Surrealismo no cinema

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Introdução

"Fellini- Satyricon", Federico Fellini, 1969Penso que os primeiros filmes com forte conteúdo surrealista que vi, então na TV, foram “Sanatorium pod Klepsydra (1973, Wojciech J. Has) e “Fellini – Satyricon” (1969, Federico Fellini), era eu adolescente. Não posso dizer que os tenha compreendido minimamente, ou mesmo gostado deles. Mas a verdade é que nunca mais os esqueci. Marcaram-me pela forma como me provocaram, com narrativas desconcertantes e soluções visuais por vezes chocantes.

Como gosto do fascínio trazido pelo acesso a áreas mais irracionais da nossa mente, sobretudo aquelas que se dizem subconscientes, de instintos e desejos primários, e da forma como nos são transmitidas de modo quase poético, como seja por sonhos ou pela arte, decidi embrenhar-me neste ciclo dedicado ao surrealismo no cinema. Com ele tentarei explorar filmes e formas de fazer cinema menos comerciais.

Nota: Não se pretende neste ciclo escrever uma lista completa de cinema surrealista nem tão pouco definir o que isso seja. O objectivo é simplesmente olhar para alguns filmes que usam elementos surreais na base da sua concepção. A lista é portanto reduzida e perfeitamente subjectiva.

O movimento surrealista

Os Surrealistas em Paris, 1933O surrealismo, como movimento artístico, surgiu em França no século XX, no período entre as duas guerras mundiais. Começou como um movimento literário, que se baseava na associação livre de ideias, como forma a libertar o subconsciente do realismo, num tipo de automatismos que touxessem à tona um tipo de imaginação que não seja limitada pelo racional e convencional, dando a conhecer os processos primários pelos quais o pensamento humano acontece. Em certa medida, o movimento insere-se num conjunto de novas linguagens trazidas para a arte (apressadamente chamadas de avant-garde), que incluíam o impressionismo, o expressionismo, o dadaísmo, o cubismo e outras artes abstractas, transversais a literatura, música e artes visuais.

Sigmund FreudO conceito iniciou-se na poesia, nas obras de Louis Aragon (1897–1982), Paul Éluard (1895–1952) e Philippe Soupault (1897–1990), e ganhou uma forma estruturada nos ensaios do psicólogo e escritor André Breton (1896–1966). Com o seu Manifesto do Surrealismo (1924), Breton traçava as bases teóricas do movimento, e definia o caminho a seguir. Sendo a França a capital cultural europeia da Europa do momento, local onde rumavam todos vultos intelectuais, o surrealismo logo extravasou fronteiras e tornou-se um fenómeno internacional.

"A canção de amor", Giorgio de Chirico, 1914Os surrealistas procuravam inspiração na obra do psicólogo austríaco Sigmund Freud (1856–1939) que, através da associação livre, pretendia aceder a zonas da mente humana habitualmente bloqueadas pela educação, e inibições sociais. O que Freud procurava através da hipnose e estudo dos sonhos, os surrealistas tentavam ao criar imagens surpreendentes, bizarras e chocantes, desprovidas de racionalidade. Em ambos os casos a resposta estava no acesso ao subsconsciente.

"Hera", Francis Picabia, 1929O movimento iniciou-se como literário, e é essencialmente sobre literatura que incidem os textos de Breton. No entanto, desde logo os artistas visuais aderiram ao imaginário surrealista. Pintores como Giorgio de Chirico (1888–1978), Pablo Picasso (1881–1973), Francis Picabia (1879–1953), e Marcel Duchamp (1887–1968), estiveram entre os primeiros a deixar o surrealismo marcar as suas obras, ganhando a admiração de Breton e seus seguidores. Àqueles seguiram-se artistas visuais como Max Ernst (1891–1976), André Masson (1896–1987), Joan Miró (1893–1983), Man Ray (1890–1976) e René Magritte (1898–1967). As suas obras privilegiavam o erotismo, os desejos reprimidos, a violência, as "O anjo da lareira", Max Ernst, 1937paisagens inspiradas em sonhos, e recorrendo a automatismos visuais. O método da collage foi também usado como uma justa expressão do subconsciente. Um passo em frente deu-se com o adoptar de distorções e ilusionismos visuais, patentes na obra de Salvador Dalí (1904–1989), Paul Delvaux (1897–1994) e Yves Tanguy (1900–1955).

Em 1929 Dalí mudou-se para Paris, e tornou-se um dos mais célebres representantes do Surrealismo, na pintura. Claramente usando a sua influência freudiana, Dalí canalizou o subconsciente na sua obra, sendo motivo de elogio no Segundo Manifesto do Surrealismo de Breton.

