Fantasmas do antigo Japão


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Introdução

Onibaba (1964) de Kaneto ShindōO terror japonês (ou J-Horror) é hoje essencialmente conhecido graças ao mediatismo de um conjunto de filmes que tiveram remakes de sucesso nos Estados Unidos. Exemplo são a série “Ringu”/”The Ring”, criada por Hideo Nakata, e a série “Ju-on”/”The Grudge”, de Takashi Shimizu, que no início do século XXI foram verdadeiros fenómenos de popularidade.

Mas o terror japonês é muito mais do que isso, assentando em bases de folclore tradicional e histórias de tempos antigos, que originaram alguns importantes filmes nos anos 50 e 60 do século passado. É esse cinema, de forte componente poética, ligado às histórias de samurais, antigas tradições, e temas que anunciavam a transformação da sociedade japonesa do pós-guerra que este ciclo se propõe revisitar.

 

O cinema japonês no pós-guerra

Existe uma tradição de filmes de terror no Japão, que data ainda do período mudo, desde o primeiro filme do género, “Boton Doro” de 1910, até ao clássico “A Page of Madness” (Kurutta ippêji, 1926) de Teinosuke Kinugasa. Mas é no pós-guerra que o género ganha relevo e, principalmente, adeptos.

Com o fim do conflito armado em 1945, e com duas bombas atómicas a dilacerar o seu território, o Japão via-se ainda forçado a ceder às imposições dos Aliados, entre elas a presença norte-americana, num império fracturado, e num país envergonhado pelos erros da classe dominante, que procurava agora dar o salto em frente, com uma nostalgia ambígua sobre as suas antigas glórias. Preso entre a tradição e o modernismo ocidental, o Japão procurava sarar feridas, e via no cinema uma ferramenta importante no forjar da nova cultura e na sua afirmação de nação que caminhasse a par de todas as outras. A vontade do povo de enterrar os traumas da guerra levou a que o cinema se tornasse, por excelência, um meio de fuga, privilegiando o escapismo, que podia tanto levar a exorcizar a guerra como a tentar esquecê-la completamente.

A início sob o controlo da censura dos Aliados, aos poucos a produção japonesa ganhou autonomia, e o enorme crescimento económico que se registou a partir de 1953 a permitiu a reconstrução de grandes estúdios: Toho, Shochiku, Daiei, etc. Com o reconhecimento internacional, de Akira Kurosawa, galardoado em Vezena por “Às Portas do Inferno” (Rashômon, 1950), iniciava-se o período que ficou conhecido como a Era Dourada do cinema japonês, com muitas e cuidadas produções, e uma grande liberdade para os melhores autores desenvolverem as suas linguagens.

 

O cinema de terror japonês

Também o cinema de terror beneficiou destes ventos favoráveis, com mais dinheiro a multiplicar o número de produções. Destacavam-se então dois caminhos. Por um lado aquele mais ligado às feridas da Guerra, à ameaça do nuclear e suas consequências, evocativas do horror de Hiroxima e Nagasáqui. Eram os filmes da natureza revoltada pelos efeitos nocivos da radiação, cujo melhor exemplo é “O Monstro do Oceano Pacífico” (Gojira / Godzilla, 1954), de Ishirō Honda, que tantas sequelas e filmes parecidos gerou. O outro caminho foi o do terror ligado ao folclore, de fantasmas que remetiam para a era dos samurais, de antigas lendas religiosas (budistas shintoístas, confucionistas), e literatura que datava do período medieval Heian (794–1185), os contos e narrativas populares que ficaram conhecidos como «Kaidan» (怪談).

Se bem que o famoso “Contos da Lua Vaga” (Ugetsu monogatari, 1953) de Kenji Mizoguchi possa ser visto como uma história de fantasmas, este verdadeiro filão começou a notabilizar-se como género com a obra de Nobuo Nakagawa, um cineasta que se especializou nos filmes de fantasmas, com histórias passadas na época feudal, em cenários estilizados, com interpretações e lógicas que bebiam no teatro kabuki e no folclore japonês. Entre eles são exemplo “Black Cat Mansion” (Bôrei kaibyô yashiki, 1958) e “The Ghost of Yotsuya” (Tôkaidô Yotsuya kaidan, 1959), baseados em histórias que seriam alvo de muitas outras adaptações ao cinema.

Estes contos passavam-se, geralmente no período Edo (1603–1867), o qual ficou marcado pelo início do Xogunato Tokugawa na cidade de Edo (actual Tóquio), com o fim do feudalismo e consequente perda de importância dos samurai, que, sem senhores feudais a servir, passavam de uma classe dignificada, para mercenários sem senhor, os rōnin, acabando no banditismo, e quebrando o código de honra bushidō que os regia. Essa perda de valores, e fim de um mundo de honra e tradição era visto como um paralelo para a situação do Japão do pós-guerra, vergado perante as potências Aliadas, dirigido para a modernização e ocidentalização, e deixando para trás os seus valores ancestrais.

