Etiquetas
Anne Wiazemsky, Cinema, Cinema Francês, Drama, François Lafarge, Jean-Claude Guilbert, Philippe Asselin, Pierre Klossowski, Robert Bresson, Walter Green
Balthazar é um burro nascido na propriedade do pai de Jacques e que este vê como companheiro de brincadeiras, com as suas irmãs e com Marie, filha do professor local. Mas Jacques e a família deixam a aldeia, e Marie (Anne Wiazemsky) cresce triste, só com o burro por companhia. Quando um desentendimento entre os pais de Marie e Jacques os levam a tribunal, o burro é vendido. A partir de então terá inúmeros donos, sofrerá maus tratos, e testemunhará as penas e sofrimentos de cada um, em particular o destino sombrio de Marie, a quem o burro voltará mais que uma vez.
Análise:
Desta vez, numa produção franco-sueca, não contando já com Léonce-Henri Burel na fotografia (agora entregue a Ghislain Cloquet), mas novamente com a colaboração de Pierre Charbonnier na direcção artística, Robert Bresson, filma a vida de um burro, levemente inspirada por “O Idiota”, de Fiódor Dostoievsky, e em cuja história Bresson quis explanar os sete pecados mortais.
Balthazar é o nome do pequeno burro, baptizado Jacques, as suas irmãs e a amiga Marie, que vêm nele um companheiro de brincadeiras, numa aldeia campestre dos Pirenéus. Com a morte de uma das irmãs de Jacques, a família muda-se, e a propriedade passa para o pai de Marie (Philippe Asselin), o professor local. Balthazar é também passado de mãos, trabalhando no duro, na lavoura e a puxar carroças, maltratado, até um acidente o fazer voltar de novo a Marie (Anne Wiazemsky), agora adolescente. Esta vê nele a memória de tempos felizes e trata-o bem, causando a desconfiança de Gérard (François Lafarge), o cruel líder do bando de rapazes da aldeia, que batem no burro quando podem. Um dia, Jacques (Walter Green) regressa, pois o seu pai mandou-o pedir contas da propriedade ao pai de Marie, mas este orgulhoso, nega-se a prestar contas, e expulsa Jacques, para tristeza de Marie. Balthazar passa para o padeiro (François Sullerot), o qual emprega Gérard na distribuição de pão, o que equivale a mais maus tratos ao burro, e quando Marie pede para ver o burro, Gérard consegue-se convencê-la a ter sexo com ele. Enquanto Marie inicia uma relação doentia com Gérard, este é chamado à polícia pela morte de alguém, juntamente com Arnold (Jean-Claude Guilbert), um vagabundo alcoólico que Gérard tenta incriminar. Quando Balthazar adoece, Arnold toma-o a seu cargo, e o animal volta a percorrer as estradas, agora guiando turistas pelos Pirenéus, mas mais maus tratos fazem-no fugir, levando-o a um circo, onde chega a ser treinado para fazer truques de adivinhação, de onde volta a fugir, quando vê Arnold no público. A morte de um tio de Arnold deixa-o milionário, mas na festa que se segue, Arnold morre. Balthazar acaba de novo vendido, desta vez a um moleiro (Pierre Klossowski), que o faz trabalhar duramente. Enquanto isso, Marie foge de casa, mas acaba por regressar à aldeia, desiludida e sem coragem para enfrentar os pais, sendo acolhida pelo dono do burro, que zomba dos ideais do pai dela, tentando comprar-lhe os favores sexuais. A despeito dele, Marie dá-se-lhe sem querer o dinheiro, e foge no dia seguinte. Chamados, os pais de Marie, levam de novo Balthazar consigo para a fazerem feliz. Quem chega também é Jacques, que traz o perdão do seu pai depois de longo processo judicial. Marie conta-lhe tudo o que fez, mas Jacques quer casar com ela apesar de tudo. Decidida a enfrentar Gérard, Marie procura-o, mas acaba violentada pelo bando. Incapaz de viver com isso, Marie volta a fugir de casa, e desta vez o pai não aguenta e morre de desgosto. Mais uma vez Balthazar muda de mãos, com a desculpa de servir a Igreja numa procissão, Gérard e um amigo roubam o burro para saltar a fronteira com contrabando. Perante a perseguição da polícia, os rapazes fogem, e Balthazar deambula abandonado e ferido, até parar e morrer num prado onde pastam ovelhas.
Ao som da Sonata para piano No. 20, Op. 959 de Schubert, “Peregrinação Exemplar” centra a sua narrativa na vida de um burro, amado e até baptizado em pequeno, mas com uma vida de sofrimento, muitos maus tratos, e testemunho de muita crueldade e dor à sua volta, símbolo cristão de abnegação e fé. E o que talvez mais cative no filme de Robert Bresson – e que o leva para o campo do simbolismo espiritual – é uma superlativa abnegação, onde o protagonista (um burro) é visto como aceitando a sua sina, resignando-se ao que tem e recebe, mesmo quando são maus tratos, e não reagindo. Bresson não tenta provocar a reacção do espectador com sentimentalismo causado pelo do animal, deixando-nos vestir as dores do burro por nossa iniciativa. Tal é ainda mais intensificado pelas prestações dos actores – como sempre em Bresson, não profissionais – cuja cadência própria se confunde com uma ausência de sentimentos, num vazio existencial que cola na perfeição com a vida de Balthazar. Como sempre, Bresson acredita que somos nós que devemos interpretar o filme, sem mediação dos sentimentos de uma interpretação dramática, ou de explicações narrativas, do mesmo modo que a nossa vida não passa do testemunho de eventos soltos, frutos do acaso (o acaso que é afinal tradução de “hasard”), que cada um interpreta à sua maneira.
