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Cinema, Cinema Francês, Drama, Fiódor Dostoiévski, Guillaume des Forêts, Isabelle Weingarten, Robert Bresson
Jacques (Guillaume des Forêts) é um jovem pintor parisiense, que vive sozinho no estúdio parisiense onde pinta, deambulando em busca de inspiração, a qual lhe surge nas imagens e pessoas que passam por si, imaginando situações e relações amorosas que relata para um gravador, e depois ouve incessantemente. Uma noite, Jacques depara com Marthe (Isabelle Weingarten), uma jovem prestes a atirar-se ao Sena. Os dois passam as noites seguintes em companhia um do outro, contando as suas vidas, sonhos e desesperos.
Análise:
Desta vez numa produção franco-italiana, com técnicos e actores de ambos os países, Bresson filmava pela segunda vez a cores, voltando, como no filme anterior – “Uma Mulher Meiga” (Une femme douce, 1969) – , a uma história urbana, de maior riqueza cénica (ruas da cidade, apartamentos, etc.), e um constante movimento de fundo, que contrastava com a singeleza dos protagonistas. Baseado no conto “Noites Brancas” (1848) de Fiódor Dostoiévski – anteriormente adaptado por Luchino Visconti em “Noites Brancas” (Le notti bianche, 1957) –, “As Quatro Noites dum Sonhador”, são, como o nome indica, um exercício de contemplação e escapismo pessoal.
E o sonhador é Jacques (Guillaume des Forêts), um jovem pintor, que vive sozinho no seu estúdio, e calcorreia a cidade buscando inspiração nas imagens que passam por si, e nas relações pessoais que não vive, mas imagina como possíveis, e cuja narração guarda num gravador, que depois ouve continuamente. Nessas deambulações, Jacques encontra Marthe (Isabelle Weingarten), uma jovem prestes a atirar-se ao Sena numa noite. Evitado o suicídio, Jacques conversa com Marthe, e fala-lhe de si, como se apaixona diariamente por todas as mulheres que vê passar e que despertam sempre algum motivo de curiosidade. Na noite seguinte, voltam a encontrar-se, e Marthe conta-lhe como no apartamento que divide com a mãe, esta aluga um dos quartos, sempre a jovens do sexo masculino, e como Marthe se deixou seduzir (ou seduziu) um deles (Jean-Maurice Monnoyer), de quem se tornou amante. Só que este foi estudar para os Estado Unidos, e, tendo voltado há três dias, não a voltou a contactar. Jacques convence-a de que houve apenas um mal-entendido, e que irá entregar uma carta dela, para provocar o encontro. Entregue a carta, na terceira noite, Jacques espera junto a Marthe o aparecimento do amante desta, ao mesmo tempo que percebe que se está a apaixonar por ela. O amante não aparece, e Jacques impede Marthe de desesperar, voltando a esperar juntos na quarta noite, quando Marthe já não acredita e diz a Jacques que é de um homem como ele, que não a abandona, que ela precisa. Os dois decidem ficar juntos, e seguem pela rua abraçados, planeando o seu futuro, quando, casualmente, Marthe reconhece o amante. Num impulso corre para ele e beija-o, e decide seguir com ele, despedindo-se de Jacques, que volta a casa sozinho, regressando às fantasias que dita para o seu gravador.
Sempre partindo da ideia de que os seus actores são modelos que recitam falas, sem as interpretar, já que esse papel de interpretação e de decifrar de sentimentos cabe ao público, Bresson filmou mais uma história urbana, a exemplo do seu filme anterior, onde, novamente, é da relação entre o protagonista e o que ele procura ou espera numa relação amorosa que o filme se faz.
Feito de quatro noites (e dos momentos diurnos que nessas noites se contam), e seguindo nós os momentos de contemplação de Jacques, há sempre muito de onírico, fantasista e mesmo escapista nas narrações que acompanhamos. Seja na fuga do pretendido salto para o Sena de Marthe, no escape que são as deambulações de Jacques no início, ou nas fantasias que confia ao seu gravador. Repare-se que, sempre que Jacques vê algo, ou alguém, que lhe interesse, ele narra uma relação ou momentos hipotéticos ao seu gravador, para depois os ouvir continuamente como inspiração para a sua pintura, e talvez para se convences de que esse momento imaginado de facto existiu. Tal a sua dedicação a esse preceito, que Jacques confessa a Marthe que não se apaixona por ninguém, porque de facto se apaixona por todas as mulheres que encontra.
