Etiquetas

, , , , , , , , ,

L’ArgentDocumentando a passagem de mão em mão de notas falsas de 500 francos, “O Dinheiro” mostra-nos como essas passagens e trocas aleatórias são causadoras de tragédia. Tal concretiza-se na pessoa de Yvon (Christian Patey), o qual é acusado de falsificação, acabando condenado e incriminado por quem o sabe inocente. Daí em diante, Yvon vai ver a sua vida desabar completamente, vítima da ambição e hipocrisia alheias, das suas más decisões e das conspirações do destino, que o fazem perder toda a esperança e o lançam no crime violento.

Análise:

1983 foi o ano do último filme de Robert Bresson. Co-produção franco-suíça, “O Dinheiro” é uma adaptação livre do conto “O cupão falso” de Léon Tolstói. Nele, Bresson dá-nos mais um olhar frio sobre a natureza humana, numa história de descida e decadência, motivada pelas pressões quotidianas, em particular pelo nominal “dinheiro”.

Com esse mesmo dinheiro como objecto inicial, o filme começa com Norbert (Ernest Fourneau), um jovem estudante que, ao receber a mesada do pai (André Cler), lhe pede mais dinheiro para pagar dívidas. Negado o pedido, Norbert vai ter com um amigo, o qual lhe mostra uma nota falsa de 500 francos, que irão tentar passar numa loja de fotografia. Quando o fotógrafo (Didier Baussy) descobre o sucedido, repreende a sua colega (Béatrice Tabourin), a qual o lembra de já ter antes cometido o mesmo erro. Decidem então passar as notas falsas, e quem as recebe é Yvon (Christian Patey), um fornecedor de óleo, que ao usá-las inocentemente num restaurante é preso. No tribunal, os gerentes da loja e o seu empregado Lucien (Vincent Risterucci) mentem para incriminar Yvon, o qual perde o emprego. Ainda no tribunal, Norbert é reconhecido pela empregada da loja, que o denuncia na sua escola. Ao ser confrontada, a mãe de Norbert (Claude Cler) suborna os fotógrafos e o caso é enterrado. Já Lucien, é despedido por enganar os clientes nos preços, mas decide vingar-se tendo chaves da loja e do cofre. Lucien e o seu bando vão aumentando os crimes, desde copiar cartões de multibanco até um assalto a um banco, no qual incluem Yvon como motorista. Este acaba preso e nos meses que se seguem descobre que a filha pequena morreu de difteria, e que a mulher (Caroline Lang) o abandonou, o que o leva a tentar o suicídio. Também Lucien acaba preso, e confessando-se arrependido de ter causado a desgraça a Yvon, promete levá-lo consigo quando fugir da prisão, o que Yvon recusa. Finalmente libertado, Yvon começa por roubar e matar um casal de hoteleiros, sendo depois recolhido por uma mulher cega (Sylvie Van den Elsen) que confia nele, mesmo que o seu pai (Michel Briguet) o desaconselhe. Inicialmente agradecido pelo abrigo, Yvon acaba por matar todos à machadada para os roubar, confessando depois os seus crimes à polícia.

“O Dinheiro” é como que uma continuação de um sequência de contos urbanos de Robert Bresson, focando personagens desajustadas, cuja vida os conduzirá a uma definitiva queda. Nessa sequência incluem-se, por exemplo “Uma Mulher Meiga” (Une femme douce, 1969) e “Le diable probablement” (1977), filmes onde o evoluir das decisões e atitudes dos protagonistas era fruto de uma evolução interna (mesmo que condicionada por factores exteriores). Mas agora, em “O Dinheiro”, há todo um conjunto de circunstâncias que tornam essa trajectória como que causada por factores aleatórios que vão empurrando o protagonista (Yvon) para decisões cada vez menos acertadas, na sua relação com a necessidade de dinheiro. E é esse mesmo dinheiro o protagonista da primeira parte do filme (antes de nos preocuparmos com a sorte de Yvon), como se as pessoas que vemos fossem meros transportadores, tocados por tudo aquilo que de mau esse dinheiro trará.

Por essa razão, alguns críticos consideraram “O Dinheiro” um dos filmes mais românticos de Bresson, pois nele as justificações estão sempre presentes, e os eventos, provocados de fora, são dignos de nos fazer sentir compaixão. Não que o filme estabeleça uma diferença fundamental para com o cânone bressoniano. Voltamos a ter actores não profissionais, falas lidas sem interpretação, e todo o modo desapaixonado de enquadrar e filmar típicos em Bresson, e que tem como efeito retirar ao filme a capacidade de nos manipular as emoções. Com o dinheiro no primeiro plano, é ele o motivo do primeiro diálogo, e centro de enquadramento nas cenas em que é passado de mão em mão (e nota-se mais uma vez como os planos de mãos são tão importantes em Bresson). Isto num filme onde essas trocas são, essencialmente, pontos de transição, marcados visualmente no modo como a câmara se fixa em portas e passagens, nos momentos em que alguém entra ou sai de cena, como se essa passagem fosse mais importante que as próprias personagens. Do mesmo modo bressoniano o filme decorre por entre longas elipses, e um modo desapaixonado de focar os actores, muitas vezes (sobretudo nos movimentos) centrando-se em pés ou pernas que se movem, ao invés de procurar rostos.

