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Akim Tamiroff, Anastásia, Anatole Litvak, Cinema, Drama, Filme de época, Helen Hayes, Ingrid Bergman, Marcelle Maurette, Martita Hunt, Sacha Pitoëff, Yul Brynner
Em França, em 1928, alguém reconhece nas ruas a vagabunda Anna Koreff (Ingrid Bergman), que passara por instituições psiquiátricas reclamando ser Grã-duquesa Anastásia Nicolaievna, filha sobrevivente dos czares da Rússia. Dada a semelhança física que aparenta, tal leva o ambicioso general Bounine (Yul Brynner) a procurá-la, para a convencer a fazer-se passar pela desaparecida princesa russa, para assim ter, com os seus associados, acesso à herança dos czares, presa no Banco de Inglaterra. Amnésica e sofrendo de múltiplos traumas, Anna não sabe quem de facto é, e deixa-se tutorar por Bounine no sentido de vestir o papel que dela se espera. Só que, entre ensinamentos, reminiscências que não consegue situar, e a sua graciosidade natural, Anna vai começando a fazer os seus próprios cúmplices duvidar se não será mesmo a própria Anastásia.
Análise:
Após o seu último filme com Alfred Hitchcock, “Sob o Signo do Capricórnio” (Under Capricorn, 1949), Ingrid Bergman rumou a Itália para trabalhar com Roberto Rossellini, e o que começou como mútua admiração profissional, terminou em relação amorosa, que resultou em escândalo nos Estados Unidos, onde Bergman tinha deixado marido e filha, e onde a sua permissão para entrar no país chegou a ser discutida na Câmara dos Representantes. Divorciada, e casada com Rossellini, Bergman teve três filhos com ele, e protagonizou cinco longas-metragens e uma curta-metragem do realizador italiano. Mas foi já em processo de separação que a actriz sueca filmou, em França, “Helena e os Homens” (Elena et les Hommes, 1956), de Jean Renoir, e voltou às produções de Hollywood, para filmar “Anastásia”, uma luxuosa produção da Twentieth Century Fox (com todas as filmagens na Europa: Inglaterra, Dinamarca e França) sobre o mito da sobrevivência da última herdeira dos czares russos.
A história começa em Paris, durante a Páscoa russa de 1928, quando Stepan (Grégoire Gromoff), um refugiado russo dos círculos da elite fugida da Rússia bolchevique, encontra uma mulher de nome Anna Koreff (Ingrid Bergman), que ele reconhece de ter estado internada em hospitais psiquiátricos onde teria reclamado ser a Grã-duquesa Anastásia Nicolaievna, a única filha sobrevivente do czar Nicolau II da Rússia, executado em 1918. Anna é levada à presença do general Bounine (Yul Brynner), que com os seus parceiros Chernov (Akim Tamiroff) e Petrovin (Sacha Pitoëff), procuram uma possível Anastásia, que possa herdar os milhões da família Romanov, retidos no Banco de Inglaterra, e assim livrá-los da situação de dívida em que se encontram, pelo dinheiro pedido para o empreendimento de encontrar a Grã-duquesa. Com Chernov e Petrovin relutantes, Bounine está confiante de que pode fazer Anna passar-se por Anastásia, aproveitando a amnésia desta, a sua propensão para confundir mito e realidade e, claro, a sua necessidade de encontrar numa nova razão para viver, uma vez que não sabe quem é, não tem nada de seu, e contemplava mesmo o suicídio. Anna é a primeira a duvidar do projecto, mas entre aquilo que vai aprendendo, e uma espécie de dom natural, vai surpreendendo tudo e todos com as respostas e reminiscências mais acertadas, que começam mesmo a fazer duvidar Bounine e os outros (e a ela própria) se ela não é de facto a verdadeira Anastásia. Resta o golpe final, rumar a Dinamarca, onde vive a Imperatriz-Viúva (Helen Hayes), mãe de Nicolau II, e avó de Anastásia, e a única pessoa viva que privou com Anastásia. A início relutante, a Imperatriz-Viúva decide encontrar aquela que julga mais uma farsante, que até já conquistou a atenção do Príncipe Paul (Ivan Desny), seu neto, primo e antigo noivo de Anastásia. Para surpresa do próprio Bounine, a céptica Imperatriz-Viúva sucumbe perante a partilha de memórias com Anna, e reconhece-a como a sua neta. Com todas as portas abertas, Bounine prepara uma festa de gala de reconhecimento de Anastásia, e prepara-se para abandonar o local, pois os ciúmes pela aproximação do príncipe Paul levam-no a desejar que Anna não seja mais a Grã-duquesa. Quem entende tudo é a velha Imperatriz-Viúva que, não renegando a neta, a aconselha a escolher o amor sobre a fortuna. Quando a festa começa, Anastásia e Bounine desapareceram juntos e a Imperatriz-Viúva declara publicamente que tudo não passou de um logro.
