sjöström realizou nove filmes entre 1924 e 1930, entre eles os muito celebrados “O Palhaço” (He Who Gets Slapped, 1924), “A Mulher Marcada” (The Scarlet Letter, 1926) e “O Vento” (The Wind, 1928). Regressou depois à Europa, filmando sobretudo na Alemanha e na Inglaterra. Mais tarde continuaria apenas como actor, sendo célebre a sua participação em “Morangos Silvestres” (Smultronstället, 1957) de Ingmar Berman, o último filme de Sjöström, então com 78 anos.
Quem também tentou a sua sorte nos Estados Unidos foi Benjamin Christensen, que realizou sete filmes entre 1926 e 1929, entre os quais “A Ilha Misteriosa” (The Mysterious Island), e “Seven Footprints to Satan”, ambos de 1929, e onde abordava géneros como o mistério, a fantasia e o terror. Voltaria depois à Dinamarca onde realizaria mais quatro filmes.
Contrariamente a estes realizadores, Carl Theodor Dreyer não filmou para lá do Atlântico, tendo, no entanto trabalhado na Noruega, Suécia, Alemanha e França. Tornou-se mesmo figura de proa do Expressionismo Alemão, na produtora UFA, e a sua forma de tratar a luz, e a dramatização no papel do rosto, seriam exemplo nos anos vindouros.
Bibliografia consultada
- HAUSTRATE, Gaston – O Guia do Cinema: Iniciação à história e estética do Cinema. (volume 1) Lisboa: Pergaminho, 1991.
- NOWELL-SMITH, Geoffrey ed. – The Oxford History of World Cinema. New York, NY: Oxford University Press; 1996.
- SUNDHOLM, John [et al.] – Historical Dictionary of Scandinavian Cinema. Lanham, MD: Scarecrow Press, 2012.
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