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Tsai Ming-liang
por Rafael Santos
autor do blog Memento Mori
A Segunda Nova Vaga, movimento artístico que germina no início dos anos 1990, conta com Tsai Ming-liang como um dos seus principais precursores.
Fiéis à essência da corrente artística, os filmes do realizador malaio retratam a vida urbana em Taiwan, focando-se na sua ocupação por determinadas personagens ou na relação entre estas. Uma íntima perspectiva desta população, apoiada por uma maior aproximação à realidade propriamente dita. Temas honestos que não se encaixam numa narrativa convencional mas sim num percurso naturalista.
Tsai Ming-liang apoia esta noção naturalista com a representação dos seus actores, que deambulam defronte à câmara como se esta não fosse mais do que um objecto invisível que não os impede de levar a cabo a rotina diária. A atitude da câmara passa por aguardar pela entrada em campo das personagens, como se estando a par de todos os seus movimentos de forma antecipada.
Vários são os indivíduos que podem servir de amostra para a vida vivida em Taiwan mas o realizador contemporâneo retrata essa fatia do Mundo à escala das suas personagens, como se os espaços que habitam fizessem parte integrante de si próprios.
Conflitos políticos, crescente urbanização, luta constante perante a pobreza, são apenas alguns dos pontos aprofundados por Ming-liang. A água é um elemento frequentemente usado nos seus filmes. Este motivo recorrente espelha um mau sistema de canalização, do qual resultam inundações em pequena escala, nomeadamente no apartamento das personagens (Rebels of the Neon God; The River; The Hole; Face). Este elemento ganha um protagonismo alargado quando se pinta de poluição (The Hole) ou se dá o seu escasseamento (The Wayward Cloud).
O seu cinema atribui especial importância ao som ambiente, rejeitando o uso de banda-sonora, com excepção ao som diegético. Ainda neste aspecto, é notório o desenrolar de momentos musicais (The Hole; The Wayward Cloud; Face), que ilustram determinados estados de espírito das personagens. Esta é apenas uma das formas de tratamento que o realizador encontrou para retratar situações que se dizem banais e óbvias na sua essência e na sua afirmação perante o Mundo.
Tsai Ming-liang explora uma sétima arte que tanto bebe do lago de Andrei Tarkovsky, ao apresentar planos fixos extremamente longos. Enquadramentos que abrem uma janela para as personagens sentirem que podem demorar o tempo necessário a completar determinada acção, o que acaba por intensificar a naturalidade na arte de representar. Momentos íntimos que reflectem acções do dia-a-dia e que funcionam como imagens universais, são enquadrados em todos os filmes que compõem a sua obra. Momentos que reflectem a sociedade e que são rejeitados pelo espectador mais comercial, que não se dirige à sala de cinema para observar determinado indivíduo em pleno processo de alívio na sanita.
Os planos longos aproximam-se da realidade ao retratar uma passagem de tempo facilmente assemelhável a esta. Esta longevidade nos planos atinge o seu auge no 6º filme da sua carreira, Goodbye, Dragon Inn. No referido filme, a personagem feminina apresenta-se com uma deficiência que a impossibilita de caminhar a um ritmo normal. Através de uma montagem cuidada, observamos vários planos longos a cobrir todo o percurso desta personagem.
Sendo talvez o exemplo mais minimalista da sua carreira, o filme é igualmente exímio na sua ausência (quase) total de diálogos, outro elemento bastante característico do cerne do seu cinema. É requerida uma maior verdade não no acto da palavra mas sim no movimento e interacção dos corpos. Esta falta de comunicação no sentido restrito da palavra é igualmente explorada. Na longa-metragem The Hole, este défice de comunicação é objectificado através de um pequeno buraco que separa dois estranhos que entram em colisão e que se descobrem como necessários um ao outro.
Em muitos dos seus filmes, a comunicação dá-se por intermédio do acto sexual. O explorar da sexualidade e a busca por amor são alguns dos motivos a catapultar a jornada das personagens. Em certos instantes, as personagens cruzam-se no enquadramento sem noção de que são de igual importância para o espectador, que pode ou não reconhecer tal como coincidência. Tsai Ming-liang retrata relações entre estranhos, momentos efémeros que se podem revelar de elevada importância numa existência.
