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Le quai des brumesJean (Jean Gabin) é um desertor de uma guerra não nomeada chegado à boleia a Le Havre. Aí esconde-se no bar de Panama (Édouard Delmont), onde conhece a também fugitiva Nelly (Michèle Morgan). Esta, depois do desaparecimento do seu ex-noivo Maurice, esconde-se do padrinho Zabel (Michel Simon), e dos gangsters de Lucien (Pierre Brasseur) que procuram Maurice. Ajudando Jean a obter documentos, e apaixonando-se por ele, Nelly vai ganhar força para resistir a Zabel e a Lucien, percebendo que os dois homens a desejam, o que pode ferir os intentos do par, de escapar para longe.

Análise:

Em 1939, em vésperas da Segunda Guerra Mundial, estreava “Cais das Brumas”, mais um exemplo do chamado Realismo Poético Francês, e um dos expoentes máximos de Miche Carné. Baseado num romance de Pierre Mac Orlan (autor contemporâneo), adaptado por Jacques Prévert, o filme de Carné venceria o Prémio Louis-Delluc (então o mais alto galardão no cinema francês), e viria a ser o primeiro filme a receber um cunho que mais tarde se tornaria famoso: film noir.

“Cais das Brumas” conta a história de Jean (Jean Gabin), um desertor de guerra (não nomeada para além da referência a Tonkin, então na Indochina francesa, actual Vietname), que se dirige à cidade portuária de Le Havre, onde procura uma nova identidade. Aí vai-se refugiar num bar isolado, e conhecer um grupo de desiludidos da vida, como o bêbedo (Raymond Aimos), o pintor suicida (Robert Le Vigan) e o nostálgico dono do local (Édouard Delmont). Mas é com a jovem Nelly (Michèle Morgan) que Jean cria afinidade. Fugida do padrinho Zabel (Michel Simon), o qual está envolvido com o grupo de malfeitores de Lucien (Pierre Brasseur), que o vai assediando em busca do desaparecido Maurice, ex-noivo de Nelly. Tal gera um tiroteio junto ao bar. Com o auxílio de Nelly, Jean procura obter novos documentos e roupas, para que possa viajar. Os dois passam tempo juntos, apaixonando-se. Mas, ao encontrá-los juntos, Lucien é possessivo com Nelly, o que leva Jean a humilhá-lo publicamente. Já com viagem marcada para a Venezuela, Jean deixa o barco para se despedir de Nelly, encontrando-a a ser atacada por Zabel, já que ela descobre ter sido ele a matar Maurice, por ciúmes. Jean salva-a, matando Zabel, para ser de seguida morto por Lucien, morrendo nos braços da inconsolável Nelly.

Com o habitual Jean Gabin como protagonista (uma constante nos filmes do género desta época), Carné dá-nos, em “Cais das Brumas”, mais um conto dedicado às franjas mais pobres e desiludidas da população – como se pode ver nos diálogos no bar de Panamá –, onde Jean representa a juventude dilacerada pela guerra, num momento em que outra guerra se preparava para estalar. Seja Jean, o bêbedo, o pintor, a própria Nelly, ou até os gangsters como Lucien e Zabel, todas as personagens são pessoas deslocadas, sem verdadeiros objectivos que não sejam sobreviver mais um dia, nem que para isso tenham de matar. Como diz o pintor, uns matam na caça, outros na guerra, outros ainda porque são bandidos, e por fim há aqueles que se matam a si próprios. Essa morte inerente é a tragédia anunciada do filme de Carné, onde viver parece ser sinónimo de morrer, seja literalmente, seja em sentido figurado. Destaque ainda para o papel do cão, que segue fielmente Jean, representando, a espelho de todas as personagens, a figura de quem quer ser amada (note-se o discurso final de Zabel), sem qualquer objectivo que não seja ser aceite e pertencer a alguém.

Frio e negro, tal como o nevoeiro e humidade de Le Havre, tantas vezes mencionados, na noite que parece nunca acabar, “Cais das Brumas” notabiliza-se pela atmosfera criada – da impecável construção da cidade, em estúdio, ao modo como as personagens se movem e agem. Não admira que o filme seja, para muitos, um protótipo para o noir norte-americano de poucos anos depois, com a figura do duro (note-se os modos rudes, mas sempre assertivos, sem serem necessariamente maldosos, de Jean), o fumo do tabaco, os interiores lúgubres e mal iluminados, e todo um contexto onde ninguém procura nenhuma moralidade, mas todos parecem aceitar serem culpados de algo que nem sequer é visível. Nesse sentido, Jean é sintomático, desertor de guerra, tem como que um pecado original sobre si, do qual não espera redenção – nem no amor de Nelly, que aceita como bênção, mas sabe ser efémero – apenas fuga e esquecimento.

Como habitual nos filmes deste período, a força de “Cais das Brumas” reside tanto no realismo de histórias de gente humilde, mas de impacto social, como no figurativo das personagens e situações (e pode-se acrescentar a estética noir ), que contribuem para a citada atmosfera de desilusão e tragédia que, mesmo tratadas poeticamente (e não devemos esquecer as bonitas – e ousadas – cenas filmadas com Jean Gabin e Michèle Morgan no quarto de hotel), só ampliam o sentido de tristeza e desespero que fica da história de Pierre Mac Orlan.

Por esse modo de mesclar realismo e poesia, pelo retrato da desilusão de uma geração, pelo sentido de um romantismo fatalista, e pela estética de frieza e crueza que tanto cinema inspiraria, “Cais das Brumas” tem sido apontado como um filme fundamental do cinema universal por muitos críticos e autores.

Jean Gabin e Michèle Morgan em "Cais das Brumas" (Le quai des brumes, 1938), de Marcel Carné

Produção:

Título original: Le quai des brumes [Título inglês: Porto of Shadows]; Produção: Ciné-Alliance; País: França; Ano: 1938; Duração: 91 minutos; Distribuição: Les Films Osso (França); Estreia: 17 de Maio de 1938 (França), 13 de Novembro de 1984 (Cinemateca Portuguesa, Portugal).

Equipa técnica:

Realização: Marcel Carné; Produção: Gregor Rabinovitch; Argumento: Jacques Prévert [a partir do livro de Pierre Dumarchais (como Pierre MaOrlan)]; Música: Maurice Jaubert; Fotografia: Eugen Schüfftan [preto e branco]; Montagem: René Le Hénaff; Design de Produção: Alexandre Trauner; Figurinos: Coco Chanel [não creditada]; Direcção de Produção: Simon Schiffrin.

Elenco:

Jean Gabin (Jean), Michel Simon (Zabel), Michèle Morgan (Nelly), Pierre Brasseur (Lucien), Édouard Delmont (Panama), Raymond Aimos (Quart Vittel), Robert Le Vigan (O Pintor), René Génin (Médico), Marcel Pérès (Motorista), Roger Legris (Empregado do Hotel), Martial Rèbe (Cliente), Jenny Burnay (Amiga de Lucien).

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