O mito de que a princesa russa Anastásia Nicolaievna – a filha mais nova dos Romanov, executados pelos bolcheviques em 1918 – teria sobrevivido, adveio do facto de que, ao contrário do sucedido com a família, o seu corpo nunca ter sido encontrado. Por essa razão surgiram, durante o século XX, várias mulheres a reclamar essa identidade, todas elas desmentidas, sendo a mais célebre Anna Anderson (1900-1984), que manteve o mito vivo durante décadas, com destacada presença na imprensa internacional. Tal sugeriu a peça “Anastásia”, de Marcelle Maurette (1952), ponto de partida para o filme de Anatole Litvak, que nos dá uma tentativa de recriação da suposta princesa, por parte de um conjunto de antigos aristocratas russos, com objectivos muito pessoais.
Agora a cores, e no formato largo do CinemaScope, Ingrid Bergman voltava aos Estados Unidos para mostrar que a sua graça não tinha sido afectada pelos anos de ausência, nem pela polémica em torno da sua partida para Itália. E se o filme fala da descoberta de uma princesa, que não sabemos nunca se o é ou não, tal como a própria parece não saber, é também um regresso ao estatuto perdido de princesa de Hollywood por parte da actriz sueca que o filme parece concretizar. De facto, com mais uma interpretação brilhante de Bergman, “Anastásia” era o motivo para Hollywood a voltar a homenagear – dando-lhe o seu segundo Oscar de Melhor Actriz –, mostrando que estava com ela, contra os sectores mais retrógrados da imprensa, política e sociedade conservadora, que nos anos anteriores a tentaram crucificar publicamente pela sua vida pessoal.
Produção de elevado orçamento da Fox, “Anastásia”, que mantém alguma ligação à sua origem teatral, pelo seu basear de cenas em cenários fixos (a cave onde Anna e Bounine primeiro falam; o apartamento onde ela é treinada; a casa onde recebe a sua suposta avó; etc.), impressionou logo pela sua imagem, dos grandes salões de baile, ao guarda-roupa luxuoso, tema de princesas perdidas, e mesmo uma banda sonora (do grande Alfred Newman) que se tornaria um sucesso de vendas pós-filme. A ideia dada por Litvak era de um filme que, mesmo passando-se na Europa entre-guerras, numa fase economicamente negra, ele remetesse para opulência das cortes do século XIX, mostrando assim uma aristocracia (a russa, no exílio), decadentemente presa no passado, vivendo de ilusões, cega à evolução e transformação do mundo.
Para além do seu aspecto visual e do regresso em forma de Ingrid Bergman a Hollywood, o que mais cativa em “Anastásia” é a ambiguidade do seu material. De certo modo nada e ninguém na história é sincero – a corte russa no exílio vive um tempo e modo que já não são seus; Bounine e associados (Akim Tamiroff e Sacha Pitoëff proporcionam os momentos cómicos do filme, com as suas posturas sempre atrapalhadas, e réplicas desesperadas) vivem na mentira de dinheiro que agora devem e precisam recuperar; o príncipe Paul finge lembrar-se de Anastásia para melhor a conquistar, para casar com a fortuna desta. No meio de tudo, a verdadeira acusada de ser impostora – Anna Koreff – acaba por nos parecer a mais inocente de todas as personagens. Isto porque Anna não parte do desejo de enganar ninguém. Entre amnésia, traumas passados, desejo de encontrar as suas origens, e memórias que talvez nem sejam suas, Anna confunde-se a si própria, confunde quem a conhece, e confunde-nos a nós. Senão veja-se, na ânsia de tudo lhe ensinar, Bounine fica confundido quando a vê dar respostas acertadas a coisas que ele não se lembra de lhe ter ensinado – ouviu-as em algum outro lugar, ou sabia-as por serem memórias dela? E se Anna se trai em coisas banais, por não se comportar como devia, ou recordar eventos básicos, depois surpreende com tiradas que a própria não sabe de onde vieram, conquistando até a mais céptica das interlocutoras, a Imperatriz-Viúva (em mais um grande papel da, agora já veterana, Helen Hayes). Por esse constante duvidar de si mesma, Anna soa-nos genuína. Talvez não seja Anastásia, mas por não o procurar ser, começamos a acreditar que o é, dúvida essa que Litvak sabe levar até à última cena, quando a sua avó revela à corte que Anna não é Anastásia, mas o faz apenas para que esta tenha hipótese de uma vida feliz com aquele que ama.
