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Introdução
Dizem os historiadores que o cinema italiano vale principalmente a corrente neo-realista, que proliferou no final dos anos 1940 e início dos anos 1950. Com um olhar sobre as condições sociais de uma Itália a pagar a factura do pós-guerra, é um cinema que se pretende sem de inverosimilhanças nem romantismos, procurando uma pureza quase documental, sem subterfúgios narrativos próprios do grande cinema de Hollywood. Não deixa no entanto de ter um lirismo muito próprio, trazendo-nos histórias que, por as sentirmos tão reais, são por isso ainda mais fortemente tocantes.
Um pouco como um regresso às origens, decidi dedicar algum tempo a esta corrente, da qual se podem ver tantas influências em cinematografias posteriores de outros países, incluíndo mesmo Portugal.
Nota: Como em qualquer ciclo ou corrente, a lista aqui apresentada é subjectiva, e procura nomear as obras principais, dentro das premissas aqui definidas, filmadas entre 1945 e 1952. Destas obras serão analisadas dezena e meia.
O Neo-realismo
O neo-realismo foi uma corrente artística que se tornou importante após a II Guerra Mundial, e que alastrou a várias formas de arte (literatura, pintura, música, cinema). Pretendiam os seus autores um regresso ao realismo, que marcou a segunda metade do século XIX, e o qual procurava descrever a realidade com objectividade, sem uso do embelezamento poético, ou recurso a explicações sobrenaturais e artificiais.
Em Itália, o movimento ganhou força e inspiração na resistência durante a guerra, e na luta contra o fascismo. Na literatura, o neo-realismo inclui nomes como Italo Calvino, Alberto Moravia, e Cesare Pavese, os quais viveram na clandestinidade durante a guerra, eram adeptos do verismo (de vero = verdadeiro) do século XIX, e incluíam nos seus livros críticas à sociedade do seu tempo.
Com o alargar da propaganda de socialista em Itália, o neo-realismo ganhou uma componente ideológica, que ganhou terreno numa Itália arrasada pele guerra, com boa parte da população vivendo em más condições sociais e sem emprego.
O neo-realismo no cinema italiano
O cinema tornou-se um campo privilegiado para os autores italianos que viam no neo-realismo uma forma de expressão com que se identificavam. A experiência fascista mostrara como o cinema era uma enorme arma de propaganda, o que a nova geração de autores, de ideologia de esquerda, e muitas vezes ligados ao Partido Comunista, iria usar.
Surgem assim uma série de filmes, que se caracterizam por um conjunto de traços comuns, nomeadamente o uso de cenários naturais em vez de filmagens em estúdios, má iluminação, por vezes o uso de actores não profissionais, forte atenção aos problemas sociais, e principalmente temas próximos do povo anónimo, que surgia como personagem principal, e uma temática actual, que coincidia com uma filmagem quase em estilo de documentário. Pretendia-se assim fugir ao cinema cor-de-rosa de Hollywood, com os seus temas escapistas de heróis, grande aventura e romance, que eram seguidos por parte do cinema italiano, o chamado “cinema dos telefones brancos”.
Curiosamente o neo-realismo italiano beneficiou do investimento que o filho de Mussolini, Vittorio, fez no cinema. Fui sua a criação da célebre Cinecittà (1937) e do Centro Sperimentale di Cinematografia (1935) com que tentou emular os métodos de Hollywood, que admirava e visitou várias vezes. Vittorio Mussolini era, acima de tudo um amante do cinema, e estava mais interessado em imitar Hollywood, tanto na sua grandeza, como no modelo de produção, que em criar uma máquina de propaganda. Os filmes da era fascista tinham por objectivo distrair e divertir o povo, e não necessariamente condicionar o seu pensamento. A propaganda surgiria apenas durante a II Guerra, como forma de apoiar o exército.
Tendo trabalhado nos filmes de apoio ao esforço de guerra, foi na Cinecittà que se reuniu a nova geração de realizadores, argumentistas, directores de fotografia, que aos poucos escaparam ao “cinema dos telefones brancos”, para imporem as suas ideias alternativas. Estes foram principalmente Roberto Rossellini, Luchino Visconti, Vittorio De Sica, Giuseppe Di Santis, Renato Castellani, Luigi Zampa e Pietro Germi (realizadores), Federico Fellini, Sergio Amidei, Cesare Zavattini e Gianni Puccini (argumentistas), Giuseppe Amato e Dino De Laurentiis (produtores), Anna Magnani, Carla Del Poggio e Raf Vallone (actores).
