O Gótico da Hammer

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Introdução

A Hammer Film ProductionDesde criança me lembro de ver fascinado estes filmes chamados de terror, e que no entanto, sem a crueza explícita do horror dos anos 80 em que cresci, pareciam aveludados, numa atmosfera de cor garrida, de castelos encantados e monstros românticos.

Talvez porque nessa idade não me atrevesse a sustos maiores, este tornou-se o meu terror preferido, feito de charme e não de efeitos especiais. Mesmo sem conhecer o nome Hammer, eu já esperava que a televisão fosse exibindo estes filmes, que reconhecia pela cor, pelo estilo, e pelos actores. Aos poucos fui conhecendo muitos, alguns revistos diversas vezes. O gosto por eles nunca diminuiu, até ganharem para mim um estatuto de culto. Isso trouxe-me a este ciclo, que me deu a oportunidade de rever ou ver pela primeira vez os filmes que fizeram a história do Horror Gótico da Hammer, a casa que escorria sangue, e que criou um imaginário próprio feito de um terror elegante e aristocrático, que nunca mais foi igualado.

Nota: Alguns outros filmes poderiam ser incluídos no ciclo, já que a fronteira entre o thriller e o terror nem sempre é clara. Optei por incluir apenas filmes a cores (já que foi essa a inovação da Hammer), escolhendo aqueles que mais me pareceu merecerem o cunho de “terror”. Não é de excluir que mais tarde mais um ou outro filme seja incluído.

O Gótico

O Castelo de OtrantoArtisticamente, o estilo gótico define-se como um estilo de arquitectura. Nascido no século XII (a Catedral de S. Denis em França, é o seu primeiro exemplo), ele que marcaria uma boa parte da Europa durante os 3 ou 4 séculos seguintes, alastrando a outras artes como a pintura e as artes decorativas. Mas por se ter desenvolvido na chamada “era das catedrais”, o estilo gótico teve sempre aliado a si uma aura de imponência, robustez e solenidade.

No entanto, quando nos referimos ao gótico na literatura e no cinema é uma outra definição que devemos procurar. Com efeito, o termo “gótico” generalizou-se sobretudo no século XVIII, quando o conceito de monumento histórico era solidificado, e nos meios culturais se começava a distinguir entre os diversos tipos de monumento, catalogando-o consoante o seu período. Aí, liberta da antiguidade, ou do período clássico, a arte medieval tornou-se um objecto de estudo próprio, em que diversas nações procuravam elementos da sua identidade nacional.

Assim, o que era antigo, medieval, soturno, em ruínas, desde antigas catedrais a cemitérios, de estados de espírito ao vestuário, passava a ser “gótico”, ainda que não fosse necessariamente representativo do estilo arquitectónico que originou o nome.

Hoje considera-se que o primeiro romance gótico foi “O Castelo de Otranto”, de Horace Walpole, publicado em 1764, que com os seus elementos fantásticos e histórias macabras passadas num castelo, dariam o tom para a literatura gótica futura.

A partir de então, o estilo gótico da literatura andou sempre de mãos dadas com a cultura britânica, e embora existam muitos exemplos de literatura gótica noutras línguas, tornou-se muito vulgar crer que a literatura gótica é tipicamente inglesa. Seja ele um escape da tradicional frieza inglesa, pode mesmo tratar-se do surprir de uma necessidade de procurar num fantástico rural, provincial, feito da natureza e dos elementos, uma explicação para o isolamento britânico em relação à Europa em tantos períodos de conflito. Seja como for é lá que encontrarão terreno fértil autores como Clara Reeve, Ann Radcliffe e Matthew Gregory Lewis cujos romances tornaram o gótico um género popularizado.

Com o século XIX os autores românticos viram no gótico uma paisagem perfeita para os seus humores. Um movimento que primava pelo elogio da emoção e da natureza, o tumulto interno, a revolta contra o racionalismo, via um aliado neste ambiente que privilegiava o fantástico, o inexplicável, o não natural e não científico. Poetas como Samuel Coleridge, Percy Shelley, John Keats ou Lord Byron não só contribuiram como ajudaram a definir o cânone do gótico.

Mary Shelley's FrankensteinO gótico passava assim a incluir o terror; definia a mansão ou castelo como (mais que espaço prosaico) protagonista dos acontecimentos; saudava as ruínas como símbolo físico da decadência; e projectava o chamado “herói byroniano” arrogante, ambíguo, atormentado, e capaz de provocar a sua própria desgraça. Tal torna-se evidente nos romances de Mary Shelley (Frankenstein), Charles Robert Maturin (Melmoth the Wanderer), e mais tarde em Bram Stoker (Dracula), Robert Louis Stevenson (O Médico e o Monstro), Henry James (The Turn of the Screw), entre tantos outros.

