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Biopic, Caravaggio, Cinema, Derek Jarman, Dexter Fletcher, Drama, Filme de época, Garry Cooper, Michael Gough, Nigel Terry, Pintura, Sean Bean, Spencer Leigh, Tilda Swinton
Às portas da morte, acompanhado apenas do criado e amante mudo Jerusaleme (Spencer Leigh), Michelangelo da Caravaggio (Nigel Terry) relembra a sua vida repleta de excessos, promiscuidade sexual e criminalidade, factores que terão pesado na sua pintura, a qual chocou por retratar cenas religiosas com figuras onde a fealdade, sujidade e grotesco estavam presentes. Adoptado em adolescente (Dexter Fletcher) pelo cardeal Del Monte (Michael Gough), Caravaggio foi ganhando a sua presença na sociedade de Roma, nunca deixando de provocar, dando-se a relações com homens e mulheres, e misturando-se quer entre a elite quer entre os mais pobres.
Análise:
Em 1986, quando realizou o filme “Caravaggio”, Derek Jarman era já um nome conhecido no cinema britânico. Quer pelo seu trabalho com Ken Russell, quer pelos temas provocadores dos seus filmes, quer ainda pela sua actividade pública de defesa dos direitos dos homossexuais, e pelo alerta do problema da SIDA, Jarman construiu um nome rodeado de alguma polémica, e reputado por forma de abordar o seu cinema, o qual incluía nudez, desmistificação da sexualidade e uma atitude irreverente no que diz respeito às autoridades – veja-se como “tratou” a rainha no seu filme “Jubilee” (1978). Quando Jarman pegou numa ideia de Nicholas Ward Jackson para escrever e realizar “Caravaggio”, numa produção do British Film Institute, poderia esperar-se tudo menos uma biopic convencional.
Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571 – 1610), o célebre pintor do barroco italiano, que revolucionou a pintura do seu país fugir às esfusiantes paisagens garridas, para se refugiar em cenários negros, onde a fealdade era mostrada como tema de cenas tradicionais, é aqui interpretado por Nigel Terry que vemos em agonia no seu leito de morte, acompanhado pelo seu fiel servidor mudo Jerusaleme (Spencer Leigh). Desse leito, Caravaggio recorda a sua vida, transportando-nos por uma série de episódios disjuntos da sua história pessoal. Vemo-lo então como jovem, atraindo a atenção de alguns mecenas que o levam ao conhecimento do cardeal Del Monte (Michael Gough), que decide fazer dele seu projecto pessoal. Sob a protecção de Del Monte, Caravaggio cresce e desenvolve a sua arte, dando-se a excessos de embriaguez, violência e lascívia, recrutando modelos e amantes entre os homens e mulheres de baixa condição, que nos seus quadros transforma em grotescas figuras bíblicas. Entre estes estarão Ranuccio (Sean Bean) e a amante Lena (Tilda Swinton), com quem Caravaggio desencolve relações em separado e que treina para os levar consigo a festas da alta sociedade. É numa dessas festas que Lena atrai a atenção do nobre Scipione Borghese (Robbie Coltrane), que a toma por amante. Quando Lena revela estar grávida, Ranuccio perde a cabeça, e a consequente morte de Lena leva à sua prisão. Confessando-se inocente, Ranuccio convence Caravaggio que intercede em sua defesa, conseguindo libertá-lo. Mas quando Ranuccio se vangloria de ter enganado todos e ser o verdadeiro assassino, Caravaggio mata-o. Voltando ao seu leito mortal, o pintor vê-se como criança, e recusa a extrema-unção, vindo a morrer nos braços de Jerusaleme.
A primeira coisa que se destaca no filme de Jarman sobre um dos nomes mais emblemáticos do barroco italiano é a cenografia, a qual salienta tons de castanho e cinzento, em paredes rudes como uma tela mal amanhada, em frente da qual muitos dos planos servem apenas para nos mostrar composições de personagens ricamente vestidos que evocam quadros do pintor. Segue-se, logo de seguida, a rápida percepção de que estamos perante um filme algo experimental, onde a estrutura narrativa é tudo menos linear, e o motivo do flashback, narrado a partir do leito mortal de Caravaggio, é apenas um pretexto para um explanar bastante livre de cenas e momentos, as quais podem até colocar em confronto o velho Caravaggio e uma das suas versões mais jovens (Dexter Fletcher como adolescente, Noam Almaz como criança). Notamos entretanto os muitos anacronismos – os quais poderão reflectir a pintura barroca que reproduzia cenas da antiguidade com roupagem da época. Entre eles destaque-se: criados que vestem de fraque, uso de cigarros modernos, mercadores que usam calculadoras, um escriba que usa uma máquina de escrever, um camião, sons de buzinas, uso de jazz como música diegética, etc.
