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Introdução
Nos anos 20 do século passado, surgiu na então jovem União Soviética um cinema de vanguarda que surpreendeu o mundo. Tratava-se de uma escola que apostava essencialmente na montagem e nos seus efeitos sobre a interpretação do espectador. Usando o simbolismo e criando paralelos através de sequências visuais, estes filmes provocavam emoção de um modo intelectualmente provocativo.
Sendo um período em que o regime comunista se implantava, esse cinema foi visto como um veículo fundamental para os ideais nascentes da revolução. Eram portanto os temas sociais, de evocação da própria revolução, a necessidade de industrialização do novo Estado, e a legitimação de um regime através, também, do enaltecimento histórico do povo que constituíam matéria para desenvolver as narrativas.
Foi um tempo de aventura, experimentação e militantismo, o tempo de Kuleshov, Vertov, Eisenstein, Pudovkine, Dovjenko e outros, que tornaram o cinema soviético um dos mais estudados e admirados de sempre.
Nota: Serão apenas incluídos neste ciclo filmes que lidem com os ideais revolucionários, no período que vai de 1924 (data da criação da Sovkino) a 1939 (início da Segunda Guerra Mundial).
Primórdios do cinema russo
Ao contrário do que ia acontecendo na Europa Ocidental, a Rússia só tarde ganhou uma experiência de produção cinematográfica interna. Até cerca de 1910 toda a actividade se baseava na importação, quer de filmes, quer de material técnico, quase sem participação nacional que não fosse a distribuição dos filmes e a construção de cinemas. As primeiras companhias russas devotadas ao negócio do cinema começaram mesmo como sucursais das grandes empresas estrangeiras, como as francesas Pathé-Frères e Gaumont, a alemã Bioscop, a norte-americana Vitagraph ou dinamarquesa Nordisk. Foram essas companhias de distribuição, que, para fazer face aos custos de aluguer ou compra de filmes estrangeiros, começaram a aplicar os lucros na produção, tornando-se as primeiras produtoras russas no final da primeira década do século XX.
Data de 1908 o início do cinema feito na Rússia, com a curta-metragem “Stenka Razine”, de Vladimir Romashkov, da produtora nacional Khanzhonkov & Co., inspirado na canção popular «Volga, Volga». Por coincidência tratava de um herói popular que lidera os seus conterrâneos numa luta pela liberdade. Parecia premonitório, e ganhou estatuto simbólico.
Por volta de 1913 as companhias estrangeiras tinham-se retirado, abrindo espaço a um cinema de verdadeiros temas russos, com o aparecimento de novas companhias como a Thiemann & Reinhardt e a Yermoliev. O objectivo era o chamado «film d’art», com ênfase no drama histórico, e enaltecimento da etnografia, vida rural e heróis nacionais. Daí cedo se passou aos dramas de costumes e retratos sociais, como os do cinema de Yakov Protazanov (1881-1945) e Vladimir Gardin (1877-1965).
Com a Primeira Guerra Mundial, e consequente fecho ao mercado externo, o cinema russo teve uma idade dourada passando, finalmente a ser dominante no seu próprio país. Os temas cristalizavam-se em géneros urbanos, de heróis e heroínas, femme-fatales, dramas psicológicos, e uma forma de actuar conhecida como «estilo russo», num modo de filmar baseado em quadros fixos.
Foram centenas de filmes por ano, nomeadamente épicos literários, adaptados de Tolstoi e Tchekov. Destaca-se, no entanto, já um certo aspecto experimentalista, seja na ideia pioneira de ter actores atrás da tela a declamar as falas dos personagens do filme, seja na primeira experiência com animação, na forma de “The Beautiful Lukanida” (Prekrasnaya Lyukanida, 1912) de Vladislav Starevich, ou do primeiro filme filmado com duas câmaras “Defence of Sebastopol” (Oborona Sevastopolya, 1911), de Vasili Goncharov e Aleksandr Khanzhonkov.
A Revolução de 1917 trouxe novidades na temática, com a vida da nobreza como tema principal, mas seria a declaração de Lenine de 1919 de que «de todas as artes, a cinematográfica é, para nós, a mais importante» que colocará a revolução no cinema, e este ao serviço daquela. A nesta necessidade de renovação e afirmação junta-se um corte geracional, com muitos técnicos a optarem pelo exílio, e um conjunto de novos autores a tomarem conta dos meios de produção.