E se o ponto de partida é a ambição, e a impostura, o ponto de chegada é o sentimento e, com ele, a verdade. O frio Bounine colapsa nos seus propósitos quando percebe que se apaixonou por Anna, e deixa o seu projecto. Anna escolhe o amor de Bounine sobre a vida de fingimento na corte, rica herdeira e casada com o superficial Paul, enquanto a Imperatriz-Viúva faz o que parece um caminho inverso, sendo a única inicialmente sincera, acaba mentindo, simplesmente para proteger aquela que – sem que ela saiba se é ou não sua neta – prefere que viva uma vida feliz, que aprisionada numa corte decadente.
Com vários actores do Leste da Europa no elenco – de lembrar que o próprio Yul Brynner era de origem russa, e Anatole Litvak era de origem ucraniana – o filme tem sempre um certo sabor eslavo no que diz respeito aos sotaques, formalidades, e claro, música, tocada extensivamente para a sentirmos como personagem. Obviamente, a veracidade histórica, como é habitual em Hollywood, não é necessariamente respeitada, mas as opções sobre as ambiguidades em torno de Anna Koreff, e as interpretações de Bergman e Brynner (com uma química explosiva e completamente fora do comum) suplantam quaisquer fraquezas de argumento, tendo tornado o filme um sucesso no seu tempo.
A riqueza dramática do tema resultou ainda no telefilme “Anastasia: The Mystery of Anna” (1986), realizado por Marvin J. Chomsky, e protagonizado por Amy Irving (e com Olivia de Havilland como a Imperatriz-Viúva), e, mais tarde, no musical animado da Fox Animation Studios “Anastasia” (1997), de Don Bluth e Gary Goldman, com as vozes de Meg Ryan e John Cusak.
Produção:
Título original: Anastasia; Produção: Twentieth Century Fox; País: EUA; Ano: 1956; Duração: 105 minutos; Distribuição: Twentieth Century Fox; Estreia: 13 de Dezembro de 1956 (EUA), 10 de Março de 1957 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Anatole Litvak; Produção: Buddy Adler; Argumento: Arthur Laurents [a partir da adaptação de Guy Bolton da peça de homónima de Marcelle Maurette]; Música: Alfred Newman, Michel Michelet (adaptação de temas russos); Orquestração: Edward B. Powell; Fotografia: Jack Hildyard [filmado em CinemaScope, cor por Deliuxe]; Montagem: Bert Bates; Direcção Artística: Andrej Andrejew, William C. Andrews; Cenários: Andrew Low; Figurinos: René Hubert; Caracterização: David Aylott.
Elenco:
Ingrid Bergman (Anna Koreff / Anastasia), Yul Brynner (General Sergei Pavlovich Bounine), Helen Hayes (Imperatriz Viúva Maria Feodorovna), Akim Tamiroff (Boris Adreivich Chernov), Martita Hunt (Baronesa Elena von Livenbaum), Felix Aylmer (Camareiro), Sacha Pitoëff (Piotr Ivanovich Petrovin), Ivan Desny (Príncipe Paul von Haraldberg), Natalie Schafer (Irina Lissemskaia), Grégoire Gromoff (Stepan), Karel Stepanek (Mikhail Vlados), Ina de la Haye (Marusia), Katherine Kath (Maxime).