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Annie HallEmbora reputado como comediante, tendo até aí criado um estilo próprio, facilmente reconhecível, Woody Allen queria mais. Em 1977, supreendendo todos os que com ele trabalhavam, o realizador decidiu passar da comédia burlesca ao drama. Alicerçando-se na fotografia de Gordon Willis, o príncipe negro de Hollywood, e tendo Marshall Brickman como parceiro de escrita, Allen voltou a confiar nos amigos Diane Keaton e Tony Roberts para criar um novo tipo de comédia dramática, em jeito autobiográfico, mais baseada nos personagens que nas situações cómicas. O resultado foi um sucesso estrondoso, que valeu ao filme vários Oscars, fazendo dele um ícone, que ainda hoje serve de referência.

Sinopse:

Partindo de um monólogo que apresenta o filme como uma autobiografia, seguimos a história de Alvy Singer (Woody Allen), e o impacto que Annie Hall (Diane Keaton) teve na sua vida.

A curta, mas intensa, relação entre os dois é motivo para Alvy, introspectivamente, olhar para a sua vida, desde a infância até à actual carreira de comediante, passando pelas relações com as mulheres, e as suas principais neuroses: a morte e o ódio pela pseudo-intelectualidade.

Análise:

Por mais que se queira ser original, não há outra forma de o dizer quando se fala de “Annie Hall”. “Annie Hall” foi o filme que marcou toda a carreira de Woody Allen, aquele que o tornou um autor consagrado, e aquele ao qual todos os seus filmes posteriores são comparados. Não foi à toa que “Annie Hall” valeu a Allen os Oscars de melhor filme, realizador e argumento.

Talvez em 1977 ninguém esperasse que o pequeno comediante, célebre pela stand-up comedy e por delirantes filmes burlescos, pudesse ter em si a capacidade para um filme completamente diferente. Mesmo no seu círculo, Woody Allen foi desincentivado por aqueles que diziam que ele não tinha razões para mudar a fórmula ganhadora em que tinha existido até então. Mas Woody Allen acreditou, e sabia que precisava de ir mais longe. Precisava de deixar as caricaturas e mergulhar mais fundo em personagens mais reais. Só assim podia trabalhar emoções mais próximas de si, mais dolorosas e tocantes.

“Annie Hall” surge assim como uma comédia romântica, de um humor fino, ligeiro e sempre presente. Mas ao contrário de em filmes anteriores, esse humor agora não conduz a história, é apenas uma tonalidade que a ajuda a definir. É uma comédia sim, mas agri-doce. Um pouco à luz do que Chaplin fazia, “Annie Hall” consegue fazer-nos rir, fazer-nos comover por simpatia com os personagens, ao mesmo tempo que nos consegue provocar um nó na garganta pela fatalidade inerente à história que, tal como Alvy Singer, sabemos não poder remediar.

E é aí que começa o triunfo de “Annie Hall”. A história é-nos apresentada como um episódio da vida de um homem comum. Não tem um início declarado, não tem um fim marcado, apenas vai acontecendo, como acontecem todas as histórias reais, insinuando-se sem que delas nos apercebamos. Esse carácter realista, que o tom de comédia não tenta disfarçar, tem muito de marcadamente autobiográfico. Também Woody Allen é um comediante, com uma infância parecida à descrita no filme, um olhar nostálgico sobre a velha Brooklyn, vivendo em Manhattan e, na altura, com dois divórcios às suas costas. Também Woody Allen tem o mesmo problema com a fama, o mesmo desejo do anonimato, a mesma alergia à Califórnia, e a mesma raiva aos pseudo-intelectuais que se comportam como modernos sofistas, vendendo verdades sem pudor, apenas para auto-promoção. E no mais perfeito paralelismo, tal como Alvy Singer também Woody Allen recorre ao teatro (e cinema) para reescrever as suas histórias e lhes encontrar um sentido. Como exemplo prosaico desse realismo pode-se dizer que até a avó de Annie foi inspirada na verdadeira avó de Diane Keaton, e na forma como esta olhava os judeus. Acrescente-se que o interesse amoroso de Alvy Singer é interpretado pela actriz que foi namorada de Allen… e que curiosamente tem como verdadeiro nome Diane Hall.

Esse realismo trazido pelos personagens é acentuado pelo trabalho de câmara de Gordon Willis que, evitando planos fixos e estudados, passeia com eles. A câmara, insinua-se à volta dos personagens e segue-os como se fosse parte do filme. Esse modo descontraído de filmar, sem cortes, adapta-se à técnica de improvisação e diálogos imperfeitos, que acaba por nos dar um maior envolvimento com as cenas.

Depois de experimentar com muitas das ideias do seu universo, particularmente o amor e a morte, referidos nos filmes precedentes, Woody Allen encontrava finalmente o veículo certo para explanar os seus sentimentos. E deste ponto de vista podemos olhar para os filmes anteriores como tubos de ensaio. Por isso em “Annie Hall” voltam os monólogos e as quebras da quarta parede, mas agora sem efeitos cómicos, e com uma honestidade que nos toca profundamente. Voltam as one-liners, os famosos aforismos cómicos do autor, mas agora como setas direccionadas à nossa alma, que nos fazem pensar, e não só rir. Os vários artifícios narrativos são usados com imaginação, e por vezes com humor, mas sempre com uma a intenção de desenvolver os personagens e os seus sentimentos, e não apenas para motivar gargalhadas.

