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Mocumentários
por Pedro Soares
autor do blogue Royale with Cheese
colaborador da revista Take Cinema Magazine
A realidade e a ficção começaram a misturar-se no cinema desde muito cedo, especialmente desde que as imagens de arquivo passaram a ser facilmente partilháveis na década de 50. Os limites entre a verdade e a não-verdade nem sempre são fáceis de identificar e se há géneros cinematográficos que tentam ao máximo captar a realidade como ela é (olá cinema vérité!), outros invertem o bico ao prego e utilizam os códigos da ficção para passarem por verdadeiros.
Foi assim que surgiu o mocumentário, espécie de documentário sobre factos fictícios montado como reais. E, basicamente, tudo começou em 1984 com “This is Spinal Tap”, clássico absoluto de Rob Reiner, sobre uma fictícia banda e hard-rock e os seus problemas por entre as drogas, o sexo e o rock’n’roll. Apesar de ser fictício, o filme é tão verdadeiro que os Spinal Tap acabaram mesmo por dar concertos e ter uma existência real fora do ecrã, num exemplo de como a força do cinema é imparável. E o impacto de “This is Spinal Tap” foi de tal forma na cultura popular que, no IMDB, é o único filme que é possível votar 11 numa escala de 0 a 10, numa private joke do filme.
Apesar de ter cunhado o termo, “This is Spinal Tap” não é o primeiro mocumentário da história do cinema. Antes já haviam os filmes dos Beatles e, claro, “The Rutles: All You Need is Cash”. Assinado pelo Monhy Python Eric Idle, Os Rutles conta a história de uma banda claramente inspirada no percurso dos Beatles, mas que tem o extra de contar com algumas cabeças falantes célebres a dar o seu próprio testemunho. É o caso do próprio Mick Jagger, a confessar que começara os seus Rolling Stones depois de ouvir os Rutles.
Mestres como Luis Buñuel e Orson Welles (este último na sua famosa transmissão radiofónica da Guerra dos Mundos, que muitos tomaram por real) já tinham experimentado esta mistura entre a ficção e a realidade anos antes de “This is Spinal Tap” e de “Os Rutles”. E o próprio Woody Allen, logo no seu segundo trabalho – “O Inimigo Público” (Take the Money and Run, 1969) – também flirtava com o género, que voltaria a repetir mais vezes. Mas é com “Zelig”, em 1983, que tem os melhores resultados: um mocumentário sobre um homem que, qual Forrest Gump, atravessa os tempos e vários momentos históricos não só sem envelhecer, como ainda adquirindo as características dominantes de quem o rodeia.
Tal como “O Inimigo Público”, também “Manual de Instruções para Crimes Banais” é um mocumentário sobre polícias e ladrões. O filme belga realizado por Rémy Belvaux, André Bonzel e Benoît Poelvoorde segue um serial killer na sua rotina diária, entrando rapidamente pelos terrenos do humor negro.
O mocumentário havia de influenciar directamente os filmes de found footage, género inaugurado com grande choque e efeito mediático por “Holocausto Canibal” (Canibal Holocaust, 1980), seguido por “O Projecto Blair Witch” (The Blair With Project, 1999) décadas depois, e que acabaria por desaguar numa série de filmes do género já no século XXI. Uma das principais diferenças entre o mocumentário e o filme de found footage é que o primeiro é, normalmente, uma dramatização divertida, satírica ou irónica da realidade, enquanto que o segundo aborda o real do ponto de vista do terror e do susto.
Um exemplo de falso documentário dramático é “Kenny”, que Clayton Jacobson realizou em 2006. O filme segue a vida de um funcionário de limpeza de casas de banho portáteis, daquelas de plástico que encontramos nos festivais de verão e nas feiras lá da terra. É uma viagem ao que acontece depois que as luzes da festa se apagam, num mocumentário desencantado sobre a solidão, a esperança e a perserverança.
Aproveitando outro dos grandes fenómenos dos anos 2000, os vampiros, surge o último filme deste ciclo. “O que Fazemos nas Sombras”, realizado por Taika Waititi – o tipo da última adaptação do Thor -, é um mocumentário que segue três vampiros que dividem um apartamento. É um filme de um humor inteligente, que satiriza ainda o género, ao incluir as vária abordagens que a cultura popular tem feito ao vampiro ao longo do tempo.
Filmes escolhidos:
• “This Is Spinal Tap” (1984) – Rob Reiner
• “The Rutles: All You Need is Cash” (1978) – Eric Idle e Gary Weis
• “Zelig” (1983) – Woody Allen
• “Manual de Instruções para Crimes Banais” (Man Bites Dog, 1992) – Rémy Belvaux, André Bonzel e Benoît Poelvoorde
• “Kenny” (2006) – Clayton Jacobson
• “O Que Fazemos nas Sombras” (What We Do in the Shadows, 2014) – Jemaine Clement e Taika Waititi