Estabelecido o catalisador do filme (as trocas de notas falsas), forma-se uma teia de acontecimentos que têm um rumo claro: definir a trajectória descendente de Yvon. Primeiro vítima de uma circunstância que desconhece (passar uma nota que não sabia ser falsa), depois incriminado injustamente por pessoas que mentem para se ilibarem, por fim empurrado para o mundo do crime por se sentir sem opções. É como se Bresson comentasse essa queda (ou a queda em geral) como motivada pela sociedade e seus vícios (a ambição, a mentira, a hipocrisia, o medo de ser descoberto). Se por um lado temos aqueles como Norbert, que podem escapar graças à protecção de quem se dispõe a comprar-lhes a liberdade, por outro temos os que nada têm que os defenda, condenados a cair cada vez mais fundo. Essa queda torna-se, finalmente, cruel e indesculpável, quando Yvon, desiludido com a vida (prisão, morte da filha, abandono da esposa) passa do pequeno crime ao assassínio, completando a sua tragédia.

Sendo Bresson conhecido pela forma como a espiritualidade (num sentido muito lato) domina as suas histórias, poderemos perguntar-nos se não é o dinheiro a entidade transcendental aqui em evidência. Como um deus ou um agente do destino, é o dinheiro, e as suas várias presenças (alvo de cobiça, motivo de crime, recompensa de mentira, suborno de silêncio, etc.), que manipula o enredo, forja caminhos, traz e leva personagens e condena pessoas, porventura pegando em gente inocente e fazendo dela criminosa. Dir-se-ia, por isso, que há uma certa componente marxista no filme, que vem da crítica do tal endeusamento (note-se como o companheiro de cela de Yvon chama Deus ao dinheiro). Nessa teia só a chamada Senhora dos Cabelos Grisalhos parece imune. Praticando o bem sem interesse, ela confessa que se pudesse todos perdoaria – suplantando-se a Deus, não necessariamente o cristão, mas o deus implacável do filme: o dinheiro. Por isso, a sua morte é ainda mais chocante, como que significando que a inocência não tem lugar no mundo onde o dinheiro dita todas as regras.

Comparado por vezes com “O Carteirista” (Pickpocket, 1959), uma história onde a dedicação ao crime tinha algo de nietzschiano, “O Dinheiro” tem a curiosidade de ter no elenco Caroline Lang, filha de Jack Lang, o então ministro da cultura de França, patrocinador do filme. O filme venceu o prémio dos realizadores no Festival de Cannes onde estreou a par de “Nostalgia” de Andrei Tarkosvki, ele próprio grande admirador de Bresson.

Caroline Lang e Christian Patey em "O Dinheiro" (L’Argent, 1983), de Robert Bresson

Produção:

Título original: L’Argent [título inglês: Money]; Produção: Marion’s Films / Eôs Films / France 3 Cinéma; Produtor Executivo: Antoine Gannagé; País: França / Suíça; Ano: 1983; Duração: 85 minutos; Distribuição: AMLF (França); Estreia: 16 de Maio de 1983 (Festival de Cannes, França), 18 de Maio de 1983 (França), 19 de Setembro de 1983 (Cinemateca Portuguesa, Portugal).

Equipa técnica:

Realização: Robert Bresson; Produção: Jean-Marc Henchoz, Daniel Toscan du Plantier; Produtores Associados: Jean-Pierre Basté, Patricia Moraz; Argumento: Robert Bresson [inspirado por “O Cupão Falso” de Léon Tolstói]; Música: Johann Sebastian Bach; Fotografia: Pasqualino De Santis, Emmanuel Machuel [cor por Eastmancolor]; Montagem: Jean-François Naudon; Design de Produção: Pierre Guffroy; Figurinos: Monique Dury.

Elenco:

Christian Patey (Yvon Targe), Vincent Risterucci (Lucien), Caroline Lang (Elise), Sylvie Van den Elsen (Mulher de Cabelo Grisalho), Michel Briguet (Pai da Mulher de Cabelo Grisalho), Béatrice Tabourin (Empregada da Loja de Fotografia), Didier Baussy (Dono da Loja de Fotografia), Marc Ernest Fourneau (Norbert), André Cler (Pai de Norbert), Claude Cler (Mãe de Norbert), Bruno Lapeyre (Martial), Jeanne Aptekman (Yvette), François-Marie Banier, Alain Aptekman, Dominique Mullier, Jacques Behr, Gilles Durieux, Alain Bourguignon, Anne de Kervazdoué, Bernard Lamarche-Vadel, Pierre Tessier, Eric Franklin, Jean-Louis Berdot, Yves Martin, Luc Solente, Valérie Mercier, Alexandre Pasche, Jean-Michel Coletti, Stéphane Villette.

Advertisement