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"Kaidan" (1964) de Masaki Kobayashi

Texto de Rita Santos
Autora do blogue “”Not a film critic
Colaboradora do website “SciFiWorld Portugal

J-Horror clássico numa certa Janela Encantada…

Estas coisas de colaborações tendem a assustar-me. Primeiro, porque aceito o desafio sem grandes hesitações (não li bem as regras, oops) e, em segundo lugar, pois dão-se-me sempre aquelas brancas que ditam que só consigo escrever algumas linhas mesmo à beirinha do prazo limite e deixo o desafiador com suores frios. «Será que ela vai corresponder?». Em terceiro e penosíssimo lugar, por estar convencida que pensam que sei mais do que aquilo que na realidade sei.

No que se refere ao cinema de terror japonês, vulgo «J-Horror», é difícil não colidir com aqueles que se viriam a tornar os filmes sensação do novo milénio, “Ringu” (1998) ou o “Ju-on – The Grudge” (2002), tantas vezes citados, quais vacas sagradas do género. Ambos baseados em obras e/ou fenómenos sociais relevantes à época, chocaram audiências com os seus onryō (fantasmas vingativos) e uma forma muito peculiar, (apenas no ocidente admita-se), de fazer terror. Estavam menos focados em criar momentos de arrebatamento súbito, desinteressados em estruturas de narrativa tradicional e, indiferentes ao apelo em esclarecer até ao ínfimo pormenor tudo quanto se passa nestas estórias. Em 2016, com “Sadako vs. Kayako”, a constituir um último fraco suspiro do franchise, seria de pensar que o J-Horror clássico sofreu o golpe final de uma morte lenta e há muito anunciada. Errado. Por brilhantes que por si só fossem um “Ringu” ou um “Ju-on – The Grudge” e, este último até é uma sequela de um produto criado para televisão ao contrário do que muitos imaginam, não surgem de ideias geniais nascidas num vácuo e muito menos constituem os primeiros a retratar uma aparição que emerge de um qualquer plano sobrenatural e pretendem arrastar alguém de volta com elas.

Desde a religião, à literatura, ou pintura, passando pela história do conto oral ou a expressão dramática e, designadamente, o kabuki que o elemento do sobrenatural existe de modo mais ou menos latente. O que os autores dos clássicos primordiais (anos 50-60) do cinema de terror japonês fizeram não foi mais do que repescar esses elementos e alocar-lhes a bonita roupagem de sétima arte. O misticismo próprio das religiões do budismo e shintoísmo prestam-se a que demónios, planos diversos da realidade e metamorfos possam entrar e sair das narrativas às conveniências do argumento ou do orçamento.

À época, realizadores como Kaneto Shindō foram vanguardistas e até mais ousados que muitos dos realizadores actuais que abordaram temas como o feminismo e o sexo de modo extremamente inteligente sem cair no género pinku. Por outro lado, existe uma profunda crítica e fascínio sobre os tempos do samurai e o seu código de honra que pode ser revisitado vezes sem conta em estórias como o supremo êxito do teatro kabuki “Yotsuya Kaidan” (1965), que tem sofrido inúmeras adaptações para séries, séries animadas, longas-metragens e em muitas outras formas de expressão cultural. Das estórias aqui exploradas talvez “Jigoku” (1960) represente o elemento estranho. Onde obras como o “Onibaba” (1964) assentam no simbolismo, o seu realizador, Nobuo Nakagawa, prefere uma imagem mais visceral, dantesca até, do inferno. Já “Kaidan” (1964) é o filme antologia que vai buscar contos de fantasmas ao início do século XX e que fazem ecoar outros filmes bem mais recentes como “Ekusute” (2007) ou um “The Pillow Book” (1996).

Existe sobretudo uma certa perfídia no modo como o folclore japonês diferencia a Mulher, o Homem e os seus papéis na sociedade desde a época e marcadamente até hoje. A Mulher, vitimizada, acaba por se tornar ela própria a predadora (“Ju-on”). Fraca, é incapaz de romper o ciclo que se abateu sobre ela e forçada a repetir um ciclo de violência e de morte, como o que se iniciou nela. Como se a Mulher fosse mais facilmente acometida de ardores de morte e de paixão do demo. A sua forma espectral é normalmente apresentada com longos cabelos negros desvelados, como os de alguém que não se poderia cuidar… e com a veste típica, um kimono branco, cor associada a ritos fúnebres (“Ringu”). No caso de “Yabu no naka no kuroneko” (1968), ela toma esta forma após um demónio sob a forma de um gato lamber as suas feridas. Esta imagética pode ser encontrada muitos anos mais tarde na Catwoman de “Batman Returns” (1992). Incidentalmente, em 2015 estreia “The Inerasable”, um pequeno filme que se inicia com um ponto de partida tão simples quanto uma suposta assombração num apartamento que desemboca numa investigação sobre uma possível raíz comum das histórias de horror que assolam o território do Japão e se entrecruzam entre si, em conjunção com mitos urbanos modernos para, por sua vez, criar novos mitos e que se replicam e canibalizam a si próprios. Começam a ver formar-se um padrão? O J-Horror não é senão, um resultado de anos e anos de transmissão de contos essenciais da história japonesa e a sua sucessiva apropriação e reinvenção por um punhado de magos do cinema desse país, de que os clássicos dos anos 50 e 60, constituíram uma primeira fornada.

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