
Este ano, a homenagem chegou tarde, mas sempre a tempo. O realizador de 2019 n’A Janela Encantada é Andrei Tarkovsky. Possuidor de uma marcante, muito influente, mas curtíssima carreira de apenas sete longas-metragens, Tarkovsky é senhor de um cinema desafiante, provocador e poético como poucos.
Os filmes chegarão nas próximas sete quartas-feiras. Fiquem para já com o excelente texto introdutório de Ricardo Gonçalves.
Texto de Ricardo Gonçalves
Montador, argumentista e realizador
É o cinema uma arte unicamente narrativa? Esta pergunta é algo que tem recorrentemente gerado as mais acesas discussões desde o momento em que o comboio filmado pelos irmãos Lumière assustou os espectadores para fora da sala pela primeira vez, no longínquo ano de 1895, até aos dias de hoje. Não existe uma resposta definitiva e consensual – porém, se é amplamente reconhecida a capacidade extraordinária e infindável da sétima arte para contar histórias, não é menos verdade que, ao longo dos anos, houve várias personalidades (argumentistas, realizadores, montadores, etc.) que demonstraram em inúmeras ocasiões o inegável potencial poético do cinema. Assim sendo, não parecerá exagerado afirmar que um dos maiores poetas cinematográficos do primeiro século de existência da sétima arte foi o realizador russo Andrei Tarkovsky.
Quando se fala de cinema russo, e muito particularmente quando se propõe abordar os cineastas que se seguiram às primeiras gerações protagonizadas por nomes como Sergei Eisenstein ou Vsevolod Pudovkin, é praticamente impossível passar ao lado do nome de Tarkovsky, de tal forma o seu contributo foi decisivo para a afirmação internacional de algum cinema produzido na União Soviética no pós-guerra – e isto apesar de só ter assinado sete longas-metragens em trinta anos de actividade marcados por uma constante tensão com os decisores (e censores) estatais da sua terra natal.
Filho do poeta Arseny Tarkovsky e da actriz/editora Maria Ivanovna, Andrei teve um percurso curioso até chegar à sétima arte: após uma infância turbulenta muito marcada pelo caos da 2ª Guerra Mundial, estudou árabe no Instituto Oriental de Moscovo mas, a meio do curso, desistiu deste e tornou-se prospector de minérios para a Academia das Ciências da União Soviética. Contudo, durante uma expedição ao rio Kureikye para a referida academia, Tarkovsky decidiu que iria novamente mudar de vida e dedicar-se ao cinema. Assim, candidatou-se e foi admitido na VGIK, a escola de cinema do estado russo, onde foi aluno de cineastas como Mikhail Romm ou Grigory Chukhray, influências decisivas na formação da sua prática artística. Na sua passagem pela escola, e beneficiando da relativa abertura de mentalidade permitida pelo regime de Nikita Khrushchev, Tarkovsky conheceu as obras fundamentais do neo-realismo italiano, as ousadias formais e narrativas da Nouvelle Vague francesa e a filmografia de autores tão distintos como Akira Kurosawa, Luis Buñuel, Robert Bresson, Andrzej Wajda ou Ingmar Bergman.
A sua primeira curta-metragem de ficção, realizada enquanto aluno da VGIK, data de 1956 e trata-se de uma adaptação do conto “The Killers” de Ernest Hemingway, que Robert Siodmak já transpusera para o grande ecrã em 1946 com a longa-metragem “Assassinos”. Seguem-se as médias-metragens “Hoje Não Haverá Saída Livre” em 1959 e “O Rolo Compressor e o Violino” de 1961, sendo este último o filme de formação do curso de cinema.
Estreia-se no campo da longa-metragem em 1962, quando os estúdios da Mosfilm decidem colocá-lo no cargo de realizador de “A Infância de Ivan” em substituição de Eduard Abalov. Adaptado do conto “Ivan” de Vladimir Bogolomov, o filme conta-nos a história de um menino que, no decorrer da 2ª Guerra Mundial, vê a sua família ser assassinada pelos Nazis e decide vingar-se tornando-se uma criança-soldado da resistência russa, sendo utilizado pelas forças soviéticas como uma arma de infiltração em zonas de difícil circulação para um adulto. O tema pode ser bélico, mas não são as batalhas que verdadeiramente interessam ao realizador: Tarkovsky prefere captar momentos do dia-a-dia na base militar, as relações entre o grupo de adultos e o injustamente precoce Ivan, as paixões possíveis num ambiente de tensão quase permanente, o instante fugaz de um beijo.
Olhar melancólico e desencantado sobre a guerra e as suas nefastas consequências, filmado num deslumbrante preto-e-branco pelo director de fotografia Vadim Yusov, “A Infância de Ivan” trata-se, provavelmente, do filme mais acessível de Tarkovsky, com uma linguagem cinematográfica mais clássica e um argumento de estrutura (relativamente) linear, embora já nele se encontrem alguns dos elementos temáticos e formais que viriam a ser característicos do estilo do seu autor: a imponente presença da natureza, os travellings longos que sublinham o peso da passagem do tempo, a representação dos sonhos e da memória (algo que Ingmar Bergman elogiou bastante ao falar deste filme), a infância perdida e o absurdo da condição humana. No Festival de Veneza de 1962, o filme arrecada o Leão de Ouro e, assim, confirma o nome do seu realizador como alguém do qual se deve esperar grandes coisas.
