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Alec Guinness, Cinema, Cinema inglês, Comédia, Dennis Price, Ealing, Joan Greenwood, Robert Hamer, Roy Horniman, Valerie Hobson
Condenado à morte e aguardando a sua execução, Louis, o décimo duque de Chalfont (Dennis Price) narra a forma como, já adulto, soube pela sua mãe (Audrey Fildes) ser herdeiro de um título. É que ela é uma Ascoyne, família da qual ela foi expulsa depois de casar com um tenor italiano. Quando a mãe morre, e a família volta a rejeitá-la, desta vez recusando o enterro no cemitério de família, Louis decide vingança. Vai então, um por um, matar todos os elementos da família (todos interpretados por Alec Guinness), de modo a tornar-se ele o duque de Chalfont.
Análise:
O ano de 1949 ficou coroado como o primeiro grande ano dos Ealing Studios, com a estreia de três filmes de crescente sucesso, “Passaporte para o Paraíso” (Passport to Pimlico), “Whisky Galore!” e este “Oito Vidas por um Título”. Tudo começou numa ideia do guionista Michael Pertwee, que sugeriu ao director do estúdio, Michael Balcon, a adaptação do romance “Israel Rank: The Autobiography of a Criminal”, publicado em 1907 por Roy Horniman. Balcon mostrou-se apreensivo inicialmente, pois não via como o crime pudesse dar uma comédia, mas acabou persuadido a entregar o projecto a Robert Hamer, um realizador pouco conhecido, e que apenas realizaria mais um filme para a Ealing. Por fim, a cereja no topo do bolo foi a aceitação de Alec Guinness, que mal leu o argumento insistiu para, além dos quatro papéis que lhe foram atribuídos inicialmente, fazer os oito papéis da família D’Ascoyne.
O filme conta-nos a história de Louis (Dennis Price), um jovem de condição humilde, cuja mãe (Audrey Fildes) um dia lhe diz pertencer à família D’Ascoyne, de onde ela foi expulsa por ter casado contra a vontade familiar com um tenor italiano. Com a morte da mãe, e nova recusa familiar em reconhecê-la, Louis decide eliminar todos os membros da família, os tios: o Duque, um Banqueiro, um Reverendo, um General, um Almirante, Lady Agatha, e os primos Ascoyne e Henry (todos interpretados por Alec Guinness). Um por um, Louis encontra forma de os conhecer, e de provocar mortes inusitadas (um barco levado pela corrente, um envenenamento alcoólico, um balão de ar quente que se despenha, uma explosão num laboratório fotográfico cheio de químicos, etc.). Pelo meio, rejeitado pela sua amiga de infância Sibella (Joan Greenwood), a qual decide casar com Lionel (John Penrose), Louis vem a tomá-la por amante como vingança sobre os dois, enquanto corteja Edith (Valerie Hobson), a viúva de Henry, que vê como futura esposa. Mas a súbita morte Lionel vem acompanhada de acusações da humilhada Sibella que levam a que Louis seja acusado e condenado na Câmara dos Lordes pelo único crime que não cometeu. Um acordo com Sibella leva a um salvamento in extremis, mas só depois de solto, Louis se lembra que deixou no cárcere as suas memórias com toda a confissão dos crimes cometidos.
Com exteriores filmados no Castelo de Leeds em Kent, e interiores nos Ealing Studios, o filme ganha o seu título de uma linha do poema de Alfred Lord Tennyson: “Lady Clara Vere de Vere”, a qual diz “Kind hearts are more than coronets” (isto é: “Corações bondosos valem mais que coroas”, sendo “coronets” a palavra usada para coroas nobiliárquicas não reinantes, como por exemplo a ducal, aqui em causa). Obviamente, o título é uma referência irónica ao comportamento do protagonista (e da sociedade aristocrática inglesa), já que este, a partir do momento em que sabe da sua ligação ao duque D’Ascoyne, não pensa em mais que obter o título seja por que meios for.
Lidando com o crime, aliás vários crimes, a história vai-se centrar na narração em flashback de um assassino em série, o tal herdeiro que tem de se livrar de oito membros da família, para obter o título a que sente ter direito. A sua narração, plena de ironia e sarcasmo lembra em tudo o modo de estar de Oscar Wilde, e mostra-nos, acima de tudo, a superficialidade e mesquinhez da classe alta. Das traições e arrogâncias do jovem Ascoyne à teimosia do Almirante, que lhe vale o afundamento de dois navios, dos vícios do Reverendo à malícia do Duque que sempre ostracizou a irmã (mãe de Louis), só por ter casado com um italiano, abaixo da sua condição, todos ou quase (Louis vem a simpatizar com o Banqueiro que se torna seu patrão) são pessoas que se julgam superiores, não hesitando em pisar quem está em volta em defesa dos seus direitos divinos (como se mostra na forma como gerem o cemitério de família, por exemplo). Para não falar já da arcaica lei que permitia aos nobres ingleses serem julgados fora do sistema judicial, na Câmara dos Lordes, pelos seus pares, praticamente garantindo a sua imunidade, lei essa que, curiosamente, foi abolida em 1949, embora sem qualquer relação com o filme.