"Os amantes", René Magritte, 1928O Surrealismo, como movimento organizado, terminou no início da Segunda Guerra Mundial, com a invasão de França pelas tropas Nazis, e a fuga dos intelectuais para outras cidades do mundo. Um certo renascimento deu-se em Nova Iorque, onde alguns destes artistas se reuniram, e viram a sua obra encontrar refúgio nas galerias de arte. Uma Exibição Internacional de Surrealismo seria mesmo organizada por André Breton "O enigma do desejo", Salvador Dalí, 1929em 1940 na Cidade do México, e esta englobava já artistas sul-americanos como Frida Kahlo (1907–1954) e Diego Rivera (1886–1957), os quais não se consideravam surrealistas, mas tinham a sua obra impregnada de simbolismo e folclore local. Essa síntese entre surrealismo e outros conceitos abstractos continuou a marcar a obra de muitos outros artistas posteriores, até aos dias de hoje.

Os surrealistas e o cinema

"La coquille et le clergyman", Germaine Dulac, 1928Embora os dadaístas e outras correntes avant-garde rejeitassem o cinema como um meio preso ao impressionismo e ao realismo, alguns autores começaram a experimentar com as novas linguagens logo nos anos 20. Entre os primeiros realizadores influenciados por estes movimentos a usar a abstracção no cinema contam-se Hans Richter (1888–1976) e Viking Eggeling (1880–1925), Marcel Duchamp, e Dudley Murphy (1897–1968), que influenciados pela nova pintura filmaram usando inovadoras técnicas de fotografia.

Cedo os surrealistas sentiram que o cinema, dada a sua natureza de veículo de sonhos, podia ser um meio de expressão do movimento. Por exemplo Breton adorava o cinema de Chaplin e Buster Keaton, pela sua capacidade de quebrar convenções e nos surpreender com instintos prímários. O teórico Antonin Artaud (1896–1948) foi o primeiro surrealista a escrever um argumento completo para cinema, que seria realizado por Germaine Dulac como “La Coquille et le Clergyman” (The Seashell and the Clergyman, 1928), autora da teoria do “Cinema Puro”, que se baseava em ideias do Surrealismo e defendia o cinema como um meio liberto da literatura, teatro ou outras artes visuais. Artaud rejeitaria o filme como uma negação do surrealismo, o que iniciava uma polémica que nunca mais terminaria: o que é verdadeiramente um filme surrealista?

"Un chien andalou", Luis Buñuel e Salvador Dalí, 1929Umas mais outras menos aceites pelo movimento surrealista oficial, começaram a surgir obras cinematográficas claramente influenciadas pelos seus conceitos. Estão entre elas “Entr’acte” (1924) de René Clair e Francis Picabia; “Estrela do Mar” (L’Étoile de Mer, 1928) de Man Ray; “Um Cão Andaluz” (Un Chien Andalou, 1929) e “L’Age d’or” (The Golden Age, 1930) ambos de Luis Buñuel e Salvador Dalí; “O Sangue de Um Poeta” (Le Sang d’un Poète, 1930) de Jean Cocteau.

"Spellbound", Alfred Hitchcock, 1945“Um Cão Andaluz” foi largamente elogiado por André Breton, tornando-se um pouco a bíblia do cinema surrealista. Mas o filme foi um sucesso comercial, e isso foi mal visto pelo movimento, que não aceitava que as suas ideias pudessem ser facilmente acedidas pelas massas. O filme seguinte de Buñuel e Dalí faria com que ambos discordassem e terminassem a sua colaboração, com Dalí a retirar-se para a pintura (participaria ainda numa colaboração com Walt Disney, e noutra com Alfred Hitchcock). Buñuel rejeitaria o movimento em 1932, mas muitos dos seus filmes futuros continuariam cheios de referências surrealistas.

O último filme a ser considerado como pertencendo ao movimento surrealista oficial é “Dreams That Money Can Buy” (1947) de Hans Richter, contando com colaborações de Hans Richter, Man Ray, Duchamp, Léger, Max Ernst e Alexander Calder.

O surrealismo no cinema

Embora oficialmente o movimento surrealista tenha terminado há muito, e embora desde sempre se tenha discutido se um filme é ou não puramente surrealista, a verdade é que o surrealismo como conceito não parou de influenciar a obra de muitos autores da segunda metade do século XX até aos dias de hoje.

"O sétimo selo", Ingmar Bergman, 1956Sem se pretender dar uma lista completa (tal é impossível de definir) de filmes de influência surrealista, pode-se apontar desde já um conjunto de realizadores que recorrem frequentemente ao surrealismo como meio de elaborar a sua construção narrativa e visual. É o caso de reputados autores europeus como Ingmar Bergman, Federico Fellini, Wim Wenders e Jacques Prévert; realizadores da Europa de Leste como Jan Svankmajer, Walerian Borowczyk e Wojciech Has; sul-americanos como Alejandro Jodorowsky, Fernando Arrabal e Raúl Ruiz; realizadores anglo-saxónicos contemporânos como os americanos David Lynch e Terry Gilliam, o canadiano David Cronenberg e o britânico Peter Greenaway. Todos eles de uma forma ou de outra recorrem a artífícios narrativos desconcertantes, simbologia freudiana, exploração de desejos reprimidos e uso constante de uma ironia subversiva, para confundir e provocar os espectadores.

Bibliografia consultada

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2 thoughts on “Surrealismo no cinema”

  1. sergio cortes said:

    Estranho a ausencia de Alain Resnais

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