O cinema da revolução
Em 1919 um decreto de Lenine leva à nacionalização do cinema, e controlo das comissões de trabalhadores de cinema e teatro, que por sua vez levaram à nacionalização das próprias salas. As companhias ainda existentes (as menores tinham desaparecido) foram, ou nacionalizadas, ou colocadas sob o forte escrutínio do Comissariado Popular para a Educação (o Narkompros) que assim passava a reger todos os aspectos da produção cinematográfica do país. O processo de restruturação continuou pelos anos 20 (Khanzhonkov e Yermoliev fundiram-se na futura Mosfilm, por exemplo), enquanto algumas companhias privadas (como a Rus) iam subsistindo. Já pela parte dos jovens artistas (onde estavam Eisenstein e Kuleshov, entre outros) nascia a Associação de Cinematografia Revolucionária (ARC), que tentava empurrar a ideologia estatal como norma no controlo criativo. Em Leninegrado nascia o KEM (Laboratório de Cinema Experimental) de Fridrikh Ermler, Edward Johanson e Sergei Vasiliev. Em 1922 era fundada a Goskino, distribuidora estatal que obtém o monopólio do mercado, substituída em 1924 pela Sovkino (para a Federação Russa) e suas empresas irmãs nas outras repúblicas soviéticas, para fazer face à penetração do cinema estrangeiro, já que no período do NEP havia uma grande abertura ao estrangeiro.
Com os estúdios desorganizados, a falta de técnicos qualificados e alguma emigração para o ocidente, a nova geração tinha apenas como arma a vontade de experimentar. A falta de dinheiro (a falta de negativos e necessidade de os reutilizar terá estado na base das novas técnicas de montagem então desenvolvidas), a vontade de cortar com o passado, e um compromisso com as novas realidades sociais feitas de uma necessidade constante de mudança, foram o combustível que levou ao aguçar do engenho dos novos criadores. Foi o tempo do cinema documental, dos noticiários, filmes de propaganda, e de apelo à intervenção, a chamada «agit-prop», de carácter experimentalista e muito improvisado. Abre ainda em 1919, sob a égide de Lenine, uma escola oficial de cinema em Moscovo, e o seu primeiro produto foi o filme colectivo “Serp i molot” (literalmente: A Foice e o Martelo). Quase todos os realizadores começaram a participar em peças colectivas, onde eram os movimentos populares, e não os heróis individuais os motores das histórias.
Em 1924, para fazer face à penetração do cinema estrangeiro, nasce a Sovkino, empresa estatal de produção e distribuição cinematográfica, com a qual o Estado soviético tentava colocais os seus ideais sociais e políticos como prioridade na cinematografia da União Soviética. Destacam-se então dois homens, Lev Kuleshov, Dziga Vertov, ambos provindos dos filmes de actualidades. O primeiro, teórico e fundador do laboratório Experimental «Kuleshov Collective at the State Film School» (Goskinoshkola) que depois passaria a «Escola de Cinema Estatal Soviético» (VGIK), onde estudaram entre outros Boris Barnet, Vsevolod Pudovkine e Sergei M. Eisenstein, destacou-se pelo tratamento dado à montagem, abrindo novos caminhos com o que ficou conhecido como o «efeito Kuleshov», mostrando que se pode criar uma reacção no espectador ao suceder imagens diferentes e descorrelacionadas, pois o cérebro humano vai sempre procurar correlação e inferir emoções dessas sucessões. O segundo, considerando-se um historiador da revolução, destacou-se pelo modo como definiu o cinema como uma arte independente da narrativa, em documentários onde a força das imagens se sobrepunha a qualquer enredo. Vertov, para quem o enredo era um «conceito burguês», tornaria esta ideia famosa na sua série de documentários “Kinopravda” (cinema verdade) que realizou na década de 1920.
É já numa época em que o aparelho governamental instrumentaliza o cinema como uma arma, que surgem os maiores nomes do período: Sergei M Eisenstein, Vsevolod Pudovkine e Aleksandr Dovjenko.
Os grandes realizadores e o formalismo
Sergei M. Eisenstein foi o primeiro a destacar-se, com uma série de filmes que abordavam directamente o clima revolucionário, e os episódios que o inspiraram. Foi o caso da sua trilogia “A Greve” (Stachka, 1925), “O Couraçado Potemkine” (Bronenosets Potemkin, 1925), e “Outubro” (Oktyabr, 1928). Neles desenvolveu-se o seu método de montagem que, bebendo das lições de Kuleshov, usava uma contínua e rápida sucessão de imagens para gerar metáforas e paralelismos que serviam de comentário aos seus temas. É o caso da repressão à greve, sobreposta a imagens de um matadouro, exemplificativo do seu modo de compor histórias através da força da imagem. Numa sintonia com os ideais do regime, os heróis de Eisenstein são a massa popular, e o objectivo é sempre descrever a legitimidade da luta do povo.
