Querelle (Brad Davis) é um marinheiro no navio do tenente Seblon (Franco Nero) que tem por ele uma paixão platónica. Agora a aportar em Brest, os marinheiros vão para o bar/bordel Feria, dirigido por Madame Lysianne (Jeanne Moreau) e o seu marido Nono (Günther Kaufmann). Lysianne é amante de Robert (Hanno Pöschl), irmão de Querelle, o qual, para despeito de Robert, com quem tem uma relação de amor/ódio, vai aceitar ser sodomizado por Nono, e tornar-se amante de Lysianne. Segue-se o assassinato de Vic (Dieter Schidor), o seu parceiro num tráfico de ópio, e a relação com Gil (Hanno Pöschl), que lhe lembra o irmão e está fugido de um crime de homicídio. Numa vida de descoberta sexual, cada vez mais promíscua, Querelle vai definir para si próprio o que significa ser homem.
Análise:
A partir do romance “Querelle de Brest” de Jean Genet, Rainer Werner Fassbinder realizaria o último filme da sua carreira, o qual não chegou a ver estrear, pois o realizador morreria de uma overdose meses antes. Não tanto por isso, mas principalmente pela sua temática abertamente gay e estética estilizada, quase como se inspirada por Andy Warhol, “Querelle – Um Pacto com o Diabo”, uma co-produção franco-alemã com vários actores internacionais, tornar-se-ia um dos mais icónicos e controversos filmes da diversificada carreira de Fassbinder.
Na cidade portuária de Brest, chega o navio Le Vengeur, comandado pelo tenente Seblon (Franco Nero), e onde serve o marinheiro Georges Querelle (Brad Davis), motivo do desejo secreto de Seblon. Em terra, Querelle procura o bar/bordel Feria, onde a dona, Madame Lysiane (Jeanne Moreau) é amante de Robert (Hanno Pöschl), irmão de Querelle, com a complacência do marido dela, Nono (Günther Kaufmann). Nono dirige o bar, e os seus negócios clandestinos, com a ajuda do polícia corrupto Mario (Burkhard Driest), e é célebre por jogar sexo aos dados – se perder dá uma das suas prostitutas, se ganhar toma ele o cliente. O encontro entre Querelle e Robert revela-se tenso, já que, como diz Lysianne, parece haver um amor inconfessável entre os dois, que os leva a odiarem-se. Querelle começa por negociar ópio com Nono, matando de seguida o seu cúmplice Vic (Dieter Schidor), e dando-se sexualmente a Nono, só para saber como é. Quando Robert sabe, luta violentamente com Querelle, o qual, para aumentar a desfeita do irmão, se torna amante de Lysianne.
Quando um pedreiro chamado Gil (novamente Hanno Pöschl), que mantém uma relação homoerótica com o jovem local Roger (Laurent Malet), cansado de ser humilhado, mata o colega Theo (Neil Bell), Querelle vê nele o bode expiatório para o seu próprio assassinato. Querelle aconselha Gil a roubar o tenente Seblon, para arranjar dinheiro para uma fuga, que ele ajuda a preparar. Com a parecença entre Gil e o seu irmão, Querelle apaixona-se por ele, mas tal não impede que ele o traia, revelando os planos de fuga à polícia, na pessoa de Mario, que também tem um interesse erótico no marinheiro. Quem percebe tudo é Seblon, ao mesmo tempo que Querelle descobre do amor do tenente. Inicialmente rejeitando-o, Querelle vê na atitude do tenente que o salva, uma prova de amor incontornável, e entrega-se-lhe finalmente, partindo novamente no Le Vengeur.
Que Fassbinder, nos seus filmes, abordara várias vezes personagens homossexuais – desde a relação lésbica de “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” (Die bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972) à dependência emocional de um personagem gay em “O Direito do Mais Forte à Liberdade” (Faustrecht der Freiheit 1975), até à transexualidade de “In a Year of 13 Moons” (In einem Jahr mit 13 Monden, 1978) – não era novidade em 1982, quando estreou “Querelle – Um Pacto com o Diabo”. Mas este filme quebrava todas as barreiras, pois, não apenas tínhamos uma história em que algumas personagens eram homossexuais, como toda a estética do filme consistia numa certa glorificação de uma iconografia gay, como se cada plano fosse parte de um calendário erótico fotografado por Andy Warhol, onde não faltam sequer peças do cenário (como colunas) desenhadas como falos. O facto de ser falado em inglês tornava ainda mais forte a mensagem verbal, onde os actos sexuais eram mencionados amiúde.
Filmando a cores, mas com uma tela tingida de tons amarelos que confere ao filme uma atmosfera irreal, Fassbinder rodou “Querelle – Um Pacto com o Diabo” inteiramente em estúdio, em cenários estilizados, onde os diferentes espaços (na verdade apenas meia dúzia de cenários diferentes), se relacionam sem preocupações realistas, quase como se fossem um palco teatral. Aí, o filme surge com uma dupla narração em off. Por um lado temos a narração de um narrador omnisciente, que vai comentando comportamentos e situações, por outro temos a narração diegética da personagem de Seblon que, a pretexto de gravar a sua voz num gravador, vai poetizando os seus sentimentos, quer por Querelle, quer pela vida do mar, onde vê na relação entre os marinheiros, e sua demonstração física, exemplos de sensualidade erótica, quase como que única solução possível para um erotismo latente em cada homem.
