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Ivanovo detstvo Ivan Bondarev (Nikolay Burlyaev) é um rapaz de 12 anos, que perdeu a família na Segunda Guerra Mundial. Se nos seus sonhos o vemos em brincadeiras de criança com a mãe (Irma Raush) ou a irmã, ao acordar, vamos encontrá-lo sujo, escondido, amedrontado, atravessando linhas inimigas no seu trabalho de batedor, trazendo informações preciosas ao exército do seu país. E se tal deixa incrédulo o tenente Galtsev (Evgeniy Zharikov), que não acredita que aquela criança petulante seja quem diga ser, logo o tenente-coronel Gryaznov (Nikolay Grinko) nos mostra que Ivan é uma peça chave do reconhecimento do inimigo, sempre pronto a aventurar-se nas missões mais arriscadas.

Análise:

Quando viu a sua primeira longa-metragem, “A Infância de Ivan”, estrear, Andrei Tarkovsky tinha 30 anos, e já três curtas-metragens. Estas, realizadas em contexto universitário, na VGIK (Instituto Nacional de Cinematografia), reflectiam o percurso de um estudante fascinado com as novas linguagens internacionais, como na Nova Vaga francesa, ou autores como Ingmar Bergman, Rober Bresson e Akira Kurosawa. É ainda aí que o realizador começa a sua colaboração com o amigo, e também ele futuro realizador, Andrei Konchalovsky, que ajudaria no guião deste filme de estreia, como já colaborara no filme-diploma de Tarkovsky, “O Rolo Compressor e o Violino” (Katok i skripka, 1961).

Começando logo aí o percurso naquilo que Ingmar Bergman chamaria a verdadeira linguagem do cinema, onde as imagens funcionam como espaço para a contemplação e para o sonho, “A Infância de Ivan”, baseado no conto “Ivan”, de Vladimir Bogomolov, conta-nos, de uma forma muito solta, as desventuras do pequeno Ivan Bondarev (Nikolay Burlyaev), um órfão em plena Segunda Guerra Mundial, que disfarça a sua fragilidade numa capa de dureza, enquanto desempenha perigosas missões secretas para o exército soviético.

Conhecemos Ivan, primeiro através de um sonho, numa idílica paisagem campestre que o vai unir à sua simpática mãe (Irma Raush, esposa de Tarkovsky), levando-o a uma sequência de voo. Acorda, depois, mostrando-nos o contraste com o medo e a paisagem fria e desolada, com as tropas alemãs no seu encalço. Ivan chega, por rio, às linhas soviéticas onde, a custo, explica ao incrédulo tenente Galtsev (Evgeniy Zharikov) que tem uma mensagem secreta para o tenente-coronel Gryaznov (Nikolay Grinko). Através de conversas várias, descobrimos que Ivan perdeu a família durante a guerra e cedo se juntou à luta, estando agora às ordens de Gryaznov, dada a sua capacidade e criatividade para se imiscuir e espiar nas linhas inimigas. Rapidamente todos simpatizam com o frágil e intrépido espião, mas a sua sede de vingança fá-lo recusar quando, finda mais uma missão, os soldados querem enviá-lo para a escola militar.

Nos momentos de acalmia vemos os avanços do capitão Kholin (Valentin Zubkov) sobre a enfermeira Masha (Valentina Malyavina), a qual o recusa e é também alvo dos sentimentos de Galtsev. Enquanto esperam ordens, os soldados encontram, nas casernas que habitam, mensagens desesperadas escritas nas paredes por prisioneiros dos alemães. As ordens são de mais uma missão de infiltração nas linhas inimigas, que levam Ivan, Kholin e Galtseva atravessar o rio à noite. Ivan desaparece, e os dois soldados escapam, resgatando os corpos de dois batedores soviéticos enforcados pelos alemães.

Por fim, numa Berlim já sob ocupação soviética, Galtsev descobre que Ivan foi capturado e morto pelos alemães. Vemos então, em flashback, Ivan a correr na praia com uma menina, espelhando felicidade. O filme termina com a imagem de uma árvore morta.

Assentando a sua equipa num conjunto de fiéis colaboradores (além de Konchalovsky, o próprio actor Nikolay Burlyaev, e o director de fotografia Vadim Yusov já tinham trabalhado consigo e iriam continuar a trabalhar com Tarkovsky), o jovem realizador recebeu como incumbência um filme que andou de mão em mão, e vira já vários argumentos rejeitados pela Mosfilm (a certa altura Ivan salvar-se-ia, mas uma intervenção do próprio Vladimir Bogomolov colocou o final no local certo). Sendo um filme de guerra, num contexto que durava já há mais de uma década, em que o cinema de guerra soviético servia como enaltecimento da tenacidade (e ao modo estalinista, de superioridade moral) de uma nação em franca afirmação internacional, Tarkovsky beneficiou da abertura do período chamado «degelo de Kruschev», para construir um filme onde a guerra é sinal de desolação e tragédia, onde os alemães são vistos como cruéis, é certo, mas onde não existe nenhum tipo de glorificação ou espírito triunfante.

