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Cinema, Cinema Francês, Drama, Jean Gabin, Jean Renoir, Junie Astor, Louis Jouvet, Maxim Gorky, Realismo poético, Suzy Prim, Vladimir Sokoloff
Pépel (Jean Gabin), é um pequeno ladrão de um bairro pobre, onde vive com muitos outros rejeitados da sociedade, pagando renda ao velho avarento Kostylev (Vladimir Sokoloff), e à sua mulher, Vassilissa (Suzy Prim), da qual é amante, e que exploram um condomínio para pobres. Numa noite, ao assaltar a casa de um Barão (Louis Jouvet) caído em desgraça, Pépel torna-se seu amigo, e aquele acaba por vir viver com ele. A ele, Pépel confessa que sonha com a liberdade de viver longe da sua reputação, para o que sonha com o amor da jovem Natacha (Junie Astor), irmã da ciumenta Vassilissa.
Análise:
Desta vez, com base num texto do russo Maxim Gorky, Jean Renoir filmava mais uma história de gente humilde e/ou a braços com dificuldades financeiras capazes de destruir vidas, para olhar para os patamares mais baixos da sociedade. Novamente com Jean Gabin no principal papel, o filme contrasta a alta sociedade com a vida miserável dos protagonistas, num drama que roça sempre o tom cómico. O filme seria o primeiro vencedor do prémio Louis Delluc, instituído para celebrar o melhor filme francês de cada ano.
“O Mundo do Vício” conta-nos a história de Pépel (Jean Gabin), um pequeno criminoso a viver no condomínio gerido pelo velho avarento Kostylev (Vladimir Sokoloff), e a mulher deste, Vassilissa (Suzy Prim), a qual vive uma relação secreta com Pépel, na esperança que este lhe mate o marido. Uma noite, enquanto Pépel assaltava a rica casa de um Barão (Louis Jouvet), torna-se amigo deste. É que o Barão, caído em desgraça pelos golpes financeiros dados no exército, para cobrir perdas ao jogo, contemplava o suicídio, acabando por passar a noite na conversa com Pépel. No dia seguinte, sendo Pépel preso pela polícia, é o próprio Barão que o salva, e em troca, decide ir viver com ele no bairro de Kostylev, uma vez que tudo o que tinha foi penhorado. Aí, Pépel apenas se envergonha perante a jovem Natacha, que gosta dele, mas o vê como um ladrãozeco. Ao mesmo tempo, Kostylev, acossado pelo inspector da polícia (André Gabriello), resolve oferecer-lhe a mão de Natacha (Junie Astor), irmã de Vassilissa, algo que desgosta a rapariga, mas agrada a Vassilissa que a vê como rival perante Pépel. Embriagada, Natacha cede aos avanços do inspector, mas estes são travados por Pépel, que leva a rapariga, para fúria de Kostylev e Vassilissa, que a espancam. Na confusão que se segue no bairro, Kostylev é morto pela população, e Vassilissa acusa Pépel, embora todos queiram partilhar responsabilidade. Pépel é preso, e Vassilissa parte, mas Natacha espera por ele, depois do que, partem os dois juntos pelos campos.
Cheio de conversas entre o bem intencionado ladrão Pépel (Gabin sempre naturalista é completamente à vontade), e o emproado, mas humilde Barão, nas quais se discute a vida e a liberdade, “O Mundo do Vício” é um conto terno sobre as diferenças sociais e o modo como estas condicionam ou não a nobreza do espírito. Assim, temos de um lado um Barão – rico, prestigiado, com boas ligações – que tudo perde, acabando no bairro pobre; e por outro o ladrão que antes de o ser já o era (note-se a crítica social onde ele conta que por ser filho de quem era, já era chamado de ladrão ainda nem andava), que quer mudar de vida mas não sabe como. Neste contexto, os verdadeiros maus da fita são os senhorios, ambiciosos (avarento, ele; ciumenta e criminosa, ela), bem como o corrupto inspector, preparado para fechar um olho se lhe derem a mão de Natacha. No campo oposto, Natacha é o sinal da virtude e inocência: cobiçada pelo inspector; moeda de troca para os seus guardiões; e esperança para Pépel.
