Etiquetas
Cinema, Cinema Francês, Drama, Georges Bernanos, Jean Vimenet, Jean-Claude Guilbert, Marie Cardinal, Marie Susini, Nadine Nortier, Paul Hébert, Robert Bresson
Mouchette (Nadine Nortier) é uma rapariga de 14 anos, filha de um pai alcoólico (Paul Hébert) e de uma mãe acamada (Marie Cardinal), com um irmão bebé de quem cuida, tanto nos trabalhos domésticos, como ganhando dinheiro em pequenos trabalhos na aldeia campestre onde todos a escarneiam e vêem como uma selvagem sem mérito próprio. No seu orgulho, Mouchette despreza todos, acabando envolvida por orgulho próprio na história de um caçador furtivo (Jean-Claude Gilbert) que pensa ter assassinado um rival.
Análise:
Com base no romance “Nouvelle Histoire de Mouchette” de Georges Bernanos, do qual anteriormente adaptara “Diário dum Pároco de Aldeia” (Journal d’un Curé de Campagne, 1951), e com a curiosidade de ter ganho o prémio OCIC (International Catholic Organization for Cinema and Audiovisual) no Festival de Cannes de 1967, Robert Bresson deu-nos mais um filme pessimista de uma crise espiritual, desta vez centrado na história de uma menor, exemplo do existencialismo expectável entre famílias pobres de uma pequena aldeia de província.
E Mouchette (que se pode traduzir como pequena mosca), o título do filme, não é mais que a pequena protagonista (Nadine Nortier), uma rapariga de 14 anos, filha de pai alcoólico (Paul Hébert) – que bebe para se alienar da sua vida – e de mãe acamada (Marie Cardinal), com um irmão bebé de quem cuidar. Tendo de tratar sozinha da casa, Mouchette é vista por todos (colegas de escola, professora) como um objecto estranho, ridicularizada pelas improvisadas roupas maltrapilhas ou por não saber cantar os hinos da escola. Por seu lado, Mouchette vinga-se sujando as colegas com lama, e assim auto-ostracizando-se. Um dia, ao regressar a casa pela floresta, Mouchette depara com um corpo que terá sido morto pelo caçador furtivo Arsène (Jean-Claude Gilbert), este leva-a para a sua barraca durante uma tempestade, e juntos, ele obriga-a a ser seu álibi. Quando a moça tenta escapar, Arsène prende-a e viola-a. Na manhã seguinte, Mouchette foge e vai para casa. Aí, a sua mãe está a morrer, e Mouchette tem como prioridade ir buscar leite para o bebé, passando pelo pai, que a volta a insultar, tal como é insultada na aldeia. Depois de testemunhar a inocência de Arsène perante o guarda de caça Mathieu (Jean Vimenet) e a esposa deste (Marie Susini), dizendo-o seu amante, Mouchette volta a sair, sendo chamada por uma velha senhora que, apiedando-se dela e da morte da sua mãe, a tenta confortar e lhe dá alguns vestidos, e a alerta para acordar o seu coração, pois tem maldade nos olhos. Mas Mouchette insulta a velha senhora, e foge para os campos, onde assiste a uma caçada a coelhos, veste um dos vestidos, que logo rasga, e se põe a rebolar repetidamente em direcção a um riacho, terminando dentro dele. Quando a água clareia, Mouchette não se vê.
“Mouchette”, que, nas palavras do próprio Bresson, é uma história de miséria e crueldade, é mais um filme onde, à imagem de outros, como “Diário dum Pároco de Aldeia” (Journal d’un Curé de Campagne, 1951), “Fugiu Um Condenado à Morte” (Un Condamné à Mort s’est Échappé, 1959) ou “O Carteirista” (Pickpocket, 1959), Bresson nos dá uma história de solidão, onde o seu protagonista, numa espécie de crise espiritual, corre de encontro a um desconhecido inteiramente pessoal, como numa ascese interior, onde a alienação da sua realidade é a força que o guia num percurso que mais ninguém conseguirá entender ou partilhar. Neste caso, esse é o percurso de uma jovem moça sem qualquer fonte de alegria – esqueça-se a sequência dos carrinhos de choque que funciona como um pequeno flirt com outro rapaz (curiosamente num jogo de batidas) e não há um momento de humor no filme – escrava em sua própria casa, maltratada pelo pai, insultada na aldeia, desprezada na escola. Na sua alienação das dificuldades, vivendo de um modo automático, Mouchette retalia como pode, refugia-se nos campos (a sua Igreja, num jeito panteísta, onde vida, morte e ritos de passagem parecem provir sempre desse bosque –, e tenta provocar, como prova de força e de vontade própria, como faz no caso de Arsène, que declara amante, para não confessar que foi violada.
