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Cinema, David Cronenberg, Gore, John Carpenter, Terror, Wes Craven
Com 28 filmes que foram de 1968 a 1994, fez-se este ciclo que procurou descrever e homenagear o período em que o cinema de terror começou a ser dominado por muito sangue, de modo que o cinema comercial fizesse disso um ponto de referência. Foi o cinema que veio dos anos 70, e se instalou de vez na década de 80, virado para emoções fortes de imagens de efeito visceral e atingindo sobretudo um público mais jovem. Finalizado o ciclo, leiam o texto de António Araújo que o fecha e lhe dá significado.
Texto de António Araújo
Autor do podcast “Segundo Take”
Colaborador da revista “Take Cinema Magazine“
Em português não temos uma boa palavra que traduza o conceito encerrado na palavra inglesa gore. Talvez a mais aproximada seja mesmo sanguinolência, ou seja a qualidade do que se compraz em derramar ou em ver sangue. Crueldade, ferocidade ou desumanidade também são sinónimos possíveis do conceito que, mais que um género ou sub-género do terror na sétima-arte, ilustra uma estética que deu os seus primeiros e tímidos passos na década de sessenta, para surgir em força no mercado independente da década de setenta, de onde surgiu também o termo splatter, e acabar assimilado pelo mainstream nos gloriosos anos oitenta, o apogeu dos filmes slasher produzidos por estúdios norte-americanos de renome, que sacrificavam adolescentes no matadouro de autênticas linhas de montagem de títulos e de respectivas sequelas progressivamente diluídas.
Os filmes que se entregam ao «regozijo consciente através de efeitos-especiais sanguinários como uma forma de arte», tal como afirmado pelo crítico Michael Arnzen, inspiram-se na estética do teatro francês Grand Guinol, sala de Paris do princípio do século XX, que se especializou em espectáculos de terror gráfico e verosímel. Apesar de se poder recuar aos primórdios das grandes produções de D. W. Griffith ou Cecil B. DeMille para encontrar mutilações realistas do corpo humano, foi pela mão de Alfred Hitchcock, com “Psico” (Psycho, 1960), e das produções da Hammer Film Productions que o público foi presenteado com violência (mais ou menos) explícita no grande ecrã. Durante os anos sessenta, o produtor americano Herschell Gordon Lewis foi um dos maiores responsáveis pela exploração de sangue e vísceras em filmes para o circuito de exploitation. A fechar a década, George A. Romero produziu um dos títulos independentes americanos mais importantes e influentes para o género do terror que se produziria nos anos seguintes: “A Noite dos Mortos Vivos” (The Night of the Living Dead, 1968).
Mais do que as cenas de violência gráfica, “A Noite dos Mortos Vivos” alterou a percepção do que podia ser o horror no grande ecrã, alargando os limites do género e inspirando uma legião de cineastas independentes. Surgiram então uma série de autores e títulos — famosos, infames ou ambos — que aumentavam exponencialmente a capacidade de aterrorizar e chocar: Wes Craven, com “The Last House on the Left” (1972) — que veria mais tarde sub-produtos como “Mulher Violada” (I Spit On Your Grave, Meir Zarchi, 1978) — ou “Os Olhos da Montanha” (The Hills Have Eyes, 1977); Tobe Hooper, com “Massacre no Texas” (The Texas Chain Saw Massacre, 1974); ou mesmo Romero com a sequela do seu marco realizada uma década mais tarde, “Zombie: A Maldição dos Mortos-Vivos” (Dawn of the Dead, 1978). Mais a norte, no Canadá, surgia também David Cronenberg com uma alternativa mais cerebral que não dispensava o choque gráfico e visceral. Títulos como “Os Parasitas da Morte” (Shivers, 1975), “Coma Profundo” (Rabid, 1977), “A Ninhada” (The Brood, 1979) ou “Scanners” (1981) constituem um corpo de trabalho incontornável quando se fala de gore.
Entretanto, John Carpenter — que utilizaria sangue e vísceras no seu magnum opus de 1982, “Veio Do Outro Mundo” (The Thing) — deu início de forma involuntária com “O Regresso do Mal” (Halloween, 1978) ao crescimento do sub-género que dominaria a década de oitenta: o slasher. Enquanto o italiano Lucio Fulci roubava o epíteto de pai do gore a Herschell Gordon Lewis — e a produção italiana em geral parecia ansiosa em facturar com o apetite pelo género —, e no Reino Unido a proibição dos chamados video nasties ainda acicatava mais a procura no mercado caseiro em VHS por estes títulos, as grandes produtoras de Hollywood foram atrás dos cifrões do sucesso sem precedentes do brilhante filme do Carpenter, uma produção de baixos custos e altíssimos rendimentos. “Sexta-Feira 13” (Friday the 13th, Sean S. Cunningham, 1980) foi o primeiro sucedâneo e, em conjunto com a sua inspiração, produziu um infindável número de sequelas que ajudaram a popularizar(!) um trio de assassinos em série, transformando-os em autênticos heróis da cultura popular. O terceiro vértice deste triângulo de figuras que marcaram o zeitgeist dos anos oitenta foi, também ele, uma criação “acidental”: Wes Craven não tinha previsto o sucesso de “O Pesadelo em Elm Street” (A Nightmare in Elm Street, 1984), um filme muito pessoal, transformado em franchise pela New Line Cinema na peugada da popularidade crescente do género.
Na ressaca da década de oitenta, o terror passaria, genericamente, por uma travessia no deserto. O slasher, embora nunca tenha desaparecido completamente, perdeu o gás, e, apesar de o género ser muito mais que sangue e vísceras, esta vertente foi integrada no seu léxico, perdendo o sabor da novidade e dessensibilizando os fãs para a força do seu impacto. No virar do novo milénio haveria um ressurgimento do gore, numa variante de gosto discutível (cuja discussão ficará para outra oportunidade) e menor impacto cultural que a sua primeira vaga, aquela que foi retratada neste ciclo e que pode ser apelidada como “o apogeu do gore”.