Vsevolod Pudovkine destaca-se em 1926 com “A Mãe” (Mat, 1926), iniciando uma carreira onde a psicologia pessoal está muito mais presente, e os personagens contam como indivíduos, e o seu simbolismo surge de mãos dadas com um maior realismo. As suas personagens, embora representando estereótipos sociais, são mais vibrantes e individuais, força de interpretações carismáticas.
A meio caminho entre eles situa-se Aleksandr Dovjenko que, tal como os seus dois colegas, sabia usar a teoria da montagem para grande efeito dramático. Dovjenko usa os movimentos populares em conjunção com personagens individuais, para exaltar um sentimento rural mais consentâneo com a sua natal Ucrânia, como são exemplos “Arsenal” (Arsenal, 1929) e “A Terra” (Zemlya, 1930), cujo realismo chegou a ser apelidado de contra-revolucionário.
Estes e outros realizadores marcaram, não só, uma era no cinema soviético, como receberam a admiração internacional. Só que, numa quase fuga para a frente, em que a necessidade de usar o cinema como arma na educação ideológica das massas, e de promover o avanço soviético na busca da industrialização, surgiam querelas fratricidas nos meios intelectuais, onde princípios metafóricos e princípios narrativos pareciam colidir. O resultado era uma constante crítica interna, acentuada com o surgimento do cinema sonoro (que dificilmente se impôs dada a falta de equipamento para sonoro em muitos cinemas), e que nem sempre deixava os grandes realizadores seguir os seus caminhos criativos.
O realismo estalinista
Sob Estaline, os caminhos ficaram definidos. É rejeitado o simbolismo, e o realismo socialista é o novo dogma dos anos 30. Os formalismos são denunciados, em prole de uma linguagem mais simplista, de aceitação universal. Mais ou menos satisfeitos com esta imposição, são ainda os grandes mestres do mudo quem lidera o cinema soviético da nova década, acompanhados de nomes como Boris Barnet, Efim Dzigan, Mark Donskoy, Mikhail Romm, Fridrich Ermler, Georgi Vasilyev e Sergei Vasilyev, Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg. À cabeça na inspiração temática, está a obra de Máximo Gorki.
Se no final dos anos 20 a produção russa se estimava entre os 130 a 140 filmes por ano, em 1933 ela fora apenas de 35 filmes. É o momento de Estaline impor a sua vontade de um cinema mais próximo do realismo literário do século XIX, naquilo que se chamou o realismo estalinista, num período de censura muito mais apertada. Coexistindo com a temática social, a Revolução de Outubro e seus ideais continuaria a inspirar muitos filmes, de que são exemplo: “Outskirts ” (Okraina, 1933) de Boris Barnet, “Chapayev” (Chapaev, 1934) de Georgi Vasilyev e Sergei Vasilyev, “A Felicidade” (Schaste, 1935) de Aleksandr Medvedkin, “Peasants” (Krestyane, 1935) de Fridrikh Ermler, “The Sailors of Kronstadt” (My iz Kronshtadta, 1936) de Efim Dzigan, “Lenine em Outubro” (Lenin v oktyabre, 1937) de Mikhail Romm.
A par destes, o drama de época de raiz literária continuava, e juntava-se-lhe o filme histórico, como enaltecimento e legitimação do império, como é o melhor exemplo “Alexandre Nevski” (Aleksandr Nevskiy, 1938) de Eisenstein.
Depois chegava a Segunda Guerra Mundial, e tudo mudaria no cinema soviético. Por um lado a necessidade de estimular o patriotismo com filmes de guerra, por outro as dificuldades económicas levaram a um período negro, que terminava definitivamente a época dos grandes realizadores saídos da revolução.
Bibliografia consultada
- HAUSTRATE, Gaston – O guia do cinema. Iniciação à história e estética do cinema (Tomo 1: 1895-1945). Lisboa: Pergaminho, 1991.
- NOWELL-SMITH, Geoffrey ed. – The Oxford History of World Cinema. New York, NY: Oxford University Press; 1996.
- ROLLBERG, Peter – Historical Dictionary of Russian and Soviet Cinema. Lanham, MD: The Scarecrow Press, Inc., 2009.