O filme, aliás, é um manual de artifícios narrativos interessantes, numa mescla de fantasia e realidade. Para além dos citados monólogos e do falar directamente para o espectador, temos interrupções no diálogo para comentários de autores, entrevistas de rua a transeuntes, pensamentos legendados durante um diálogo, visitas ao passado reminiscentes de Dickens, interacção com personagens do passado, uma sequência de animação, e claro uma estrutura geral sem sequência temporal, que consegue mostrar-nos diferentes histórias da vida de Alvy Singer com um equilíbrio perfeito.

Essa atemporalidade é aliás uma característica fundamental (e muito copiada) de “Annie Hall”. Ao mostrar-nos as cenas fora de ordem, Woody Allen retira-lhes o peso da cronologia como um sentido inerente que ele não quer usar. É um pouco como o primeiro beijo de Alvy e Annie, dado fora de contexto apenas para libertar os momentos seguintes. Do mesmo modo vemos pela primeira vez Alvy e Annie numa briga ocasional sem importância, antes de testemunharmos o seu primeiro encontro. Dessa forma Allen diz-nos que não é tanto a sequência de eventos nem uma causalidade em que ele não acredita, mas sim a caracterização dos sentimentos que lhe importa transmitir.

Mas falar de “Annie Hall” é também falar da simbiose entre Woody Allen e Diane Keaton. A actriz recebeu por este filme o Oscar de melhor actriz principal. Keaton mostra um à vontade notável como a desajeitada musa de um Pigmalião, que se fascina pela sua graça, mas não resiste a tentar “educá-la” e transformá-la até ao ponto de não mais a reconhecer. Keaton é soberba e faz-nos acreditar que Annie existe, talvez por colocar muito de si própria no personagem (incluíndo a célebre forma de se vestir). Talvez por isso somos obrigados a sentir ainda mais pela perda de Alvy.

E “Annie Hall” é isso mesmo, uma crónica de uma perda anunciada. Woody Allen inicia o filme com um monólogo que se tornaria célebre, mas que dá desde logo ao filme contornos de tragédia grega. Nele, Alvy Singer (que no monólogo ainda não se apresentou como tal, mostrando-nos que é apenas Woody Allen) confessa-nos viver num paradoxo: não aceita estar num contexto para o qual foi aceite. Tal lembra-nos a velha ideia de ser mais fácil conquistar que manter algo, e é sob essa perspectiva que Allen olha para as relações amorosas, fazendo constantemente a velha pergunta: o que é preciso para que uma relação perdure?

Esse é o motivo do filme, e afinal o tema mais recorrente da carreira de Woody Allen. Analisamo-lo através de situações do dia a dia, e terminamos sem uma resposta. Esse é o génio de Woody Allen, e o triunfo do seu realismo. Em “Annie Hall” não há soluções mágicas nem reviravoltas felizes. O que há é alguém que tenta dar um sentido àquilo que vive, mesmo não acreditando em sentidos absolutos. Alguém que tenta sobreviver à dor, mesmo proclamando que no mundo só existem os miseráveis e os horríveis. E para sobreviver mais um dia, Allen/Singer refugia-se no existencialismo que o leva a aceitar que mesmo sem sentido na vida, todos “precisamos dos ovos”. E por isso, é difícil não sentirmos “Annie Hall” como, mais que um filme, um pedaço das nossas vidas.

Produção:

Título original: Annie Hall; Produção: Jack Rollins-Charles H. Joffe Productions; Produtor Executivo: Robert Greenhut; País: EUA; Ano: 1977; Duração: 93 minutos; Distribuição: United Artists; Estreia: 20 de Abril de 1977 (EUA), 30 de Março de 1978 (Portugal).

Equipa técnica:

Realização: Woody Allen; Produção: Jack Rollins; Produtor Associado: Fred T. Gallo; Argumento: Woody Allen, Marshall Brickman; Música: Artie Butler; Fotografia: Gordon Willis; Direcção Artística: Mel Bourne; Cenários: Robert Drumheller, Justin Scoppa Jr.; Montagem: Ralph Rosenblum; Guarda-roupa: Ruth Morley; Caracterização: Fern Buchner; Director de Animação: Chris K. Ishii.

Elenco:

Woody Allen (Alvy Singer), Diane Keaton (Annie Hall), Tony Roberts (Rob), Carol Kane (Allison), Paul Simon (Tony Lacey), Shelley Duvall (Pam), Janet Margolin (Robin), Colleen Dewhurst (Mãe Hall), Christopher Walken (Duane Hall), Donald Symington (Pai Hall), Helen Ludlam (Avó Hall), Mordecai Lawner (Pai de Alvy), Joan Neuman (Mãe de Alvy), Jonathan Munk (Alvy – 9 anos), Ruth Volner (Tia de Alvy), Martin Rosenblatt (Tio de Alvy), Hy Anzell (Joey Nichols), Rashel Novikoff (Tia Tessie), Russell Horton (Homem na fila do cinema), Marshall McLuhan (O próprio), Christine Jones (Dorrie), Mary Boylan (Miss Reed), Wendy Girard (Janet), John Doumanian (Amigo com Cocaína), Bob Maroff (Homem à entrada do cinema), Rick Petrucelli (Homem à entrada do cinema), Chris Gampel (Médico).