E numa história de submissão (ou de uma Paixão blasfema), que é uma história de personagens sem saída, onde, mais uma vez a escravização e passividade do burro representam a incapacidade humana de mudar o destino, podemos, por exercício, procurar os tais pecados: orgulho (na incapacidade do pai de Marie em prestar contas ao seu senhorio, o que o conduz à desgraça financeira), preguiça (na inacção de Jacques, incapaz de lutar por aquela que ama), inveja (no comportamento ciumento da mulher do padeiro que não quer ver Gérard aproximar-se de Marie), ira (nos acessos múltiplos de violência, e crimes de Gérard), gula (no alcoolismo de Arnold), luxúria (no comportamento de fuga de Marie), avareza (no exemplo do moleiro).
Na fotografia mais luminosa de Ghislain Cloquet, por contraste com a anterior de Léonce-Henri Burel, no seu habitual minimalismo, e jeito naturalista de compor os planos (e habitual obsessão por close-ups de mãos, acrescente-se), Bresson dá-nos um filme que é um conjunto de pequenos filmes, com extensas elipses, sem necessidade de contextualizar momentos, e muitas histórias entrecruzadas, nas quais, a presença do burro acaba por ser, mais cedo ou mais tarde, denominador comum. Como se Balthazar fosse um observador, ao mesmo tempo que catalisador (veja-se, por exemplo como é através dele que Gérard e Marie se aproximam), mas sobretudo como se absorvesse em si a dor e sofrimento que existem à sua volta. E “Peregrinação Exemplar” é um filme de muitas dores, sentidas na classe baixa, desde os árduos trabalhos campestres ao orgulho do pai de Marie que o leva a perder tudo, ou da fuga para a perdição de Marie aos pequenos e grandes delitos de Gérard, que vão do roubo ao contrabando, da violação à tentativa de matar Arnold, e talvez (numa das muitas elipses das quais nada sabemos) no assassinato de outra pessoa. É também uma história dos amores perdidos de Marie, que vê Jacques partir em criança, e não o pode voltar a ter em adulto quando os pais de ambos se defrontam em tribunal, deixando-se cair numa espécie de auto-vitimização que faz de Gérard o seu quase desejado castigo por tudo aquilo que ela não pode ter. E é, como sempre em Bresson, uma história de relação com o transcendente, com cada personagem a viver dores e penas numa existência unidirecional (veja-se novamente como Marie acaba sempre por escolher a fuga, mesmo que uma fuga para coisa nenhuma), cujo sofrimento se vai sempre materializar no corpo de Balthazar.
Com Jean-Luc Godard a escrever nos Cahiers du Cinema que “Peregrinação Exemplar” era o mundo numa hora e vinte, o filme tornou-se à altura – apesar da sua assumida complexidade e de ser o filme mais pessimista de Bresson até então –, o mais bem recebido filme do autor, elevando a sua reputação junto da crítica internacional. Mas esse quase quase unanimismo encontrou excepções em pessoas como a crítica Pauline Kael e o realizador Ingmar Bergman que o acharam extremamente aborrecido. O filme teria estreia no Festival de Veneza, onde venceria o prémio OCIC (International Catholic Organization for Cinema), o prémio San Giorgio, e o prémio Cinema Novo.
Produção:
Título original: Au hasard Balthazar; Produção: Argos Films / Parc Film / Athos Films / Svenska Filminstitutet (SFI) / Svensk Filmindustri (SF); País: França / Suécia; Ano: 1966; Duração: 95 minutos; Distribuição: Athos Films (França); Estreia: 15 de Maio de 1966 (Festival de Cannes, França), 25 de Maio de 1966 (França), 26 de Novembro de 1972 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Robert Bresson; Produção: Mag Bodard; Argumento: Robert Bresson; Música: Jean Wiener; Fotografia: Ghislain Cloquet [preto e branco]; Montagem: Raymond Lamy; Design de Produção: Pierre Charbonnier; Direcção de Produção: Philippe Dussart.
Elenco:
Anne Wiazemsky (Marie), Walter Green (Jacques), François Lafarge (Gérard), Jean-Claude Guilbert (Arnold), Philippe Asselin (Pai de Marie), Pierre Klossowski (Mercador), Nathalie Joyaut (Mãe de Marie), Marie-Claire Frémont (Mulher do Padeiro), Jean-Joël Barbier (Padre), Guy Renault, Jean Rémignard (Notário), Guy Brejac, Mylène Weyergans, Jacques Sorbets (Polícia), François Sullerot (Padeiro), Henri Fraisse, Gilles Sandier, Dominique Moune, Tord Pååg (Louis), René Pascal [como René Bazart], Pascale Savornin, Isabelle Petit, Roger Fjellstrom, Isabelle de Winter, Sven Frostenson, José Ruiz Pernias.