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É 1827, em Paris, e na vibrante vida das ruas destaca-se o teatro Funambules, onde o mimo Baptiste (Jean-Louis Barrault) actua num palco de rua. É daí que vê a cortesã Garance (Arletty) ser acusada de um roubo, a qual ele prontamente inocenta vindo a apaixonar-se por ela. Como rival tem o pretendente a actor Frédérick Lemaître (Pierre Brasseur), que se junta à sua companhia de teatro, mas o amor de Garance foge-lhe, por procurar protecção, primeiro no criminoso Lacenaire (Marcel Herrand), e depois no Conde de Montray (Louis Salou), enquanto Baptiste e Lemaître prosseguem as suas carreiras, vidas e desventuras amorosas.
Análise:
A primeira coisa que espanta em “Os Rapazes da Geral” é sabermos que o filme foi filmado em plena Segunda Guerra Mundial (as filmagens terminaram poucos dias antes do desembarque na Normandia, e três cópias foram escondidas para serem exibidas apenas após a libertação). Por esse motivo, e para escamotear conotações políticas, Marcel Carné optou por uma história de época, passada no século XIX (na Paris da chamada Monarquia de Julho de Louis Philippe, 1830-1848), e por isso longe de tudo o que se vivia em França. Isto era algo bastante diferente do que constituía o cinema do chamado Realismo Poético, dado a histórias de gente humilde na França contemporânea. Mas esse distanciamento não foi suficiente para tornar o processo de rodagem do filme uma experiência simples. Os cenários exteriores, filmados em Nice sofreram com desastres naturais; vários produtores acabaram rejeitados pelas autoridades nazis; os alemães limitavam o uso de estúdios; a fome grassava entre equipa e figurantes (muitos deles, membros da Resistência); entre a equipa existiam técnicos judeus (por exemplo Alexandre Trauner e Joseph Kosma), que trabalharam em segredo; todo o material técnico (da madeira para cenários à própria película) era racionado; as filmagens tiveram de parar diversas vezes; etc. Ainda assim, e filmado durante um período de 18 meses, “Os Rapazes da Geral” foi o mais dispendioso filme francês feito até então.
Passando ao longo enredo, que surge dividido em duas partes, vejamos cada uma separadamente.
Parte I: Boulevard do Crime:
Com a acção a decorrer em 1827, o filme mostra-nos Garance (Arletty) – uma bela cortesã, que vive do seu charme –, quando esta visita Pierre-François Lacenaire (Marcel Herrand) um mestre do crime organizado, ao mesmo tempo que rejeita delicadamente os avanços do galã Frédérick Lemaître (Pierre Brasseur), um pretendente a actor. Enquanto observam um teatro de pantomina na praça, amostra do teatro Funambules, Garance é acusada de roubar um relógio, sendo salva pelo mimo vestido de Pierrot, Baptiste Deburau (Jean-Louis Barrault) que testemunhou o roubo, e o descreve através de mímica. Em agradecimento, Garance dá-lhe uma flor, que Baptiste guarda com paixão. Quem nota esse estado é Nathalie (María Casarès), a filha do dono do teatro, e também mima, apaixonada por Baptiste. Nessa noite, uma altercação entre actores e o director (Marcel Pérès), leva a uma greve dos actores, com Baptiste a salvar a noite numa improvização com o recém-chegado Frédérick Lemaître, que assim encontra emprego no Funambules, e se torna amigo de Baptiste, que lhe arranja alojamento na mesma pousada em que vive. Mais tarde, na mesma noite, Baptiste encontra Garance num clube nocturno com Lacenaire e o seu bando, e quando esta o reconhece, pede-lhe para dançar consigo, sendo ele atirado para fora do clube por Avril (Fabien Loris), um dos homens de Lacenaire, mas com Garance a sair com ele. Baptiste leva também Garance para a mesma pousada, mas quando lhe declara o seu amor, esta não lhe corresponde, e Baptiste sai magoado, deixando Patrick a fazer companhia a Garance. Baptiste torna-se um grande sucesso pelas suas pantominas, contracenando com Patrick e Garance, agora amantes, enquanto Nathalie sofre por o ver apaixonado por aquela que não pode ter. Também um sucesso é Garance, que atrai admiradores ao teatro, como o rico Conde Édouard de Montray (Louis Salou), que lhe promete a sua ajuda mesmo com ela a rejeitar as suas propostas. Essa ajuda será aceite pouco depois, quando Garance é implicada pela polícia num crime de Lacenaire.