Fazendo uso de frequentes incursões no domínio do sonho, numa estrutura nem sempre linear, e cheio de escapadelas para fora da narrativa principal “A Infância de Ivan” tem como principal objectivo mostrar-nos o efeito da guerra numa União Soviética dilacerada, onde o pequeno Ivan Bondarev funciona como sinónimo de um futuro perdido, sem família nem rumo, limitando-se a tentar o que pode para se vingar dos alemães. Sendo um filme bastante mais simples que outros de Andrei Tarkovsky, “A Infância de Ivan” não deixa de espantar por essa fuga à linearidade narrativa. Muito do que vemos no filme são conversas entre soldados e momentos de ócio. A guerra quase que fica do lado de fora, numa influência teatral, onde os ecos de algo que não vemos chegam ao palco onde estamos. Nesse sentido, cheio de elipses e flashbacks, o filme é algo enigmático, nunca nos transportando para onde pensamos que a acção se pode desenrolar.

Ao invés, e como Tarkovsky nos ensinaria na sua carreira, é nos insterstícios da narrativa, nos momentos contemplativos, ou nos longos planos, por vezes enigmáticos, que devemos procurar o tom do filme, o qual é mais sugerido que mostrado, seja na longa sequência envolvendo Masha, no plano final da árvore, ou nos sonhos/memórias/desejos de Ivan nos dias felizes da sua família.

Com uma fotografia, a preto e branco, que é ao mesmo tempo austera e rica, Tarkovsky pinta-nos uma história de vidas fragmentadas, desejos e anseios, dor e pequenos alívios. Em pequenos nadas, e com um avanço lento, mercê de demorados planos-sequência, essa é uma história de um futuro perdido, de uma inocência violentada e um olhar duro e triste para o efeito da uma guerra na evolução da União Soviética. Destaque final para o próprio Nikolay Burlyaev, com o seu Ivan carismático, que é ao mesmo tempo arrogante e obstinado nas suas missões, como logo pode cair numa raiva de impotência que o deixa em lágrimas, escondendo de todos – menos de nós – o seu lado de criança sonhadora, cada vez mais perdido no horror que o rodeia.

E assim, logo à sua primeira longa-metragem, Andrei Tarkovsky ganhava aclamação internacional, e o seu filme venceria inclusivamente o Leão de Ouro do Festival de Veneza e o Golden Gate Award no Festival de San Francisco, deixando-o como um nome a ter em conta no cinema europeu da segunda metade do século XX.

Nikolay Burlyaev em "A Infância de Ivan" (Ivanovo detstvo/Ива́ново де́тство, 1962), de Andrei Tarkovsky

Produção:

Título original: Ivanovo detstvo/Ива́ново де́тство [Título inglês: Ivan’s Childhood]; Produção: Mosfilm / Trete Tvorcheskoe Obedinenie; País: URSS; Ano: 1962; Duração: 94 minutos; Distribuição: Mosfilm (URSS), British Lion Film Corporation (Reino Unido), Cineriz (Itália), Shore International (EUA); Estreia: 6 de Abril de 1962 (URSS), 23 de Fevereiro de 2016 (Portugal).

Equipa técnica:

Realização: Andrei Tarkovsky, Eduard Abalov [não creditado]; Argumento: Vladimir Bogomolov, Mikhail Papava, Andrei Tarkovsky [não creditado], Andrey Konchalovskiy [não creditado] [a partir do conto “Ivan” de Vladimir Bogomolov]; Música: Vyacheslav Ovchinnikov; Fotografia: Vadim Yusov [preto e branco]; Montagem: Lyudmila Feyginova; Design de Produção: Evgeniy Chernyaev; Caracterização: Lyudmila Baskakova; Efeitos Especiais: Sergei Mukhin, V. Sevostyanov; Direcção de Produção: G. Kuznetsov.

Elenco:

Nikolay Burlyaev [como Kolya Burlyaev] (Ivan Bondarev), Valentin Zubkov (Leonid Kholin), Evgeniy Zharikov (Galtsev), Stepan Krylov (Katasonov), Nikolay Grinko (Gryaznov), Dmitri Milyutenko (Velho), Valentina Malyavina (Masha), Irina Tarkovskaya (Mãe de Ivan), Andrey Konchalovskiy (Soldado de Óculos), Ivan Savkin, Vladimir Marenkov, Vera Miturich (Rapariga).

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