Em 1965, assina o seu próximo projecto, “Andrei Rublev”, uma longa-metragem de ficção histórica dividida em oito episódios baseados na vida do pintor homónimo, protagonizada por Anatoly Solonitsyn, actor que viria a ser uma presença recorrentemente nos próximos filmes do realizador. Com um argumento escrito em colaboração com o seu antigo colega do curso de cinema (e também realizador) Andrei Konchalovsky, “Andrei Rublev” é o primeiro filme de Tarkovsky a abordar o tema da religião e da criação artística, constituindo um ponto de viragem na carreira do autor: por um lado, o seu estilo torna-se vincada e assumidamente contemplativo, mais focado na vivência e observação do momento filmado do que na progressão sem obstruções da narrativa, com uma montagem menos découpada e planos de duração muito maior que resultam num ritmo mais lento, explorando assim as capacidades da sétima arte para fazer-nos sentir o efeito da passagem do tempo; por outro lado, o realizador tem aqui a sua primeira grande colisão com os censores estatais que, acreditando ver no filme uma meditação sobre os desafios da criação artística em tempos de enorme opressão política que poderia lembrar demasiado o próprio condicionamento dos artistas sob o jugo do regime soviético, exigem diversos cortes à montagem final. Os vários regressos à mesa de montagem resultaram na existência de diversas versões com durações distintas que estrearam nos diversos mercados mundiais, tendo o realizador assumido uma preferência pela versão de 186 minutos. No Festival de Cannes de 1967, o filme conquistou o prémio FIPRESCI, mas, apesar de algumas ante-estreias em 1966 e 1969, as autoridades do seu país de origem só lhe autorizaram a exibição em terreno soviético em 1971.
Entretanto, Tarkovsky assume as rédeas da realização daquela que viria a ser a primeira de duas incursões no género da ficção científica, bem como o seu primeiro filme a cores: a adaptação do romance “Solaris” do autor polaco Stanislav Lem. Entendido por muitos como uma espécie de resposta soviética ao épico “2001 – Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick (filme que Tarkovsky não apreciava de todo), “Solaris” é uma viagem no espaço que, na realidade, é uma viagem ao interior da alma do seu protagonista, Kris Kelvin, um psicólogo viúvo encarregue de averiguar por que razão a equipa da estação espacial que orbita o misterioso planeta Solaris terá enlouquecido – missão essa que ganha estranhos contornos quando Hari, a falecida mulher de Kelvin, reaparece incólume nos sinistros corredores da estação… Temas como a culpa, a solidão, o repressão do desejo ou a mortalidade são o cerne de “Solaris”. O ritmo é lento, por vezes mesmo de forma provocatória (veja-se a sequência da auto-estrada em Tóquio), mas o extraordinário tratamento visual e sonoro aliado a um trabalho de actores fabuloso tornam-no uma experiência inesquecível. Em 1972, o Festival de Cinema de Cannes voltou a galardoar Tarkovsky com o prémio FIPRESCI e, mais significativamente, com o Grande Prémio do Júri.
A esta aventura metafísica no espaço segue-se, em 1975, uma obra magnífica e inclassificável: “O Espelho”. Desprovido de qualquer tipo de narrativa convencional, é talvez um dos maiores exemplos do que pode ser a poesia cinematográfica no seu estado mais puro: um conjunto livre de sequências onde a memória da infância, o sonho, a literatura, a pintura, a música, os afectos e as emoções se misturam de uma forma indescritível que cativa qualquer espectador que esteja disponível para perder-se nos seus mistérios. Contudo, a originalidade formal do filme acabaria por ser tanto a sua força como a causa da sua desgraça: perante uma obra difícil de interpretar que não facilita a vida do espectador, o público russo reagiu desfavoravelmente, a crítica dividiu-se entre o apoio entusiasta e a mais violenta rejeição e as instituições oficiais começaram a pôr em causa a utilização de fundos públicos para a criação de um tipo de cinema opaco e (potencialmente) desprovido de qualquer ideia ou conteúdo.
O próximo projecto é de 1979 e seria uma nova e igualmente marcante visita ao género da ficção científica: “Stalker”, adaptação livre do romance “Piquenique à Beira da Estrada” dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky (que também assinam o argumento). Num futuro próximo, numa cidade não especificada, existe A Zona, uma área larga onde as leis da realidade não são seguidas, encontrando-se vedada dos cidadãos pelas autoridades governamentais. Ninguém sabe se A Zona é uma criação humana, sobrenatural ou extraterrestre – porém, correm rumores de que no seu interior existe um edifício abandonado com uma sala que concede o desejo mais íntimo a quem nela entrar. Neste contexto, um “stalker” é uma espécie de passador que ganha a sua vida organizando excursões ilegais à Zona. E quando um escritor e um cientista anónimos contratam um stalker reputado para os guiar até à mítica sala dos desejos, os três homens irão começar uma viagem muito mais pessoal do que poderiam imaginar.