Parte II: O Homem de Branco:
Passam sete anos e Frédérick tornou-se uma estrela no Grande Theatre. Admirado pelo público, Frédérick vive vistosamente acima das possibilidades, acumulando dívidas, mas comportando-se como se estivesse acima de todos, como faz ao humilhar nos ensaios os autores da sua nova peça, que modifica em tempo real na noite de estreia, o que leva um dos autores a desafiá-lo para um duelo. Na véspera, é abordado por Lacenaire e Avril, com o primeiro a entregar-lhe uma peça de sua autoria. A noite de bebida dos três leva Frédérick a chegar ao duelo bêbedo, e a sair dele com apenas um ferimento num braço. Baptiste continua a triunfar no espectáculo de mímica, e quando Frédérick vai ver uma actuação do amigo, depara com Garance, a qual lhe conta ter voltado a Paris, estando ainda com o Code de Montray, e vê o espectáculo todas as noites, em segredo. Apesar de enciumado, Frédérick decide que isso o ajudará como actor, e dispõe-se a dizer a Baptiste da presença de Garance. Só que Nathalie, agora casada com Baptiste, descobre e envia o filho a Garance para a fazer sentir culpada, e quando Baptiste chega, já Garance saiu. Ao regressar a casa do Conde, Garance explica-lhe que ama outro, mas acede a ficar com ele. Com Frédérick a triunfar no teatro como Othello, quando Garance e o Conde assistem a uma das suas interpretações, o Conde desconfia ser Frédérick o alvo do amor de Garance e tenta provocá-lo para um duelo. Com Lacenaire a tomar o partido de Frédérick, na troca de insultos, Lacenaire decide provocar o Conde, puxando uma cortina para revelar Baptiste e Garance estão juntos, sendo expulso do teatro. Com o orgulho ferido, Lacenaire procura o Conde no dia seguinte e mata-o. Sem saber de nada, Baptiste e Garance passam a noite juntos, mas na manhã seguinte são descobertos por Nathalie que implora a Baptiste que não a deixe. Garance sai, e Baptiste persegue-a perdendo-a na multidão, enquanto ela entra num coche decidida a voltar para o Conde.
Com início, interlúdio (este obrigado pelas autoridades, que não permitiam que um filme tivesse mais de 90 minutos, levando Carné a dividi-lo em duas partes) e final onde se exibe uma cortina que abre (ou fecha) sobre a tela onde decorre a história, Carné dizia-nos desde logo que pretendia retratar a vida como um teatro – ou o teatro como parte da vida, se quisermos, já que é de actores e da sua forma de interligarem a sua arte com a sua vida, que o filme trata.
E na arte dramática, temos desde logo o contraste dos amigos Baptiste e Frédérick, o primeiro um mimo, por isso mesmo de poucas palavras, eloquente nos seus gestos, e o segundo, um galanteador, que faz da palavra a sua arma. O primeiro começando com alegria e terminando com tristeza, o segundo começando com tragédias, e terminando em comédias. Afinal, como se diz a dada altura, não são tragédia e comédia duas faces da mesma moeda? Note-se a lindíssima sequência inicial onde Baptiste, sem palavras, descreve um roubo, assim ilibando Garance, e apaixonando-se por ela, e percebemos como a força da arte dramática é motor do filme. Se mais precisássemos, bastaria atentar no título “enfants do paradis” (no original: crianças do paraíso), sendo o nome vulgarmente atribuído aos lugares da zona mais alta de um teatro, com os bilhetes mais baratos (isto é, as galerias, ou em inglês “the gods” – os deuses), e onde a inocência e o voyeurismo convivem.
E nessa teatralização, e no imiscuir da arte dramática nas vidas das personagens, temos uma história de amor, o de Baptiste por Garance, ele desejado pela colega Nathalie, ela primeiro, por um mal entendido, dando-se a Frédérick, e depois, por necessidade, continuando com o Conde, que a ostentava como troféu. E se, por um lado temos a definição de personagens (o tal contraste de Baptiste e Frédérick), por outro essa história de fatalidades, onde – como diz Lacenaire ao Conde na parte final – é o Destino que decide o lugar dos homens, vamos vendo em simultâneo, um retrato do choque de classes, com Baptiste, Frédérick, Lacenaire e o Conde, todos a serem baseados em pessoas reais desse tempo.