Proliferam as histórias de fantasmas, os contos macabros, o gosto mórbido pela literatura de crime, e o género torna-se transversal a outros. Emily Brontë (O Monte dos Vendavais) e Charlotte Brontë (Jane Eyre), escrevem os seus romances em ambientes de influência gótica. Edgar Allan Poe, torna o gótico popular nos Estados Unidos. Arthur Conan Doyle, popularizado por criar Sherlock Holmes não é imune à atracção do género. E nem mesmo Jane Austen resiste a tocar-lhe. O mesmo farão Charles Dickens e Oscar Wilde, que acabam por escrever histórias de fantasmas. Estas tornavam-se aliás bastante populares nos dois lados do Atlântico, surgindo autores prolíficos no género como Amyas Northcote, Edith Nesbit e M. R. James.

Sendo tipicamente associado, primeiro ao perído romântico, e mais tarde à epoca vitoriana, a literatura gótica prolongou-se até aos nossos dias, sem interrupções, sendo evidente nas obras de, por exemplo, Daphne du Maurier, Anne Rice e Stephen King. E claro que os exemplos do seu uso no cinema e na televisão são mais do que se poderia aqui enunciar.

A Hammer Film Productions

Hammer FilmsFundada na Inglaterra, em Novembro de 1934, por William Hinds (um actor de palco cujo nome artístico era Will Hammer) e Enrique Carreras (um empresário de origem espanhola) a Hammer Productions Ltd., foi registada em 1934, como produtora cinematográfica, a que se juntou em 1935 a destribuidora independente Exclusive Films, de pouco renome. Com apenas cinco filmes produzidos a Hammer declarou falência em 1937, mas a Exclusive continuou, distribuindo filmes de outras companhias.

Em 1945, James Carreras, filho de Enrique tomou as rédeas da Exclusive e em 1946 registou a nova produtora de filmes: Hammer Film Productions. James, um homem de negócios, chamou para o seu lado a geração seguinte, Anthony Hinds (filho de Will Hinds) e o seu próprio filho Michael Carreras. Estes dois homens, verdadeiros apaixonados pelo cinema, tornaram-se responsáveis pela direcção artística da companhia, e reuniram a equipa que a tornaria famosa, centrada no argumentista Jimmy Sangster, o realizador Terence Fisher, o director artístico Bernard Robinson, o compositor James Bernard e os caracterizadores Phil Leakey e Roy Ashton, entre outros.

Com um orçamento apertado a produtora concentrava-se em produções rápidas de baixo custo (thrillers, aventuras, ficção científica, comédias). Sob iniciativa de Anthony Hinds, a Hammer decidiu alugar armazéns e casas vazias, em vez de estúdios, o que levaria à construção dos emblemáticos Bray Studios (casa da Hammer de 1951 a 1966), que confeririam o ar espaçoso e misterioso aos seus interiores, mesmo junto à floresta de Oakley Court, tantas vezes filmada.

Em 1955 deu-se a mudança na direcção da Hammer, com o filme “Quatermass Xperiment”, um filme de culto de ficção científica de terror, baseado numa série de rádio. O sucesso inesperado alertou a Hammer para o público mais jovem, ávido de ser surpreendido e mesmo aterrorizado.

FrankensteinJames Carreras procurou então parceiros para distribuição nos Estados Unidos, e a Hammer decidiu reactivar diversos nomes do cinema de horror americano dos anos 30 e 40. Inesperadamente, a Hammer resolveu filmar estas histórias a cores, não se negando a mostrar sangue a jorrar sempre que possível. Baseando-se em clássicos literários do gótico (Mary Shelley, Bram Stoker, Robert Louis Stevenson, Arthur Conan Doyle, entre outros), a Hammer optou pelo filme de época, em interiores inteligentemente desenhados, filmados numa explosão de cor. Como imagem de marca ficaram para sempre: antigos castelos soturnos, cujas silhuetas se desenhavam em colinas, interiores decadentes, igrejas em ruínas, cemitérios medievais, florestas brumosas, pântanos misteriosos, e uma noite opressiva e perene como que retirada de um sonho.

Grande parte da fórmula de sucesso da Hammer é devida à realização de Terence Fisher (10 filmes entre 1957 e 1962, mais 6 depois dessa data até 1974). É Terence Fisher quem escreve a linguagem que caracterizará a Hammer daí em diante, com uma realização segura, fluída, subtil, sem cedências à espectacularidade gratuita. O seu estilo é rígido e sobranceiro, sem auto-páródia ou escusados artifícios narrativos. Com Fisher, a narrativa, embora com temas mágicos, assenta sempre no racionalismo, atmosfera e sexualidade implícita. Os seus anti-heróis (os tradicionais heróis byronianos) são personagens torturadas, a braços com um dualismo moral. Habitualmente cientistas, médicos, estudiosos de inspiração renascentista, que unem com arrogância ciência, fé, e superstição. A batalha final é entre o bem e o mal, que surge nas mais variadas formas, desde mitos pagãos, encantamentos, maldições antigas, fraquezas de alma, heresias, ou simplesmente arrogância intelectual e científica, que culminará na sua destruição, cuja inevitabilidade nos lembra uma tragédia grega.