Nesse contexto de forte erotização (note-se como o filme se inicia com longos planos dos marinheiros em troncos nus, suados, massajando-se, como que num expositor para Seblon), é dado o mote para o que virá a seguir. Seja o mito do jogo dos dados de Nono; a presença singular do polícia Mario; os vários combates físicos, sempre coreografados como lutas (com e sem faca) que parecem expressão de um desejo carnal; o jogo de avanços e recuos entre Gil e Roger; as cenas de sexo – seja com Lysianne, a masturbação de Robert ou a sodomização de Querelle –, são incontáveis os momentos em que o filme avança apenas pelo contexto sexual explícito.
Como fio condutor temos a acção de Querelle, inicialmente curioso quanto às relações homossexuais. Aparentemente perdendo propositadamente no jogo de dados para ser amante de Nono, Querelle não se confessa homossexual, distinguindo a relação física da sentimental. Mas aos poucos, nos vários exemplos vividos, e no desejo escondido pelo irmão – note-se como se dá a Gil, por este lhe lembrar o irmão (ambos interpretados pelo mesmo actor) – Querelle vai fazer uma viagem no sentido de se assumir como homossexual.
Sem pretensões de contar uma história realista (já que além de cenários, também as situações, a forma como o enredo evolui e os momentos se relacionam, tudo parece muito estilizado) “Querelle – Um Pacto com o Diabo” tem ainda muito de simbólico, no exemplo trazido do difícil livro de Genet. Tal é acentuado nas pequenas citações do livro que dividem as várias secções do filme, e salientam como Querelle se quer descobrir, sacrificando muito daquilo que é, por exemplo no sacrifício do amor (por Gil), que constitui algo acima do tal «pacto com o Diabo» de que o título português fala.
Visual e tematicamente forte e provocador, “Querelle – Um Pacto com o Diabo”, foi extremamente controverso, mas recebeu uma forte adesão inicial, tornando-se desde logo um filme de culto. Considerado por alguns críticos demasiado experimental e artificioso, o filme, que questiona o conceito de masculinidade e os clichés associados à sexualidade, é também visto como o testamento perfeito de Fassbinder, aliando e expondo os seus temas principais de uma forma mais crua que nunca.
O filme foi dedicado a El Hedi ben Salem, antigo amante e actor em vários dos filmes de Fassbinder, e cuja morte (em circunstâncias ainda indefinidas, numa prisão de Nimes, em 1977) só foi revelada a Fassbinder em 1982.
Destaque ainda para as canções interpretadas por Jeanne Moreau – “Each Man Kills the Things He Loves” (com música de Peer Raben, e letra adaptada do poema “The Ballad of Reading Gaol” de Oscar Wilde’s) e “Young and Joyful Bandit” (com música de Peer Raben, e letra da própria Jeanne Moreau). Ambas as canções foram nomeadas para os Razzies de pior canção desse ano.
Produção:
Título original: Querelle; Produção: Planet Film / Albatros Filmproduktion / Gaumont; Produtor Executivo: Michael McLernon; País: França / República Federal Alemã (RFA); Ano: 1982; Duração: 109 minutos; Distribuição: Gaumont (França), Scotia International Filmverleih (RFA), Triumph Releasing Corporation (EUA); Estreia: 31 de Agosto de 1982 (Festival de Montréal, Canadá), 8 de Setembro de 1982 (França), 21 de Outubro de 1983 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Rainer Werner Fassbinder; Produção: Dieter Schidor, Sam Waynberg; Co-Produção: Burkhard Driest; Argumento: Rainer Werner Fassbinder, Burkhard Driest [a partir do romance “Querelle de Brest” de Jean Genet]; Música: Peer Raben; Fotografia: Xaver Schwarzenberger, Josef Vavra [filmado em Technovision]; Montagem: Rainer Werner Fassbinder [como Franz Walsch], Juliane Lorenz; Design de Produção: Rolf Zehetbauer; Direcção Artística: Walter E. Richarz; Figurinos: Barbara Baum, Monika Jacobs; Caracterização: Ingrid Massmann-Körner, Gerhard Nemetz; Coreografia: Dieter Gackstetter; Direcção de Produção: Rüdiger Lange.
Elenco:
Brad Davis (Querelle), Franco Nero (Tenente Seblon), Jeanne Moreau (Lysiane), Laurent Malet (Roger Bataille), Hanno Pöschl (Robert / Gil), Günther Kaufmann (Nono), Burkhard Driest (Mario), Roger Fritz (Marcellin), Dieter Schidor (Vic Rivette), Natja Brunckhorst (Paulette), Robert van Ackeren (Legionário Bêbedo), Werner Asam (Trabalhador), Isolde Barth (Rapariga), Axel Bauer (Trabalhador), Neil Bell (Theo), Gilles Gavois (Marinheiro), Wolf Gremm (Legionário Bêbedo), Karl-Heinz von Hassel (Trabalhador), Y Sa Lo (Rapariga), Michael McLernon (Marinheiro), Frank Ripploh (Legionário Bêbedo), Karl Scheydt (Marinheiro), Vitus Zeplichal (Trabalhador).