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Yabu no naka no kuronekoUm conjunto de samurais, famintos, fugidos da guerra, encontra uma casa junto a um bambuzal, onde vivem duas mulheres, sogra (Nobuko Otowa) e nora (Kiwako Taichi). Os samurais não só lhes comem a comida, como as violam e provocam um incêndio que queima completamente casa e mulheres. Anos depois, os samurais que viajam pela região são seduzidos por duas mulheres fantasmas, que os matam chupando-lhes o sangue. Um dia, o chefe local envia o seu samurai Gintoki (Kichiemon Nakamura) para tentar descobrir que monstros são estes. O que ele descobre é que as mulheres são os fantasmas da sua mãe e da sua esposa.

Análise:

Do realizador do muito aclamado “Onibaba” (1964), surgiu quatro anos depois, com produção da famosa Toho Company, mais um filme de fantasmas baseado no folclore japonês. Com um título que literalmente significa «Um gato preto num bambu», Kaneto Shindō filmou, a preto e branco, uma história de uma maldição fantasmagórica, provinda de uma vingança, e que se volta contra si própria pelas contradições trazidas pela memória de um amor.

A acção decorre no período Heian (de 794 a 1185), era áurea dos samurais, período esse que ganha o seu nome da cidade de Heian-kyō (a moderna Quioto), pico do poder imperial no Japão. É um período de guerra civil, em que ser samurai é, acima de tudo, um caminho de glória. Respeitados e temidos, os samurais viam-se como uma classe superior, que merecia melhor tratamento, só pelo facto de se dispor a lutar.

É nesse contexto que, um grupo de samurais derrotados, famintos e em fuga, encontra uma casa de aldeões, e se sente com legitimidade de roubar a comida, violar as mulheres, e ainda destruir tudo pelo fogo. Na casa habitam Yone (Nobuko Otowa), e a sua jovem nora, Shige (Kiwako Taichi), que depois de mortas, regressam como fantasmas, com um só objectivo, matar todos os samurais que encontrem, alimentando-se do seu sangue. É esse o juramento que fazem aos deuses infernais, e cuja quebra lhes valerá a eternidade no inferno. Um após outro, elas atraem os samurais que passam pela região, levando-os a sua casa, seduzindo-os, e matando-os quando estes baixam a guarda.

Um dia, o samurai que pretendem matar é nem mais que Gintoki (Kichiemon Nakamura), o filho de Yone, e marido de Shige. Este tem dificuldade em acreditar no que vê, já que as julgava mortas, mas acaba seduzindo Shige, que, em vez de o matar, passa a noite com ele, bem como as seguintes. Ao fim de sete noites Shige já não está presente, e Yone explica ao filho que a esposa quebrou o juramento, e para o salvar, condenou-se a si própria ao inferno. Gintoki volta à cidade e conta ao seu chefe (Kei Sato) que um dos fantasmas morreu, e este manda-o matar o segundo, já que as mortes de samurais continuam.

Quando Gintoki volta a confrontar a mãe, vê o seu rosto demoníaco reflectido numa poça, e num impulso atinge-a, cortando-lhe um braço, que se transforma numa pata de uma animal. Mais tarde a mãe surge-lhe na forma de uma vidente que o vem ajudar a ultrapassar o período de luto, conseguindo roubar o braço, e fugir com ele.

Como habitual no cinema de terror japonês desta época, “Kuroneko” tem no seu centro fantasmas femininos, os espíritos Onryō, cuja acção é de vingança contra um mal anterior (a violação e assassínio das protagonistas). No entanto, mais que uma história de puro terror, o filme torna-se um drama, quando as duas mulheres percebem que para se manterem fiéis ao seu juramento, terão de matar a única coisa que ainda amam, o filho de uma e esposo da outra. Desse drama nasce a tensão principal da história, com o samurai a ter dificuldades em entender o que se passa, até ser demasiado tarde.

Tal como fizera em “Onibaba”, Kaneto Shindō volta a filmar um mundo onde (para além da sequência inicial, e alguns outros breves momentos) parece ser sempre noite. Nessa noite perene, são os bambus, que definem o cenário, com o leitmotiv do fumo (evocativo do incêndio que causou a morte das mulheres), que se torna por isso um pouco irreal. Percebemos que ao saírem da cidade, os personagens entram num conto de fadas. Essa importância do espaço é continuada na casa fantasma, que ora parece uma mansão, como logo de seguida se revela como um monte de cinzas ainda fumegantes. É como se o tempo ali não passasse, e se vivesse dentro de um sonho.

Com interpretações demasiado expressivas, como habitual no teatro tradicional japonês (note-se o uso da luz para destacar alternadamente espaços e personagens, como se estivéssemos no teatro), “Kuroneko” evidencia-se ainda pelas caracterizações, com o conhecido hikimayu (hábito em que as mulheres arrancavam as sobrancelhas, substituindo-as por duas linhas esborratada a meio da testa), e também pelos movimentos coreografados dos fantasmas, que cortam o ecrã em passos teatrais.

Com uma história de fantasmas, baseada no folclore do budismo e taoísmo tradicionais que imperavam no Japão feudal, Kaneto Shindō volta a espantar pela atmosfera onírica, grau de poesia e alguma alegoria quanto aos efeitos da guerra e diferenças de classes do Japão, numa altura em que se vivia ainda o trauma do pós-guerra e as consequências de uma reconstrução acelerada, entre o fascínio pelo futuro e o orgulho do passado.

Nobuko Otowa em "Kuroneko" (Yabu no naka no kuroneko, 1968) de Kaneto Shindō

Produção:

Título original: Yabu no naka no kuroneko; Produção: Toho Company; País: Japão; Ano: 1968; Duração: 94 minutos; Distribuição: Toho Company; Estreia: 24 de Fevereiro de 1968 (Japão).

Equipa técnica:

Realização: Kaneto Shindō; Produção: Nobuyo Horiba, Kazuo Kuwahara, Setsuo Noto; Argumento: Kaneto Shindō; Música: Hikaru Hayashi; Fotografia: Norimichi Igawa, Kiyomi Kuroda [preto e branco]; Montagem: Hisao Enoki; Direcção Artística: Takashi Marumo; Cenários: Toshiharu Takazu; Figurinos: Yoshio Ueno; Caracterização: Shigeo Kobayashi; Direcção de Produção: Mihoko Yoshino.

Elenco:

Kichiemon Nakamura (Gintoki), Nobuko Otowa (Yone, A Mãe), Kei Sato (Raiko, Chefe dos Samurais), Rokkô Toura (Um Samurai), Kiwako Taichi (Shige, A Nora), Taiji Tonoyama (Agricultor), Hideo Kanze (Mikado).