Como motivo principal estava o ideal de mulher, a ryōsaikenbo (boa mãe e boa esposa), representando os valores, a tradição, a abnegação e lealdade, pilar da sociedade japonesa. Ao ser violada nesses valores, a mulher originava espíritos vingativos, que vinham assombrar aqueles que tinham quebrado os códigos de honra. São os fantasmas de mulheres, geralmente belas, que habitam os espaços onde elas foram injustiçadas, assombrando aqueles que neles entram, e procurando vinganças, por vezes durante séculos. Os temas são os do amor traído, da injustiça e da maldade masculina, movida por luxúria, ambição ou sede de poder. Além da mulher também o gato, e até o cabelo, são símbolos da vingança dos espíritos inquietos por uma morte trágica sem as devidas honras fúnebres.

Há por isso algo de gótico nos filmes de fantasmas japoneses, pela obsessão com o passado, o conto de decadência, a moralidade duvidosa, e os espaços como protagonistas e testemunhas de uma história que é, antes de tudo, uma metáfora sobre as fraquezas da alma humana. O décor é estilizado, recorrendo a paisagens sombrias e cores garridas, onde cenários de fundo e céus são muitas vezes pintados, num evocar da atmosfera de contos de fadas ou de sonhos, onde o realismo dos espaços não é uma necessidade premente.

O horror gótico japonês usa o cenário doméstico (sempre rodeado de uma natureza indomada de lagos, pântanos e florestas) como espaço privilegiado, com os enquadramentos da geometria de portas e janelas a conferir uma maior claustrofobia, planos baixos a mostrar reverência e ângulos oblíquos como sinais de distorção da alma humana. À sua volta, há sempre constrangimentos de percurso, montanhas intransponíveis, lagos e pântanos perigosos, canaviais densos, e muito nevoeiro ou neve.

 

O teatro kabuki

Grande inspiração estética do cinema de terror japonês dos anos 60, o teatro kabuki foi uma criação do início do século XVII, no período Edo, tendo ganho de imediato um tão grande sucesso popular, que a corte de Edo passou a desejar ter essas actuações perto de si. Tal levou a um controlo que, por exemplo, em 1629 proibiu a actuação das mulheres, com os homens adultos a interpretar todos os papéis, incluindo os onnagata (homens que fazem de mulheres) e os wakashū (homens que fazem de rapazes jovens).

O kabuki distingue-se pelas suas interpretações muito estilizadas, ao ritmo de uma música solene, figurinos garridos, maquilhagem exagerada, uso de máscaras e uma enorme quantidade de artifícios de palco, como props, alçapões, plataformas giratórias, passerelles pelo meio do público, etc. As histórias eram sempre dramas envolvendo eventos históricos, questões amorosas e conflitos da alma humana.

As troupes de kabuki multiplicaram-se, gerando-se conhecidas rivalidades. Os actores tornavam-se estrelas nacionais, com o apelo extra de que estas companhias itinerantes eram ainda sinónimo de um outro tipo de decadência, com os actores, muitas vezes, oferecerem-se para prostituição. Cedo o kabuki se tornou uma instituição nacional, com estruturas de peças e personagens-tipo a serem estabelecidas. Surgiram então os autores profissionais, de que Chikamatsu Monzaemon é o primeiro exemplo, importante pelo número de peças que deu ao cânone do kabuki. Este sucesso sobreviveu ao fim do período Edo, após o qual o kabuki era visto como um testemunho dos tempos de glória e tradição.

Após o final da Segunda Guerra Mundial, o kabuki chegou a ser brevemente proibido, pelo seu papel no cultivar do espírito nacionalista que levou à guerra. Em 1947 a proibição foi levantada. O seu valor cultural continua vivo, com actuações a serem apreciadas com um respeito equiparado ao da ópera no Ocidente, gerando actores de sucesso, e tendo mesmo já sido reconhecido como património imaterial da humanidade, pela UNESCO.

 

Os fantasmas no terror japonês

Algo que espanta imediatamente, em qualquer abordadem inicial ao terror japonês (quer literário, quer no cinema) é a riqueza do seu folclore, alicercado em tradições populares ancestrais, e nas mitologias concorrentes de diferentes religiões. Percorrer essa diversidade seria um verdadeiro curso em cultura japonesa, algo que não se pretende neste trabalho. Ficam apenas alguns nomes e conceitos mais importantes, para estimular a curiosidade.

Yūrei (幽霊), no sentido de espírito dos mortos, mas que significa essencialmente semi-transparente, e se aproxima da ideia ocidental de fantasma.

Onryō (怨霊), espíritos (yūrei) vingativos que regressam do purgatório para vingar os males que sofreram em vida. Ligam-se geralmente a lugares, e são os espíritos mais populares do J-Horror.

Mojya (亡者), espíritos de velhos, outra antiga palavra que significa fantasma, neste caso associada a pessoas muito velhas.

Yōkai (妖怪), fenómeno estranho, sobrenatural, sendo usado como nome genérico para descrever monstros e demónios, geralmente com características animais disformes.