A Maldição do LobisomemO sucesso inesperado de “A Máscara de Frankenstein”, virou o público para a Hammer, e provou correcta a opção das parcerias com distribuidoras americanas, bem como o uso da cor. Daí em diante James Carreras teria muito que lutar com a censura, mas a sua persistência e charme revelaram-se fundamentais para que o caminho planeado continuasse a ser trilhado. Para além de Terence Fisher, destacaram-se desde logo os actores Peter Cushing e Christopher Lee, estrelas maiores da Hammer e só por si atracções de bilheteira. A fórmula repetiu-se em “O Horror de Drácula” de 1958 (originalmente “Dracula”, mas chamado “Horror of Dracula” nos EUA para não se confundir com o filme de 1931, com Bela Lugosi, então ainda em exibição). Sucederam-se uma série de filmes às vezes realizados dois a dois, para poupar tempo e recursos, usando as mesmas equipas. Assim surgiriam várias sequelas de Frankenstein e Drácula, bem como a série Múmia, e remakes de “O Fantasma da Ópera”, “O Médico e o Monstro”, e muitos outros temas clássicos de terror.

Michael Carreras, que nunca se sentiu bem à sombra do pai, deixou a Hammer em 1961, para fundar a sua companhia (Capricorn Films), continuando a produzir filmes para a Hammer, mas como associado externo. A direcção artística era então de Anthony Hinds, que de produtor passara a argumentista, sendo ainda o principal supervisor da qualidade das obras da companhia. Tal não impediu um declínio no final dos anos 60. A repetição da fórmula, o fracasso de algumas apostas, a escolha de realizadores menos capazes, e principalmente a viragem no terror, produzida com filmes como “A Semente do Diabo” (Rosemary’s Baby) de 1968, pediam um terror mais psicológico, e menos visual. Os títulos “Frankenstein” e “Dracula” passavam a ser apenas um chamariz de bilheteira forçando as presenças de Peter Cushing e Christopher Lee (este dizendo-se chantageado a participar) ainda a atrair os fãs, apesar da decrescente qualidade dos filmes. Entre as novidades estava a aposta no ocultismo, com o clássico “The Devil Rides Out”.

Com a saída de Anthony Hinds no final de 1970, termina o período de ouro da Hammer. Sob incitação de James Carreras, e do regressado Michael (agora produtor executivo) a companhia aposta numa imagem sexual mais explícita, escolhendo pin-ups e modelos publicitários como actrizes, e apostando no lesbianismo (série Karnstein), transexualidade (“A Bela e o Monstro”, no original “Dr. Jekyll and Sister Hyde”), e uma imagem contemporânea como a expressa em “O Túmulo Sangrento” (Blood from the Mummy’s Tomb) – o último filme da série Múmia, – e nos dois últimos filmes da série Drácula com Christopher Lee: “Dracula AD 1972” e “The Satanic Rites of Dracula”.

CarmillaJames Carreras deixou definitivamente a Hammer ao filho Michael em 1973. Este embora tenha conseguido mais um clássico de Terence Fisher (“Frankenstein e o Monstro do Inferno”), e procurado dinheiro fresco numa duvidosa colaboração com Hong Kong em “The Legend of the 7 Golden Vampires”, teria como último filme de terror o fracasso de “To the Devil a Daughter” de 1976. Incapaz de competir com o novo terror (por exemplo exemplificado em “O Exorcista” de 1973), a Hammer fecharia portas como produtora cinematográfica após “The Lady Vanishes” um thriller de 1979.

Em 1979 a Hammer Film Productions passou de Michael Carreras para Roy Skeggs, produtor da Hammer desde os anos 60. Roy Skeggs mudou a Hammer para Hapden House em Buckinghamshire, e juntamente com Brian Lawrence, deu uma nova direcção à companhia, deixando para trás as sequelas de Drácula e Frankenstein, e apostando em novas histórias para o formato televisivo. Surgiram então as séries “Hammer House Of Horror”, com 13 episódios em 1980 para a cadeia britânica ITC, e “Hammer House Of Mystery And Suspense”, também em 13 episódios, em 1984 em co-produção com a 20th Century Fox Television, e usando predominantemente actores americanos nos papéis principais.

DráculaEm Janeiro de 2000 Roy Skeggs vendeu a sua participação na Hammer a um grupo privado que incluía o guru da publicidade Charles Saatchi. E em 2007 foi a vez do consórcio holandês Cyrte Investments BV, presidido por John De Mol, e responsável por exemplo, pelo franchising “Big Brother”, comprar a Hammer.

Os novos donos compraram ainda a filmografia da Hammer, e decidiram revitalizar a companhia, não só reeditando os clássicos, mas ainda produzindo novos filmes. Surgiu assim a série online “Beyond the Rave”, (2008), os filmes “Deixa-me Entrar” (Let me In, 2010) (remake do filme sueco “Låt den Rätte Komma in” de 2008), “Perigo À Espreita” (The Resident, 2011) (com Christopher Lee), “Wake Wood” (2011) e “A Mulher De Negro” (The Woman in Black, 2012). Após o sucesso deste último, a Hammer redefiniu o seu caminho, para um gótico moderno que honra as tradições da casa, e planeia já uma série de novos filmes.

Bibliografia consultada

  • CINEMA INGLÊS (1933-1983). Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1984.
  • PYRIE, David – A New Heritage of Horror: The English Gothic Cinema. New York, N: I. B. Tauris, 2008.

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