Com um épico de três horas, Marcel Carné deleita-se (e deleita-nos) numa história tão simples quanto complexa, com o seu olhar sobre o rico rendilhado de personagens, figurinos incríveis (da autoria do pintor e designer Mayo), filmando em exteriores e em estúdio, conseguido cenários elaborados, com a sua câmara a mostrar-nos um vasto leque de recursos técnicos, que vão da profundidade de foco a diversos jogos de campo/contracampo. Toda esta dinâmica nos dá um mundo que é ao mesmo distante e próximo, com personagens que almejam a muito, mas nos parecem bem terrenos, em situações que vivem do glamour (o teatro, a fantasia), mas que respiram a confusão, o ruído e o cheiro das ruas, no que poderia chamar-se uma atmosfera quase onírica, mas de pés bem assentes na realidade.
Brindado ainda por um excelente elenco, o filme de Carné dá-nos personagens que amam, sofrem, ambicionam, erram, que têm defeitos, que se procuram superar, deixando sempre a ideia de que em todos há bem e há mal. Afinal o que devemos dizer da vida de Garance, que segue conveniências materiais (ora com Lacenaire, ora com o Conde), mas que sacrifica o seu amor para não estragar o futuro do filho de Baptiste? Ou do próprio Baptiste, o símbolo do amor de que falam todos os poetas, mas capaz de deitar a família a perder? Ou ainda de Nathalie, a apaixonada e possessiva esposa de Baptiste, capaz de usar o filho para chantagear Garance emocionalmente, mas disposta a deixar o marido se este não lhe confessar amor? Espanta-nos ainda Frédérick, aparentemente oco e fútil, mas verdadeiramente dedicado à sua arte, e se quezilento e conquistador, é o primeiro a querer dar espaço ao amor de Garance e Baptiste. E até, no final, Lacenaire, mostrado como burlão, criminoso e arrogante, se nos mostra orgulhoso, cheio de respeito próprio ao desafiar o Conde e entregar-se às autoridades depois. Com personagens que parecem viver sempre no teatro, ninguém é unidimensional, e todos trazem um vasto colorido, onde nunca sabemos que forças irão dirigir a dinâmica seguinte da história. Restam ainda, e ficam para sempre, os riquíssimos diálogos, cheios de poesia e duplicidade de intenções, e se a história aborda um par de vezes os duelos de honra, é de facto a palavra que mata como se confirma na parte final no destino do Conde, cujas palavras levaram ao ódio de Lacenaire, que respondeu abrindo uma cortina, revelando mais uma vez essa ligação entre teatro e vida.
“Os Rapazes da Geral” foi exibido no seu formato original (dividido em dois filmes) brevemente, ainda antes da saída dos nazis, tendo tido nova estreia, já num novo formato, após a libertação. O filme foi um sucesso imediato, tendo mais tarde vindo ser considerado o melhor filme francês de sempre, referência de muitos autores contemporâneos.
Produção:
Título original: Les enfants du paradis [Título inglês: Children of Paradise]; Produção: Société Nouvelle Pathé Cinéma; País: França; Ano: 1945; Duração: 181 minutos; Distribuição: Pathé Consortium Cinéma (França); Estreia: 9 de Março de 1945 (França).
Equipa técnica:
Realização: Marcel Carné; Produção: Raymond Borderie (Pathé Cinema), Adrien Remaugé; Produtor Associado: ; Argumento: Jacques Prévert; Música: Maurice Thiriet, Joseph Kosma; Direcção Musical: Charles Münch; Fotografia: Roger Hubert [preto e branco]; Montagem: Henri Rust, Madeleine Bonin [não creditada]; Design de Produção: Léon Barsacq, Raymond Gabutti, Alexandre Trauner; Figurinos: Mayo; Pantominas: Georges Mouqué; Direcção de Produção: Fred Orain.
Elenco:
Arletty (Claire Reine, dita Garance), Jean-Louis Barrault (Baptiste Debureau), Pierre Brasseur (Frédérick Lemaître), Pierre Renoir (Jéricho), María Casarès (Nathalie), Gaston Modot (Fil de Soie), Fabien Loris (Avril), Marcel Pérès (Director de Funambules), Pierre Palau (Encenador de Funambules), Étienne Decroux (Anselme Debureau), Jane Marken (Madame Hermine), Marcelle Monthil (Marie), Louis Florencie (Gendarme em ‘Adrets’), Habib Benglia (Empregado nos Banhos Turcos), Rognoni (Director do Grand Théâtre), Jacques Castelot (Georges), Paul Frankeur (Inspector da Polícia), Albert Rémy (Scarpia Barrigni), Robert Dhéry (Célestin), Auguste Bovério (Primeiro Autor de ‘L’auberge des Adrets’), Paul Demange (Segundo Autor de ‘L’auberge des Adrets’), Louis Salou (Édouard, Conde de Montray), Marcel Herrand (Pierre-François Lacenaire).