Sendo difícil colocar um início no movimento neo-realista do cinema italiano, até porque não se tratou de um movimento deliberado e pensado pelos seus autores, considera-se frequentemente “Roma Cidade Aberta” (Roma, Città Aperta, 1945) de Roberto Rossellini como o seu mais antigo exemplo. O mesmo Rossellini definiria o neo-realismo como “uma posição moral a partir da qual se pode observar o mundo”. Principalmente no seu início, os filmes neo-realistas eram rodados com meios rudimentares, e bastante improviso.
O prestígio adquirido por estes filmes e autores levou a que eles fossem procurados nos Estados Unidos, que neles investiram e os distribuiram. Os filmes passavam dobrados quer nos Estados Unidos quer em França, levando a que actores franceses e americanos passassem a ser presença frequente nos filmes italianos a partir dos anos 60.
O neo-realismo português
Também em Portugal se pode falar de uma corrente neo-realista, embora esta de carácter nacional e portanto com uma distinção própria.
O neo-realismo português esteve presente essencialmente na literatura, direccionada a mostrar as condições e o sofrimento do povo, nomeadamente a partir dos anos 1930 e 1940. Foi um movimento espontâneo, fruto das condições de agravamento social, que levavam à migração do interior para as grandes cidades, e eram condicionadas primeiro pela instabilidade política, e depois pelos ecos das guerras internacionais, que faziam de Portugal um país cada vez mais periférico.
A literatura neo-realista fundava-se tanto em revistas urbanas, geralmente de carácter estudantil (“Sol Nascente”, fundada por estudantes do Porto em 1937; “Vértice”, que surge em Coimbra em 1942, “O Diabo”, em Lisboa; entre muitas outras), como na obra de autores que privilegiam as suas raízes rurais.
Destaca-se, no campo do romance a obra do ribatejano Alves Redol e de Soeiro Pereira Gomes (destacado militante do Partudo Comunista Português), de José Gomes Ferreira e de Fernando Namora. Na poesia destaque para a obra do alentejano Manuel da Fonseca e de Mário Dionísio. Na obra destes autores destacava-se a preponderância dada ao povo e a processos de transformação social, o papel dos espaços rurais, o esforço para se atingirem narrativas realistas, e um certo aspecto documental trazido pelos contextos nas histórias retratadas.
No campo das artes visuais, o neo-realismo português é influenciado pela literatura, mas também pelos movimentos artísticos Sul-americanos, de inspiração comunista, como é o muralismo mexicano (por exemplo Diego Rivera). Impondo-se contra o modernismo, que era a corrente advogada pelo regime, o neo-realismo deu ao país artistas como Júlio Pomar, Avelino Cunhal ou Lima de Freitas, entre outros.
No cinema o neo-realismo está particularmente presente na obra de Manuel de Guimarães. Outros autores procuraram dar uma voz ao povo, filmando condições sociais com pretenso realismo. Foi o caso do filme percursor “Aniki-Bobó” de Manuel de Oliveira e de algumas obras de Leitão de Barros. Destacou-se depois ainda Perdigão Queiroga, mas raras vezes se pode falar de um neo-realismo puro, sem estar toldado de populismos exagerados ou tendências folclóricas advogadas pelo regime Salazarista.
As influências do cinema neo-realista italiano
Difícil, como sempre é definir as influências de uma corrente estética, pode-se dizer que, pelo seu prestígio internacional, o cinema neo-realista italiano tornou-se uma referência em muitas cinematografias.
Começando em Itália, e mesmo com a evolução das carreiras dos seus iniciadores, Rossellini, Visconti e De Sica, continuam a ver-se ecos do neo-realismo nas suas obras posteriores. Outros realizadores que surgiram depois, como Pier Paolo Pasolini, Michelangelo Antonioni, Bernardo Bertolucci, os irmãos Taviani e Lina Wertmüller continuaram a usar ideias do neo-realismo, com destaque para conflitos sociais e regionais, a narrativa com base no povo, o uso de actores não profissionais, e a perspectiva infantil.
No estrangeiro, a Nouvelle Vague francesa, fundou-se sobre o neo-realismo italiano, absorvendo a sua libertação do cinema filmado em estúdios, privilegiando formas mais livres, e improvisadas. Realizadores como François Truffaut e Jean-Luc Godard sempre destacaram a influência dos mestres do neo-realismo.
Nos Estados Unidos pode falar-se em John Cassavetes como um espectador atento dos mestres italianos, o mesmo sucedendo com algumas escolas alternativas como a chamada L.A. Rebellion de realizadores negros.
Saliente-se a influência do neo-realismo na escola Dogme 95, que teve em Lars Von Trier o seu mais expoente máximo, no meste indiano Satyajit Ray, em cineastas brasileiros como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, ou em realizadores alternativos contemporâneos como Harmony Korine e Abbas Kiarostami, para dar apenas alguns exemplos.
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