Curiosamente, Louis, a partir do momento em que decide vingar a sua mãe e reclamar o que decide ser seu, muda de personalidade, passa a usar os outros a seu bel-prazer, não só os familiares que manipula e mata, mas também a esposa do seu primo Henry, só porque acha que daria a duquesa ideal, a amiga de infância Sibella, que toma por amante e não deixa de humilhar, por o ter trocado por outro, e o marido desta, que fica refém de Louis por dívidas nos negócios. Desse modo, a história mostra-nos como a ambição corrompe.
Mas, moralismos à parte, o filme surpreende pela elegância (e refira-se novamente a atitude Oscar Wilde) do protagonista, com um surpreendente Dennis Price a narrar-nos tão calmamente as suas aventuras que chegamos a tomar os seus crimes por naturais e bem vindos. A isso acrescenta-se depois aquilo que torna o filme tão especial: as oito interpretações de Alec Guinness (algumas bem curtas, é certo), que compõe oito bonecos deliciosos, de maneirismos e vozes diferentes, mostrando que na comédia Guinness não era inferior à sua propensão dramática, mais conhecida aos seguidores da sua obra de Hollywood. Este foi o primeiro filme de Sir Alec Guinness para a Ealing, mas o sucesso do mesmo, e o prazer do actor neste género levá-lo-iam a continuar trabalhar para a produtora.
Diferente dos filmes anteriores, os quais lidavam com uma espécie de movimentos populares em que um conjunto de pessoas anónimas vinham a subverter a ordem estabelecida, “Oito Vidas por um Título” volta a apostar numa história aparentemente anedótica, mas agora centrada na classe alta, filmada, por isso, com uma elegância mais convencional, de planos clássicos, e longe da maior espontaneidade e tendência para realismo dos filmes que o precederam.
Ainda assim, apesar de todo o lado convencional e trama moralista, a sua edição nos Estados Unidos teve de sofrer várias alterações. Em primeiro lugar as alusões à relação carnal entre Louis e Sibella tiveram de ser cortadas, tal como as referências pejorativas ao Reverendo. Depois foi a lengalenga infantil “Eeny, meeny, miny, mo, catch a nigger by the toe” que teve a palavra “nigger” (preto) substituída por “sailor” (marinheiro). Por fim houve a necessidade de acrescentar uma cena em que as memórias de Louis são encontradas, não fosse o público pensar que nunca o seriam, e que o crime teria compensado. De notar que já na adaptação inglesa uma grande alteração tinha sido feita em relação ao livro, ao tornar o pai do protagonista italiano e não judeu, devido à nova sensibilidade trazida com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Produção:
Título original: Kind Hearts and Coronets; Produção: Ealing Studios; Produtor Executivo: J. Arthur Rank; País: Reino Unido; Ano: 1949; Duração: 142 minutos; Distribuição: General Film Distributors (GFD); Estreia: 23 de Junho de 1949 (Reino Unido), 29 de Junho de 1950 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Robert Hamer; Produção: Michael Balcon; Produtor Associado: Michael Relph; Argumento: Robert Hamer, John Dighton [a partir do livro de Roy Horniman, “Israel Rank: The Autobiography of a Criminal”]; Música: Ernest Irving [não creditado]; Fotografia: Douglas Slocombe [preto e branco]; Montagem: Peter Tanner; Direcção Artística: William Kellner; Figurinos: Anthony Mendleson; Caracterização: Ernest Taylor, Harry Frampton; Efeitos Especiais: Sydney Pearson, Geoffrey Dickinson.
Elenco:
Dennis Price (Louis), Valerie Hobson (Edith), Joan Greenwood (Sibella), Alec Guinness (Família D’Ascoyne Family: O Duque / O Banqueiro / O Reverendo / O General / O Almirante / Jovem Ascoyne / Jovem Henry / Lady Agatha), Audrey Fildes (Mãe), Miles Malleson (Carrasco), Clive Morton (Director da Prisão), Cecil Ramage (Conselheiro Real), John Penrose (Lionel), Hugh Griffith (Lord High Steward), John Salew (Mr. Perkins), Eric Messiter (Burgoyne), Lyn Evans (Agricultor), Barbara Leake (Professora), Peggy Ann Clifford (Maud), Anne Valery (Rapariga no Barco), Arthur Lowe (Jornalista).