E, nesse conto de “miséria e crueldade”, o estilo minimalista de Bresson (filmando novamente com actores não profissionais) assenta como uma luva, com os seus planos e contraplanos fixos, as texturas e as longas sequências sem palavras, em que acompanhamos tanto Mouchette, como os olhares dos aldeões – as mulheres a entrar na igreja (esta presente em tantas cenas), os rapazes que observam Mouchette, ou até o estranho jogo campestre do guarda de caça Mathieu (Jean Vimenet), no seu constante duelo surdo com o caçador furtivo Arsène (Jean-Claude Gilbert). Dentro desse olhar, Bresson dá-nos uma história sem sentimentalismos, onde mesmo essa miséria – como todos os infortúnios de Mouchette – não nos traz nenhuma redenção, uma vez que a protagonista não é sequer digna da nossa simpatia, age contra quem a trata bem, e parece aceitar com grado os maus tratos, onde a cena da violação tem muito de ambíguo.
Como em tantos outros filmes de Bresson – de que o anterior “Peregrinação Exemplar” (Au hasard Balthazar, 1966) é o melhor exemplo, “Mouchette” é mais uma história de pessimismo, onde o olhar para a alma humana nos deixa uma pintura incompleta e amarga, e onde o simbolismo não deixa de estar presente. Num filme que começa com uma mãe que nos fala em jeito de despedida, fica a ideia de que Bresson nos está a falar de ausências, a ausência do carinho (com o qual Mouchette prova mais que uma vez não saber lidar) e a ausência de referências humanas (se a mãe está ausente por doença e depois morte, o pai está-o por vontade própria, entregue ao alcoolismo). É, podemos imaginar, a ausência de Deus, da religião, ou qualquer outra bússola espiritual que comandam a história. E esta, na sequência seguinte ao monólogo da mãe, leva-nos para o quase omnipresente bosque, onde vida e morte, liberdade e aprisionamento, lei e trapaça se combatem, numa espécie de guerra primordial, que está na base da nossa existência, e onde Mouchette vai habitar, assertivamente é certo, mas pouco ciente das suas acções.
O filme foi premiado internacionalmente com prémios como o Prémio Georges Méliès de 1967, o Prix Inter-Club du Cinéma de 1967-1968, ambos em Paris e o prémio do Sindicado dos Críticos de Cinema Franceses no Festival de Veneza de 1967, a par de “A Bela de Dia” (Belle de Jour, 1967), de Luis Buñuel. Era ainda considerado um dos filmes preferidos de Andrei Tarkovsky.
Produção:
Título original: Mouchette; Produção: Argos Films / Parc Film; Produtor Executivo: Anatole Dauman; País: França; Ano: 1967; Duração: 78 minutos; Distribuição: Union Générale Cinématographique (UGC) (França), Compagnie Française de Distribution Cinématographique (CFDC) (França); Estreia: 14 de Março de 1967 (EUA), 3 de Julho de 1972 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Robert Bresson; Produção: Anatole Dauman, Mag Bodard [não creditada]; Produtor Associado: Anatole Dauman; Argumento: Robert Bresson [a partir de um romance de Georges Bernanos]; Música: Claudio Monteverdi, Jean Wiener; Direcção Musical: Jean Dréjac; Fotografia: Ghislain Cloquet [preto e branco]; Montagem: Raymond Lamy; Design de Produção: Pierre Guffroy; Figurinos: Odette Le Barbenchon; Direcção de Produção: Philippe Dussart, Michel Choquet.
Elenco:
Nadine Nortier (Mouchette), Jean-Claude Guilbert (Arsène), Paul Hébert (Pai de Mouchette), Marie Cardinal (Mãe de Mouchette), Jean Vimenet (Mathieu, Guarda de Caça), Marie Susini (Mulher de Mathieu), Suzanne Huguenin (Coveira), Marine Trichet (Luisa), Raymonde Chabrun (Dona da Loja), Liliane Princet (Professora).