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Cinema, Cinema Francês, Comédia, Comédia Dramática, Gaston Modot, Jean Renoir, Julien Carette, Marcel Dalio, Nora Gregor, Paulette Dubost, Realismo poético, Roland Toutain
Quando o aviador André Jurieux (Roland Toutain) aterra, após bater um recorde de travessia do Atlântico, a sua única preocupação é a ausência de Christine (Nora Gregor), a mulher que ama, e que está casada com o Marquês de Chesnaye (Marcel Dalio). Com seu amigo Octave (Jean Renoir), também admirador de Christine, André vai à festa do Marquês, num retiro na sua mansão de campo, disposto a reconquistar Christine, num evento onde está também Geneviève (Mila Parély), amante do Marquês, e que tudo tem para um fim-de-semana de intrigas, enganos e traições.
Análise:
Frequentemente listado como um dos mais importantes filmes da história do cinema, “A Regra do Jogo” foi uma incursão do cinema de Jean Renoir no mundo da alta sociedade, deixando para trás, por uma vez, as histórias dos rejeitados e marginalizados de classe baixa. Com uma maior leveza, e momentos de alguma comédia, foi o mais caro filme francês até ao momento, e célebre pelas características estéticas introduzidas no modo de filmar, como o uso de longos travellings e da profundidade de foco.
A história de “A Regra do Jogo” começa quando André Jurieux (Roland Toutain) aterra o seu avião após bater um recorde de travessia do Atlântico. Só que, enquanto todos o celebram, André amua por não ver no público Christine, aquela que ama, consolado apenas pelo amigo Octave (Jean Renoir). Pela rádio, Christine (Nora Gregor) e a sua criada Lisette (Paulette Dubost) ouvem a transmissão e as palavras amuadas de André. Christine uma nobre austríaca, casada com o também nobre Robert, Marquês de Chesnaye (Marcel Dalio), o qual tem por amante Geneviève (Mila Parély), e está ciente do afecto da esposa por André. Chega a festa de caça habitual do Marquês, na sua propriedade rural La Colinière, o qual convida todos os amigos, inclusivamente André, que chega com Octave, amigo de Christine, desde que esta era uma rapariga na Áustria. Depois de um recrontro entre o guarda de caça, Schumacher (Gaston Modot), marido Lisette, e o caçador-furtivo Marceau (Julien Carette), este acaba contratado pelo próprio Marquês, passando imediatamente a tentar conquistar Lisette. Após a caçada, conduzida por Schumacher, os acontecimentos começam a precipitar-se, com André a assediar Christine, e Robert a despedir-se de Geneviève com um beijo, que Christine observa pelos binóculos. Segue-se um baile de máscaras muito movimentado, durante o qual Christine confessa o seu amor a André, e os dois combinam fugir, com André a decidir contar tudo a Robert, o que leva a uma luta entre os dois. Só que, pelo meio, Schumacher descobre Lisette com Marceau e persegue este a tiro pela mansão, com a perseguição travada por André e Robert, já amigos. Robert acaba por despedir Schumacher e Marceau, enquanto Lisette diz preferir ficar com a patroa e não com nenhum dos dois. Também Octave, num encontro na estufa, confessa que sempre amou Christine, e esta decide ficar com ele. Aí, observados por Schumacher e Marceau, entretanto já amigos, estes pensam tratar-se de Octave e Lisette (já que Christine enverga uma capa de Lisette). Quando Octave volta atrás para buscar o seu casaco, Lisette convence-o de que Christine precisa de alguém que lhe dê outro estilo de vida, e este acaba por enviar André no seu lugar e com o seu casaco, sendo atingido a tiro por Schumacher, julgando que está a matar Octave. Descoberto o sucedido, Robert decide encobrir tudo, declarando aos convidados que Schumacher disparou pensando tratar-se de um caçador-furtivo.
Para lá do prodígio técnico que foi filmar “A Regra do Jogo” com todas as técnicas utilizadas, proporcionando sequências de grande fôlego (os interiores com o uso da profundidade de campo, os travellings nas perseguições, as cenas de caça, os passeios pelos campos, etc.), o filme marcou ainda pelo seu lado de comédia de costumes, numa sátira elegante à alta sociedade. Por entre enganos e ilusões, todos têm relações ilícitas, todos querem estar com quem não estão, ou vivem relações feitas de ócio, e perseguem outras para procurarem um ócio diferente, sem que lhes tragam mais substância que as anteriores. Esse jogo conquista e traição – transversal a classes, como se percebe no triângulo Schumacher-Lisette-Marceau – é, no entanto levado com elevação, todos compreendendo todos, e aceitando cada volta como aceitável, afinal cada qual é culpado daquilo pelo qual poderia culpar amante ou rival.