Mas ao embrenhar-se em mais uma fantasia – a história de Marthe –, Jacques afeiçoa-se a ela, interessa-se pelo desenlace do romance da rapariga, e com isso dá por si a fantasiar (e a gravar os seus pensamentos) exclusivamente sobre ela. Só que Marthe vive a sua própria fantasia, apaixonou-se através das paredes da sua casa, deseja quem a abandonou, e jura fidelidade a quem não tem (no jeito de Bresson de insinuar elipticamente em vez de mostrar) ainda que compreenda que seria mais feliz com alguém que lhe fizesse companhia, como Jacques. Assim acabamos por acompanhar não um, mas dois sonhadores, que encontram conforto no confessar dos sonhos um ao outro, sem que se possam fazer companhia de outra forma. Como Marthe diz a dada altura, se for feliz com o seu amante, Jacques será para ela um irmão, ou até mais que isso.
Comparando com a sua obra anterior, se inicialmente Bresson parecia contar histórias de redenção e ascensão, onde, à custa de muito sacrifício pessoal, o protagonista almejava a algo mais do que parecia ter inicialmente, e se depois passou a uma fase (onde se integram “Au hasard Balthazar”, “Mouchette” e “Uma Mulher meiga”, em que o protagonista parecia condenado a cumprir uma fatalidade trágica, por não se poder libertar da sua condição, em “As Quatro Noites dum Sonhador” estamos numa fase intermédia, na qual o protagonista não progride nem regride, tendo um confronto com as limitações que o tolhem (uma espécie de acordar para a realidade, mesmo que através dos nominais sonhos), e regressando no final ao estádio inicial, sem que nada se tenha alterado.
Talvez por essa mudança em relação ao protagonista, o próprio uso da paisagem urbana menos minimalista, e até o uso de três longas sequências de música diegética brasileira, e de um curto filme dentro do filme numa cena de gangsters, alguns críticos consideraram “As Quatro Noites dum Sonhador” uma certa traição ao bressonianismo mais ascético do início. Tal ideia é algo errada, uma vez que, mesmo procurando uma mudança temática, Bresson é fiel à forma de nos dar a conhecer e tratar as suas personagens, e mesmo visualmente, se nos alhearmos do bulício citadino, encontramos no foco do corpo, mãos, pés que caminham, gestos toscos e inseguros, olhares e vozes dispersas, tudo aquilo que o olhar de Bresson sempre nos dera.
Mais uma vez, Bresson filma uma história de desencontros, ou, mais ainda, da impossibilidade de encontros, onde desejos só existem como sonhos, e a sua materialização parece condenada ao fracasso. Tudo isto à beira do Sena, um rio que sempre foi visto como o epíteto da inspiração romântica, e que aqui não é mais que um olhar para o desespero.
Produção:
Título original: Quatre nuits d’un rêveur [título inglês: Four Nights of a Dreamer]; Produção: Albina Productions S.a.r.l. / I Film Dell’Orso / Victoria Film; País: França / Itália; Ano: 1971; Duração: 82 minutos; Distribuição: Office de Radiodiffusion Télévision Française (ORTF); Estreia: 13 de Maio de 1971 (Festival de Cannes, França), 29 de Junno de 1971 (RFA), 5 de Janeiro de 1972 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Robert Bresson; Produção: Gian Vittorio Baldi; Argumento: [a partir]; Música: Michel Magne, Groupe Batuki, Chris Hayward, Louis Guitar, F.R. David; Fotografia: Pierre Lhomme [cor por Eastmancolor]; Montagem: Raymond Lamy; Design de Produção: Pierre Charbonnier; Direcção de Produção: Georges Casati.
Elenco:
Isabelle Weingarten (Marthe), Guillaume des Forêts (Jacques), Jean-Maurice Monnoyer (Amante de Marthe), Giorgio Maulini (Ferreiro), Lidia Biondi (Mãe de Marthe), Patrick Jouané (Gangster), Jérôme Massart (Amigo de Jacques) [não creditado].