Escolhendo utilizar apenas alguns elementos da história do romance original, Tarkovsky constrói um argumento perfeitamente estruturado, mostrando que é possível fazer uma forma de narrativa cinematográfica equivalente à prosa poética, e realiza uma grande meditação sobre a crença, a ciência, a transcendência e o desespero naquele que é um mergulho profundo no coração das trevas do homem. Há muito que admirar neste filme, desde a maravilhosa fotografia de Alexander Knyazhinsky (capaz de tornar belos os mais decrépitos dos locais) à música hipnótica de Eduard Artmyev, isto para não falar na banda-sonora meticulosamente elaborada que é peça fundamental na criação de um ambiente inóspito e misterioso. Cannes voltou a aplaudir o resultado final e brindou-o com o Prémio do Júri Ecuménico na edição do festival de 1982.
Algum tempo depois, Tarkovsky irá abandonar a Rússia, tornando a sua relação com as autoridades soviéticas ainda mais tensa e problemática. Parte para Itália onde, na companhia do lendário argumentista Tonino Guerra (colaborador frequente de realizadores como Michelangelo Antonioni ou Federico Fellini), fará uma viagem pelo país de Leonardo em busca de inspiração e de locais que possam ser o palco do seu próximo projecto: um filme que aborda a experiência de um escritor russo expatriado e corroído pela nostalgia da sua terra natal. Esta viagem resultará em dois títulos distintos que irão estrear em 1983: o documentário “Tempo de Viagem”, que acompanha as deambulações de Tarkovsky e Guerra por Itália enquanto escrevem o guião do seu próximo filme; e a longa-metragem de ficção que dará pelo nome de “Nostalghia”. Do esboço inicial atrás referido, os dois argumentistas irão conceber a história de Oleg, um poeta russo que, acompanhado pela sua intérprete italiana, visita uma remota estância termal em busca de informações relativas a um compositor russo que por lá terá passado durante uma temporada importante da sua vida, já que Oleg encontra-se a tentar escrever a sua biografia. A nostalgia da sua pátria (será desadequado dizer antes “saudade”?), no entanto, fará com que esta investigação meramente profissional dê lugar a uma auto-análise introspectiva. Feito sem o apoio financeiro dos estúdios da Mosfilm (que terão saído do projecto já com este em andamento), “Nostalghia” é o mais asceta e austero dos filmes de Tarkovsky, e é muito difícil não ver no drama da personagem principal uma espécie de confissão autobiográfica.
Em 1986 sairá o seu último filme, “O Sacrifício”. Rodado na Suécia com uma equipa técnica/artística formada por vários colaboradores habituais de Ingmar Bergman (um dos cineastas que Tarkovsky mais admirava), conta-nos a história de Alexander, um velho intelectual ateu que, no dia do seu aniversário, quando a sua família se encontra reunida para celebrar a ocasião, é confrontado com a iminência de um insólito conflito nuclear que aparenta ter uma origem sobrenatural. Para salvar as pessoas que ama, Alexander apercebe-se que será necessário um sacrifício muito peculiar para apaziguar a ira de Deus – algo que colocará as suas convicções mais profundas em questão. Estamos, novamente, no terreno do sacro e do profano, numa parábola que mistura mitologia cristã com o imaginário pagão. Contendo alguns dos travellings mais complexos da sua filmografia (executados com uma precisão de relojoeiro) e uma utilização extremamente criativa da cor, “O Sacrifício” é um drama familiar onde Tarkovsky conjuga o fantástico e o mundano magistralmente.
É uma despedida triste mas esperançosa da vida e do cinema: Tarkovsky faleceria pouco depois de ter terminado a sua derradeira obra, fulminado por um cancro do pulmão que provavelmente terá sido provocado pela sua exposição a ambientes radioactivos durante a rodagem de “Stalker”. Vários projectos ficaram por concretizar, entre os quais um filme sobre o escritor Fyodor Dostoevsky, um dos seus autores predilectos. Algumas das suas reflexões teóricas sobre a arte do cinema foram fixadas em livro no magistral “Esculpir o Tempo” (título da edição em português do Brasil da Martins Fonte) e nos seus diários publicados postumamente, sendo a sua influência visível no trabalho de cineastas tão diferentes como Aleksandr Sokurov, Andrei Zvyagintsev, Lars von Trier ou Mamoru Oshii. Mais do que tudo, Tarkovsky deixou-nos uma obra fascinante e enigmática, difícil mas não inacessível, certamente desafiante, mas muito recompensadora para quem se empenhe a (re)visitá-la sem sentir que a deve decifrar como se de um enigma se tratasse. Afinal, é o próprio realizador que afirma no documentário que Donatella Baglivo lhe dedicou aquando da rodagem de “Nostalghia”:
“Mesmo agora, não tenho a certeza se sei o que é o cinema. Para mim, permanece um grande mistério.”