Etiquetas
Cinema, Drama, Fred Draper, Gena Rowlands, John Cassavetes, John Marley, Lynn Carlin, Seymour Cassel
Dissertação cáustica sobre relações matrimoniais na classe média alta norte-americana, “Rostos” passeia-nos por alguns momentos da vida do casal Richard (John Marley) e Maria Forst (Lynn Carlin). Por entre encontros vazios, festas ocas e ruído dos amigos de circunstância, o cinismo com que o casal se defende do que o rodeia corrói a relação. Sem mais nada para dizer um ao outro, Richard sai de casa e procura companhia nos braços de uma prostituta de luxo (Gena Rowlands), enquanto Maria vai para um bar com as amigas e se deixa conquistar por um hippie de meia idade (Seymour Cassell).
Análise:
Depois de duas experiências ao serviço de outros produtores, e das quais não terá trazido as melhores recordações – “Prisioneiros da Noite” (Too Late Blues, 1961) e “Uma Criança à Espera” (A Child Is Waiting, 1963) –, John Cassavetes precisou de cinco anos para voltar a estrear um filme como realizador. E fê-lo voltando às origens, isto é, produzindo ele próprio o filme, partindo de um argumento seu, e trabalhando com actores da sua escolha (alguns acompanhando-o em vários filmes, como a esposa Gena Rowlands e Seymour Cassell). O resultado foi mais um filme intimista, filmado quase como um documentário (na própria casa do realizador), numa fotografia a preto e branco de 16mm, saturada e cheia de grão. Pesem algumas críticas pelo radicalismo da sua forma, o filme acabou nomeado para numerosos prémios, entre os quais três Oscars da conservadora Academia de Hollywood e vários prémios em Veneza, sendo a obra que lançou definitivamente a carreira de Cassavetes como realizador.
Imiscuindo-se em vidas privadas como um ser invisível que deambula caoticamente pelos locais de onde possa ter boa visibilidade, a câmara de Cassavetes mostra-nos as histórias de Richard ‘Dickie’ Forst (John Marley) e Maria Forst (Lynn Carlin), casal de classe média alta, que circula por meios intelectuais e se sente acima deles com o seu cinismo, mas deixando esse cinismo corroer a sua relação. Num impulso, Dickie deixa o apartamento e procura companhia junto da amiga Jeannie Rapp (Gena Rowlands), acompanhante de luxo, no momento a receber dois industriais, com a amiga Florence (Dorothy Gulliver). As conversas tensas, de ciúme, tentativa de posse e muito fanfarronismo, finalmente levam os visitantes a sair, e Dickie passa a noite com Jeannie, para se aperceberem na manhã seguinte que pouco mais têm que desprezo um para com o outro. Já Maria, sai com algumas amigas, e depois de muitos copos, algumas delas acham piada ao cortejamento de Chet (Seymour Cassell), um playboy de meia idade. Acabam todos em casa de Maria, com algumas das amigas, com copos a mais, a terem atitudes de que se vêm a envergonhar, deixando a festa, e deixando Maria sozinha com Chet. Arrependida, na manhã seguinte Maria tenta o suicídio com comprimidos, mas é salva por Chet. Quando Dickie chega a casa vê ainda Chet a fugir por uma janela, percebendo que não foi só ele que passou a noite acompanhado.
Filmado em cerca de seis meses, com vários anos de montagem (começando numa versão de seis horas e terminando com 130 minutos) e, como dito atrás, quase como um documentário, “Rostos” lembra o anterior “Sombras” (Shadows, 1959). Mais uma vez, é como se, em vez de procurar os melhores enquadramentos para cada cena, a câmara de Cassavetes fosse mais uma personagem, deambulando entre as outras, nem sempre se dirigindo para o centro da acção ou apanhando todos os diálogos do início. Este comportamento técnico acaba por espelhar bem os comportamentos das personagens: caóticos por vezes, impulsivos, imprevisíveis e muito erráticos.
E é de comportamentos erráticos e pessoas nem sempre coerentes que se faz a história de “Rostos”, a qual se centra no casal Richard e Maria Forst. Como um conjunto de polaróides, vemo-los em diversos momentos desconexos, ora em bares, ora entre amigos, geralmente em discussões algo surreais, banhadas a álcool, e sempre com muito tabaco e música estridente por perto (jazz, rock). Esse lado errático mostra-nos que os comportamentos e decisões que marcarão o enredo não carecem de explicação, e à boa maneira de Cassavetes, simplesmente acontecem. Richard decide deixar a mulher; decide procurar Jeannie; esta decide livrar-se dos cavalheiros (já bêbedos) que a acompanham; os dois decidem procurar dar forma carnal a um desejo anterior; os dois decidem que não o querem; do mesmo modo que Maria perdida decide trazer algo de novo para a sua vida e acaba torturada pela sua angústia.
Por entre risos, muito cinismo regado a álcool, conversas que nem sempre se entendem (onde muitos falam, mas na verdade nada se diz) e reacções desmesuradamente impulsivas, o que fica é um desencontro de um casal, no meio de tantos outros (o ridículo dos industriais, o pavoneamento de Chet, o desespero sentido pela amiga mais velha de Maria, a futilidade de Jeannie). Talvez sem necessitar de explicação nem sequer de mais descrição, no meio de todos os encontros do filme é o desencontro que o marca. Por isso o final em aberto é tão mais pungente que algo que se pudesse dizer ou mostrar entre Richard e Maria. E por isso também, o plano final, quando os dois se afastam em sentidos diferentes do nosso campo de visão e este fica vazio, é a forma mais clara de fechar um filme, que sem nos fazer sentir pena ou empatia pelas personagens nos pinta uma realidade com a qual é fácil relacionarmo-nos.
Produção:
Título original: Faces; País: EUA; Ano: 1968; Duração: 130 minutos; Distribuição: Continental Distributing; Estreia: 5 de Abril de 1968 (Canadá), 31 de Dezembro de 1994 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: John Cassavetes; Produção: Maurice McEndree, John Cassavetes [não creditado]; Produtor Associado: Al Ruban; Argumento: John Cassavetes; Direcção Musical: Jack Ackerman; Fotografia: Al Ruban, Maurice McEndree [não creditado], Haskell Wexler [não creditado] [preto e branco]; Montagem: Maurice McEndree, Al Ruban, John Cassavetes [não creditado]; Design de Produção: ; Direcção Artística: Phedon Papamichael; Cenários: Lady Rowlands; Direcção de Produção: James Joyce.
Elenco:
John Marley (Richard Forst), Gena Rowlands (Jeannie Rapp), Lynn Carlin (Maria Forst), Fred Draper (Freddie Draper), Seymour Cassel (Chet), Val Avery (Jim McCarthy), Dorothy Gulliver (Florence), Joanne Moore Jordan (Louise Draper), Darlene Conley (Billy Mae), Gene Darfler (Joe Jackson), Elizabeth Deering (Stella), Ann Shirley, Dave Mazzie, Anita White, Julie Gambol, Edwin Sirianni, Liz Satriano, George Dunn (Comediante), Jerry Howard, David Rowlands, Carolyn Fleming, James Bridges, Kay Michaels, Don Kraatz, Laurie Mock (Barmaid), John Hale, Christina Crawford (Mulher a Espalhar Moedas no Bar), Midge Ware, George Sims (Bartender).