Por essa estrutura, que primeiro se estranha, vamos tendo uma descrição do mundo de Caravaggio, onde Jarman tem uma preocupação com ideias e atmosferas, e não com uma cenografia realista. Por isso vemos interiores espartanos onde nos interessa a composição em termos de comportamentos humanos, e vemos festas onde, mais que o rigor histórico nos interessa as dinâmicas sociais. No fundo, é como se algo de felliniano fosse trazido para a biografia de Caravaggio, traçando as cenas com tons negros e passagens algo surreais, o que poderá ser, simplesmente, uma homenagem àquilo que resulta do trabalho na tela do pintor.
Por essa viagem vamos descobrindo um Caravaggio perturbado por uma educação pouco convencional, arrancado da pobreza para viver à sombra da Igreja, onde adivinhamos que tenha sido vítima sexual dos padres que tutoraram. Temos depois um Caravaggio adulto, dado a excentricidades e excessos, numa multitude de relações promíscuas, quer com homens quer com mulheres – não se podendo deixar de pensar que a sua morte agonizante junto do criado/amante Jeruzaleme não seja uma metáfora para com a SIDA que tantas vítimas fazia na primeira metade dos anos 80. Com esse background, Jarman tenta justificar aquilo que tanto fascina na pintura de Caravaggio, o negrume do qual emergem figuras onde a fealdade e grotesco não são escondidos, com pessoas de baixa condição a interpretar as mais amadas e inspiradoras cenas religiosas.
Provocador e irreverente, “Caravaggio” – que talvez nos diga muito mais sobre Jarman e a sua visão do mundo, que sobre o pintor barroco e a sua obra – tem criminalidade, sexualidade, génio, rebelião o magnetismo animal dos protagonistas cruamente tratados de frente, o que tornou a obra algo obscura no seu tempo. O filme é ainda a estreia em cinema de Tilda Swindon e de Sean Bean (cujo personagem morre durante o filme, como se tornou quase uma imagem de marca dos personagens da carreira deste actor).
Produção:
Título original: Caravaggio; Produção: British Film Institute (BFI) / Channel Four Television; Produtor Executivo: Colin MacCabe; País: Reino Unido; Ano: 1986; Duração: 93 minutos; Distribuição: British Film Institute (BFI) (Reino Unido), Cinevista (EUA); Estreia: Fevereiro de 1986 (Festibal de Berlim, RFA), 29 de Agosto de 1986 (EUA).
Equipa técnica:
Realização: Derek Jarman; Produção: Sarah Radclyffe; Produtor Associado: Nicholas Ward Jackson; Argumento: Derek Jarman [a partir de uma ideia de Nicholas Ward Jackson]; Música: Simon Fisher-Turner; Fotografia: Gabriel Beristain [cor por Technicolor]; Montagem: George Akers; Design de Produção: Christopher Hobbs; Direcção Artística: Michael Buchanan; Figurinos: Sandy Powell; Caracterização: Morag Ross; Direcção de Produção: Sarah Wilson.
Elenco:
Nigel Terry (Caravaggio), Sean Bean (Ranuccio), Garry Cooper (Davide), Dexter Fletcher (Jovem Caravaggio), Spencer Leigh (Jerusaleme), Tilda Swinton (Lena), Nigel Davenport (Giustiniani), Robbie Coltrane (Scipione Borghese), Michael Gough (Cardeal Del Monte), Noam Almaz (Criança Caravaggio), Dawn Archibald (Pipo), Jack Birkett (O Papa), Una Brandon-Jones (Carpideira), Imogen Claire (Senhora com Jóias), Sadie Corre (Princesa Collona), Lol Coxhill (Velho Padre), Vernon Dobtcheff (Amante de Arte), Terry Downes (Guarda-costas), Jonathan Hyde (Baglione), Emile Nicolaou (Jovem Jerusaleme), Gene October (Modelo Descascando Fruta), Cindy Oswin (Lady Elizabeth), John Rogan (Oficial do Vaticano), Zohra Sehgal (Avó de Jerusaleme), Lucien Taylor (Rapaz com Guitarra), Simon Fisher-Turner (Frade Fillipo).