Kaiju (怪), yōkai de proporções gigantes, dos quais o mais famoso é Godzilla.

Oni (鬼?), yōkai antropomorfos, no que geralmente designaríamos como demónios, ogres ou trolls.

Bakeneko (化け猫) e kaibyo (怪猫), nomes dados a gatos de poderes sobrenaturais que carregam um espírito vingativo.

Ikiryō (生霊), espírito vivo, isto é, a energia interna de uma pessoa ou animal pode ser libertada do seu corpo devido a emoções fortes de ódio e raiva, agindo como um espírito autónomo enquanto o seu hospedeiro se encontrar vivo.

Mas para além destes conceitos existem muitas dezenas de outros, muitas vezes com definições sobrepostas, e interpretações ambíguas, cuja compreensão requereria um exaustivo estudo.

Pinturas de fantasmas japoneses

 

Algumas histórias de referência

Conhecidos habitualmente como Kaidan, aqui fica uma curta lista de contos clássicos, alguns deles muitas vezes usados no cinema de terror japonês.

• Botan Dōrō (The Peony Lantern) de Asai Ryoi (1612–1691)
• Ugetsu Monogatari (Tales of Moonlight and Rain) de Ueda Akinari (1734–1809)
• Yotsuya Kaidan (Ghost Story of Tōkaidō Yotsuya Kaidan) de Tsuruya Nanboku IV (1755–1829)
• Sakura hime Azuma no Bunsho (The Evil Split of Princess Sakura) de Tsuruya Nanboku IV (1755–1829)
• Mimi-nashi Hōichi (Hōichi the Earless) de Isseki Sanjin
• Banchō Sarayashiki (The Story of Okiku) de Okamoto Kido (1872–1939)
• Kaidan Kasane-ga-fuchi (Ghost Story of Kasane Swamp) de Sanyutei Encho (1839–1900)

De particular relevância são as compilações de contos:
• Konjaku Monogatarishū (Anthology of Tales from the Past), colecção de contos do período Heian (794–1185)
• Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things, de Lafcadio Hearn (1850–1904), que adoptaria o nome japonês de Koizumi Yakumo

Caso curioso é a narrativa em nome pessoal do pintor Maruyama Ōkyo (1733–1795), que conta um sonho/visão de uma amada sua já falecida, que levaria à sua famosa pintura “The Ghost of Oyuki” (Yūreizu: Oyuki no Maborosh), de 1750, que acabaria por definir a imagem do fantasma feminino japonês, como uma mulher de pele muito clara, longa cabeleira negra, longo kimono branco, modos etéreos, e que flutua como se não tivesse pés.

Algumas traduções de conhecidos kaidan pedem ser encontradas no website Hyakumonogatari Kaidankai

 

O J-Horror hoje

O género de terror saiu de moda no cinema do Japão dos anos 70, muito graças ao sucesso da chamada Nova Vaga do Cinema Japonês, mais centrada em temas sociais contemporâneos. O terror manteve-se presente nalgumas obras esporádicas até seu ressurgimento em força no final dos anos 90. O enorme sucesso dos filmes de realizadores como Hideo Nakata e Takashi Shimizu levaram-no aos Estados Unidos, graças a muitos remakes que vieram trazer mediatismo às histórias dos fantasmas japoneses. Seguem-se apenas alguns dos exemplos mais conhecidos:

• 1977: Hausu [House] – Nobuhiko Obayashi
• 1978: Ai no bôrei (O Império da Paixão) – Nagisa Oshima
• 1989: Tetsuo (Tetsuo – O Homem de Aço) – Shinya Tsukamoto
• 1997: Cure – Kiyoshi Kurosawa
• 1998: Ringu (Ring – A Maldição) – Hideo Nakata
• 1999: Audition (Anjo ou Demónio) – Takashi Miike
• 2002: Ju-on (Ju-on: A Maldição) – Takashi Shimizu
• 2002: Honogurai mizu no soko kara (Águas Passadas) – Hideo Nakata, 2002
• 2004: Marebito – Takashi Shimizu

 

Bibliografia aconselhada

  • COLLETTE, Bailman – Introduction to Japanese Horror Film. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd, 2008.
  • DAVISSON, Zack – Hyakumonogatari Kaidankai [em linha] DAVISSON, Zack, actual. 2016 [consult. 2016]. Disponível na Internet em
  • DAVISSON, Zack – Yūrei: The Japanese Ghost. Seattle: Chin Music Press, 2014.
  • FOSTER, Michael Dylan – The Book of Yōkai: Mysterious Creatures of Japanese Folklore. Oakland, CA: University of California Press, 2014.
  • IWASAKA, Michiko e TOELKEN, Barre – Ghosts and the Japanese: Cultural Experiences in Japanese Death Legends. Boulder, CO: Utah State University Press, 1994.
  • RICHIE, Donald – Japanese Cinema, Film Style and National Character. New York City, NY: Anchor Books, 1971.


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