“I feel I belong neither to Taiwan nor to Malaysia. In a sense, I can go anywhere I want and fit in, but I never feel that sense of belonging.” Palavras do realizador malaio que são transmitidas em imagens em alguns dos seus filmes, ainda que em personagens enraízadas em apartamentos. Uma dessas personagens, Hsiao-Kang, cresce no mundo diegético do realizador. Interpretada por Lee Kang-sheng, esta personagem participa em todos os seus filmes e afirma-se como o seu alter-ego. Tal como o próprio actor o faz, também Ming-liang deposita na personagem várias das suas próprias vivências, dúvidas e esperanças.
Estabelece um percurso para este seu actor/personagem fetiche, iniciando-o em 1992 ainda em idade jovem, com uma vida vazia e em busca de sentido, no filme Rebels of the Neon God. Promove-se a uma tentativa de suicídio (Vive l’Amour), sofre no corpo a separação dos pais (The River), lida com a morte da figura paterna (What time is it there?), embrenha-se na dura realidade da vida (/strong>The Wayward Cloud) e volta a observar a morte de perto, desta vez espelhada na sua mãe (Face).
Através desta personagem, o realizador critica a própria indústria na qual desempenha funções. Hsiao-Kang vê a sua ida ao cinema negada (Rebels of the Neon God), representa um pequeno papel num filme (The River), descobre o cinema de François Truffaut (What time is it there?) e acaba a trabalhar como projeccionista num cinema que apresenta a sua última sessão antes de fechar portas (/strong>Goodbye, Dragon Inn). Antes de se tornar o realizador que tanto ambicionou (Face), experimenta na pele o lado sujo da indústria cinematográfica ao representar num filme pornográfico. Apreende as verdades da vida com a sétima arte como pano de fundo.
Extremamente consistente na sua carreira, Tsai Ming-liang continua a retratar Taiwan mediante um conjunto de características que tão bem soube reunir e salientar através da lente da câmara. Fã confesso de Truffaut, o realizador continua a ganhar um relevo internacional cada vez maior.
Filmes de Tsai Ming-liang:
- “Os Rebeldes do Deus Neon” [Rebels of the Neon God] (Qing shao nian nuo zha, 1992)
- [Vive l’Amour] (Ai qing wan sui, 1994)
- “O Rio” [The River] (He liu, 1997)
- The Hole] (Dong, 1998)
- [What time is it there?] (Ni na bian ji dian, 2001)
- “Adeus, Dragon Inn ” [Goodbye, Dragon Inn] (Bu san, 2003)
- “O Sabor da Melancia” [The Wayward Cloud] (Tian bian yi duo yun, 2005)
- “Não Quero Dormir Sozinho” [I Don’t Want to Sleep Alone] (Hei yan quan, 2006)
- [Face] (Visage, 2009)
Carlos Branco said:
Se há coisa em que eu acho que estes ciclos promovidos pelo JC valham a pena, é a capacidade dos autores desses ciclos mostrarem aos leitores algo de novo e eu, neste caso, confesso desconhecimento naquilo que aqui trouxeste Rafael, mas que por vir de ti neste texto fiquei com curiosidade em conhecer. Abraço
Rafael Santos said:
Concordo plenamente Carlos, tenho aprendido bastante ao ler estes textos. E obrigado pelas palavras, era precisamente esse o meu propósito. Conseguir dar a conhecer aos leitores a obra de um realizador um tanto ou quanto à margem. Por isso, creio ter atingido esse objectivo 🙂
Abraço,
Rafael Santos
Rafael Santos said:
JC, Obrigado pelo convite! Foi bastante interessante partilhar este meu ponto de vista sobre um realizador que tanto aprecio. Ao escrever estas palavras, acabei por conhecer melhor o realizador e a linha condutora que se evidencia na sua obra.
Quanto à iniciativa propriamente dita, tem sido um prazer ler todos estes ciclos tão variados. Gosto desta liberdade que ditaste, da qual resultaram textos onde se pode descortinar um lado mais pessoal. Não só se têm visto gostos pessoais, mas também vontade de transmitir conhecimentos.
Abraço,
Rafael Santos
jc said:
Começo por agradecer ao Rafael pela sua participação, e por nos dar a conhecer um realizador que, pessoalmente, eu desconhecia. Visto que partilhamos o interesse por algum cinema mais “alternativo”, fico com vontade de conhecer.
De resto, é como o Rafael diz, esse lado pessoal é aquilo que de melhor temos para partilhar, já que verdades absolutas não existem, mas nos podemos enriquecer com as perspectivas uns dos outros.
Jorge Teixeira said:
Bom também não conheço nada do autor, infelizmente. Vou tratar disso o quanto antes. É também para isso que estas iniciativas servem.
Cumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo