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Introdução
Talvez para um jovem dos anos 70, como eu fui, quando a acção era contida, a violência disfarçada e a grande aventura algo ainda a ser reinventado, as histórias de detectives causavam um fascínio muito especial. Ainda sem saber o que significava o Film Noir, ver a gabardina de Humphrey Bogart, envolta no fumo de tabaco, enquanto o actor com o seu meio sorriso, enfrentava mais um perigo sem pestanejar, tinha que me prender a atenção.
De lá para cá aprendi a reconhecer e a amar o género, que tem muito mais que o exposto numa simples história policial. Tento neste ciclo fazer algum sentido do que aprendi, e com ele rever clássicos, preencher algumas lacunas com filmes sempre na lista de espera, e quem sabe, convencer algumas pessoas a ver filmes que são pérolas que tanto influenciaram o cinema moderno.
Nota: Por uma questão de uniformidade e simplicidade, reduzi este ciclo a 30 filmes do período áureo do Noir. São todos produzidos nos Estados Unidos, todos no intervalo 1941-1958, e todos a preto e branco. Outros critérios haveria, escolhi aqueles que me faziam sentido no momento. Quer nesta página, quer nos apêndices, falar-se-á de mais filmes e outros géneros derivados do Film Noir.
O Film Noir
<pO chamado Film Noir foi um sub-género do cinema americano popularizado nos anos 40 e 50, habitualmente ligado a histórias de cariz policial ou criminoso. Foi assim chamado por autores franceses, que viam naqueles filmes um espelho do que chamavam a “série noire” – traduções francesas dos anos 20 e 30 de histórias americanas de gangsters.
Produto do pós-guerra, o Film Noir é o retrato de uma geração de veteranos, desiludida com a América que reencontra após o final da II Guerra Mundial. Essa América, muitas vezes filmada por realizadores provenientes ou com raízes na Europa (Billy Wilder, Otto Preminger, Fritz Lang, Jacques Tourneur, Robert Siodmak, Edward Dmytryk, Edgar G. Ulmer), é vista como decadente, e sórdida até. Nela reina o cinismo, a mesquinhez, e um submundo onde cada personagem parece viver para si só, quase de um modo selvagem e instintivo, num autêntico Darwinismo social.
É a América da noite, dos bares, do vício, da corrupção, dos personagens solitários de intenções duvidosas. Uma América em que o escuro e sujo dos becos acompanha a escuridão e sujidade da alma humana, que mais nada procura que encontrar subsistência para o dia seguinte, quem sabe à custa do próximo, pelo qual sente apenas indiferença. Essa América traz-nos personagens cínicos, amorais, duros e frios. Eles são personificados muitas vezes pelo detective privado, uma espécie de predador solitário de uma selva urbana, onde ele vagueia, e na qual por vezes se confunde com a sua presa.
Mas não se pense que o Film Noir é um género exclusivamente policial. Nele o crime é apenas um pretexto para mostrar e explorar os lados mais baixos e vis do comportamento humano, e a sua degradação psicológica. Proveniente do filme B (filmes de baixos orçamentos, e actores pouco conhecidos), o Film Noir, apesar dos poucos recursos, e aparente decisão de pouca sofisticação visual (sempre filmado a preto e branco, nos seus anos áureos), prendeu a atenção do público, e projectou para a ribalta nomes que até aí passavam despercebidos, como Humphrey Bogart, Glenn Ford, Dana Andrews, John Garfield e Richard Widmark. Mesmo assim, e salvo raras excepções foi desprezado pela crítica americana do seu tempo, e relegado para segundo plano pelas majors Paramount, Warner Bros, MGM e Twentieth Century-Fox.
Devido à influência alemã, o Film Noir destaca-se pela estilização dos cenários, o uso das sombras de modo geométrico, e o célebre “chiaroscuro” (um forte contraste claro-escuro onde o objecto fortemente iluminado se destaca do fundo escuro, sem linhas de contorno), numa exuberância visual que fazia da noite um personagem por si só. Célebre pelos planos únicos, em que longas sequências eram filmadas (frequentemente fazendo com que os personagens não se encarassem, para economia da filmagem), o Film Noir trouxe toda uma linguagem cinematográfica, que frequentemente incluia: as sombras de persianas; o piscar dos neons no exterior; a voz off que narra a história; o flashback que por vezes dura todo o filme; as gabardinas do detective; o fumo do tabaco sempre presente, e claro a mulher fatal. Sem haver uma evolução nos anos 40 e 50, o Film Noir tem uma coesão de estilo onde o tom, a iluminação, os ângulos, a montagem e o ponto de vista se mantêm constantes de filme para filme.
Os Personagens Noir
Na galeria de personagens temos à cabeça a figura icónica do anti-herói. Este é um homem que vive uma vida vazia. Alheio a condutas morais, procura sobreviver à selva urbana, imiscuindo-se indiscriminadamente nas histórias de crime e decadência, que por vezes o arrastam consigo. É cínico, não acreditando em ninguém, e usando a sua frieza como uma defesa, que o afasta de qualquer calor humano que possa vir a sentir. Luta para sobreviver e o seu triunfo será chegar ao fim do dia sem perder a vida, a liberdade, ou a própria sanidade mental.
Destaca-se o polícia ou detective privado, como em “Relíquia Fatal” (The Maltese Falcon, 1941), “Laura” (Laura, 1944), “Enigma” (Murder, My Sweet, 1944) e “À Beira do Abismo” (The Big Sleep, 1946); o homem que procura fugir do seu passado: “Assassinos” (The Killers, 1946), “O Prisioneiro do Passado” (Dark Passage, 1947), “O Denunciante” (Kiss of Death, 1947), “O Arrependido” (Out of the Past, 1947); e o aventureiro, que troca a ética por uma via mais fácil: “Pagos a Dobrar” (Double Indemnity, 1943), “O Destino Bate à Porta” (The Postman Always Rings Twice, 1946), “Desvio” (Detour, 1946).