Por essa razão – e passando o longo olhar pelo o bairro, feito de pessoas diferentes, onde cabe até um filósofo e um actor caído em desgraça, e onde a loucura é vista como um mal desprezado, mas capaz de lançar as pessoas no mais fundo dos fundos – será o amor de Pépel e Natacha a única força redentora, capaz de motivar comportamentos, dar alento nos maus momentos, e por fim, retirá-los de uma vida sem esperança para outra (incerta, é verdade) que é apenas uma interrogação.
Com muito de poético e simbólico no texto do filme (atente-se às conversas do Barão, ou ao papel do Actor, mas também à qualidade de personagens-tipo, Natacha uma espécie de Cinderela, e Kostylev como um Scrooge Dickensiano), há um olhar de simpatia para com os desprivilegiados, os quais surgem aqui como presas – dos que os exploram, da corrupção das autoridades, e das condições desumanas para que são atirados, sem qualquer apoio ou acompanhamento. Esse olhar, nas mãos de Renoir, é sempre acompanhado da mestria com que filma os seus interiores, labirínticos, aqui, plenos de acção e pontos de interesse, num permanente exercício de lições de como filmar.
Com um final que poderá ter inspirado “Spartacus” (1960) de Stanley Kubrick (quando todos assumem culpa pela morte de Kostylev), a imagem que fica lembra do filme do mesmo ano “Tempos Modernos” (Modern Times, 196), de Charles Chaplin, com o casal de protagonistas a caminhar pela estrada, rumo ao infinito, mas aqui ao nosso encontro, e literalmente voltando costas às autoridades, que caminham em direcção oposta. Não admira que muitos vissem no filme um manifesto revolucionário pró-socialista.
A mesma obra de Gorky teve outras adaptações, sendo uma das mais curiosas realizada no Japão, por Akira Kurosava, no filme “Albergue Nocturno” (Donzoko/どん底, 1957).
Produção:
Título original: Les bas-fonds; Produção: Films Albatros; País: França; Ano: 1936; Duração: 93 minutos; Distribuição: Gaumont-Franco Film-Aubert (G.F.F.A) (França); Estreia: 11 de Dezembro de 1936 (França), 17 de Março de 1973 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Jean Renoir; Produção: Alexandre Kamenka; Argumento: Yevgeni Zamyatin, Jacques Companéez [a partir da peça de Maxim Gorky]; Diálogos: Jean Renoir, Charles Spaak; Música: Jean Wiener; Fotografia: Fédote Bourgasoff, Jean Bachelet [não creditado] [preto e branco]; Montagem: Marguerite Renoir; Direcção Artística: Alexandre Kamenka; Cenários: Eugène Lourié, Hugues Laurent; Caracterização: Igor Keldich; Efeitos Especiais: Paul Minine [não creditado], Nicolas Wilcké [não creditado]; Direcção de Produção: Vladimir Zederbaum.
Elenco:
Jean Gabin (Pepel Wasska), Suzy Prim (Vassilissa Kostyleva), Louis Jouvet (O Barão), Junie Astor (Natacha), Jany Holt (Nastia), Vladimir Sokoloff (Kostylev), Robert Le Vigan (Actor Alcoólico), Camille Bert (O Conde), René Génin (Louka, O Filósofo), Paul Temps (Satine, O Telegrafista), Robert Ozanne (Jabot de Travers), Henri Saint-Isle (Klestch, O Sapateiro), Alex Allin (Tatar), André Gabriello (Toptoun), Léon Larive (Felix, O valet do Barão), Nathalie Alexeeff (Anna, A Moribunda), René Stern (O Enviado do Conde), Maurice Baquet (Alochka, O Acordeonista).