Uma das primeiras produções da recém-formada Nouvelle Édition Française (NEF), que Renoir fundou, a exemplo da United Artists, com o irmão Claude Renoir, e ainda André Zwobada, Oliver Billiou e Camille François, o filme fez extenso uso de paisagens naturais (a mansão os campos de caça), bem como de interiores riquíssimos, filmados nos Studios Pathé-Cinema, para aquilo a que Renoir chamou um “divertissement”, a partir da palavra retirada da música barroca. Baseando-se na atmosfera de algumas obras literárias e em comédias clássicas francesas – em particular a peça de teatro “Les Caprices de Marianne” de Alfred de Musset –, Renoir estava ciente de que queria satirizar a burguesia do seu tempo, mas com um filme leve, com um tom optimista, uma vez que a iminência de uma nova guerra era já uma ideia que lhe toldava o espírito, no que foi uma produção feita por uma equipa muito alegre,e onde se contava o fotógrafo Henri Cartier-Bresson, como assistente de realização – mesmo com algumas derserções a meio devido à invasão da Checoslováquia –, e em que Renoir deixou que parte dos diálogos fossem improvisados.
Cheio de insinuações subtis, e vivendo dos múltiplos jogos entre duas ou três personagens de evidentes complexidades e inesperadas transformações pessoais, outra clara influência no filme de Jean Renoir é a obra “As Bodas de Fígaro”, de Beaumarchais – citada no início do filme – a qual resultou numa ópera de Mozart. Como então, é um retrato de uma Europa decadente, e uma sátira à classe nobre, que interessam a Renoir, onde todos traem e o aceitam como se nada fosse, onde nenhum valor realmente importa, o amor acaba por ser uma caricatura, e o ócio e superficialidade são as tendências principais. O matar sem razão como vemos na extensa cena de casa, é apenas um exemplo dessa superficialidade, encontrando eco na mortandade de uma guerra.
Exemplo de contraste de classes, mas também entre modernidade e tradição, sentimentos e superficialidade, apesar de hoje universalmente aceite, e citado como influência por muitos realizadores consagrados, “A Regra do Jogo” não foi um sucesso aquando da sua estreia, sofrendo fortes críticas de uma parte da sociedade, que questionava os valores morais que o filme passava, e suas consequências nos jovens franceses. Atacado pela extrema-direita (ter um Marquês judeu casado com uma austríaca não ajudava), o filme sofreu sucessivas reedições, com cortes que o levaram dos originais 113 minutos para 100, e depois ainda para 90 e 85 minutos, cortando partes essenciais do enredo, e na versão mais curta eliminando o arco de Octave. Mesmo assim “A Regra do Jogo” acabou banido, primeiro pelas autoridades francesas, e depois pelos nazis. Só em 1959 foi possível (ainda sob supervisão de Renoir) reconstruir o filme a partir de cópias redescobertas, chegando às versões actuais de 110 ou 106 minutos.
Produção:
Título original: La Règle du Jeu; Produção: Nouvelles Éditions de Films (NEF); País: França; Ano: 1939; Duração: 106 minutos; Distribuição: Distribution Parisienne de Films (DPF); Estreia: 8 de Julho de 1939 (França), 20 de Abril de 1979 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Jean Renoir; Produção: Jean Renoir [não creditado]; Produtor Associado: ; Argumento: Jean Renoir, Carl Koch [colaboração]; Música: Joseph Kosma, Léopold Gangloff [música adicional[, Louis Byrec [música adicional], Pierre-Alexandre Monsigny, Wolfgang Amadeus Mozart; Direcção Musical: Roger Desormière; Fotografia: Jean Bachelet, Jacques Lemare, Jean-Paul Alphen, Alain Renoir [preto e branco]; Montagem: Marguerite Renoir, Marthe Huguet; Design de Produção: Eugène Lourié, Max Douy; Figurinos: Coco Chanel (Maison Chanel); Caracterização: Ralph; Direcção de Produção: Claude Renoir Sr.
Elenco:
Nora Gregor (Christine de la Cheyniest), Paulette Dubost (Lisette, A Sua Camareira), Mila Parély (Geneviève de Marras), Odette Talazac (Madame Charlotte de la Plante), Claire Gérard (Madame de la Bruyère), Anne Mayen (Jackie, Sobrinha de Christine), Lise Elina (Radio-Reporter), Marcel Dalio (Marquis Robert de la Cheyniest), Julien Carette (Marceau, O Caçador Furtivo), Roland Toutain (André Jurieux), Gaston Modot (Edouard Schumacher, O Guarda-Caça), Jean Renoir (Octave), Pierre Magnier (O General), Eddy Debray (Corneille, O Mordomo), Pierre Nay (Monsieur de St. Aubin), Richard Francoeur (Monsieur La Bruyère), Léon Larive (O Cozinheiro).