Em contraste temos a figura da “mulher fatal” (a femme fatale). É geralmente loura, sedutora, e tem, em relação ao anti-herói, uma relação de poder, sendo capaz, através sua manipulação, sexualidade e falsa fragilidade, de colocar os homens que a rodeiam em situações de inferioridade e dificuldade. São exemplos Barbara Stanwick, Lauren Bacall, Lana Turner ou Rita Hayworth.
Ela é o produto da transformação social dos anos 40, em que, com os homens ausentes na guerra, a mulher passava ao mercado de trabalho, começava a deter posições de poder, e se tornava segura da sua sexualidade. Desse modo a mulher dos anos 40 surgia como ameaçadora e castradora aos olhos masculinos. Talvez por isso, nas mãos de escritores masculinos, a mulher fatal seja quase sempre (logo desde “Relíquia Macabra”) pouco digna de confiança, e a principal culpada dos eventos negativos, como são exemplos claros os já citados: “Pagos a Dobrar” e “O Destino Bate à Porta”.
Dada a negatividade atribuída à mulher, a única mulher em que o homem do Film Noir confia é aquela que surge como quase assexual. Esta é muitas vezes sua parceira, e com comportamentos masculinizados.
O papel político
Sendo um tipo de filme que joga com a desilusão social e até política, o Film Noir foi por vezes visto como uma crítica ao capitalismo em geral, ou ao Sonho Americano em particular. No entanto o Film Noir não tenta explicar ou justificar acções ou situações sociais. Limita-se a mostar. Nisso podendo considerar-se próximo do existencialismo.
Não surpreende, porém, que muitos dos seus autores principais fossem realizadores conhecidos pelas suas ideias de esquerda, muitos deles a braços com as teias do MaChartismo, que ajudou ao fim do género.
O pós-Noir
Embora o género tenha tido a sua idade de ouro nos anos 40 e 50, e se considere “A Sede do Mal” (Touch of Evil, 1958) de Orson Welles, como o último grande Noir clássico, as suas influências são visíveis em todo o cinema americano das décadas seguintes. Tal é visível não só pelo enorme número de remakes, como pelos realizadores que tiveram os seus maiores sucessos explorando e adaptando o género à cor, a outros orçamentos e a uma linguagem mais moderna.
Ainda na fase clássica destacam-se já alguns Noir coloridos, como “Niagara” (Niagara, 1953) de Henry Hathaway, e “Chamada para a Morte” (Dial M for Murder, 1954) e “A Mulher que Viveu duas Vezes” (Vertigo, 1958), ambos de Alfred Hitchcock. Mas após uma fase de menor produção nos anos 60, quando o Noir passou à televisão, e deixou o grande ecrã para as super produções, é nos anos 70 que o género resurge. Tal acontece graças a filmes policiais de uma maior violência que, pelas mãos da nova geração de realizadores de Hollywood, tentam trazer uma crueza que vê no Noir um meio privilegiado.
Surgem então filmes como ” Os Incorruptíveis Contra a Droga” (The French Connection, 1971) de William Friedkin, “Chinatown” (Chinatown, 1974) de Roman Polanski, “Os Cavaleiros do Asfalto” (Mean Streets, 1973) e “Taxi Driver” (Taxi Driver, 1976), ambos de Martin Scorsese.
O género continua a partir daí, seja numa clara reprodução da iconografia antiga, ou em histórias modernas, muitas vezes com enormes sucessos comerciais. São exemplos: “The Postman Always Rings Twice” (1981), “Body Heat” (1981), “Blood Simple” (1984), “Basic Instinct” (1992), “Se7en” (1995), “The Usual Suspects” (1995), “Jackie Brown” (1997), “L.A. Confidential” (1997), “Memento” (2000), “The Black Dahlia” (2006), “No Country For Old Men” (2007), “Drive” (2011).
O sucesso do Noir mede-se ainda pela sua transversalidade, não sendo raro surgir misturado com outros géneros, como as aventuras de super-heróis: “Batman” (1989), “Batman Returns” (1992); a animação: “Who Framed Roger Rabbit?” (1988); o terror: “Angel Heart” (1987), “The Ninth Gate” (1999); e claro, acima de tudo, a comédia: “Play It Again, Sam” (1972), “After Hours” (1985), “The Naked Gun” (1988), “Get Shorty” (1995), “The Big Lebowski” (1998), “Kiss Kiss Bang Bang” (2005).
O seu uso na Ficção Científica, gerou aquilo a que muitos autores chamam o Tech Noir, e que é perfeitamente ilustrado em filmes como “Blade Runner” (1982), “Strange Days” (1995), “12 Monkeys” (1995), “Gattaca” (1997), “Dark City” (1998), “eXistenZ” (1998), “Minority Report” (2002), “Sin City” (2005), “Inception” (2010) ou “Looper” (2012).
Bibliografia consultada
- BRION, Patrick – Mémoirs du Cinéma: Les Films Noirs. Genève: Éditions Liber, 1995.
- MULLER, Eddie – Film Noir [em linha]. GreenCine. Vários Autores, actual. 2007 [consult. 2012]. Disponível na Internet <URL: http://www.greencine.com >
- OLIVEIRA, Luis Miguel (Coord.) – Billy Wilder: As Folhas da Cinemateca. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2002.
- SILVER, Alain, URSINI, James, DUNCAN, Paul (Ed.) – Film Noir. Köln, London, Los Angeles, CA: Taschen Books, 2012.
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