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André Dussollier, Audrey Tautou, Chantal Neuwirth, Cinema, Dominique Bettenfeld, Dominique Pinon, Drama, Gaspard Ulliel, Guerra, Jean-Pierre Jeunet, Jodie Foster, Marion Cotillard, Primeira Guerra Mundial, Sébastien Japrisot, Ticky Holgado
Durante a Batalha de Somme, em 1916, na Primeira Guerra Mundial, cinco soldados franceses acabam feridos numa mão – seja por acidente involuntário ou por auto-mutilação –, facto que aproveitam para tentarem ser desmobilizados. Todos são sumariamente condenados, e a sua pena é serem levados para terra de ninguém, para que os alemães os matem. Quem não aceita esta versão dos factos é Mathilde (Audrey Tatou), a noiva do mais jovem dos cinco, Manech (Gaspard Uliel), a qual vai iniciar uma investigação à distância, que durará até 1920, na qual ela acredita que o seu noivo terá sobrevivido.
Análise:
“Um Longo Domingo de Noivado” ficará para a carreira de Jean-Pierre Jeunet como o filme que sucedeu o estrondoso êxito que foi “O Fabuloso Destino de Amélie” (Le fabuleux destin d’Amélie Poulain, 2001). Como se não bastasse, Jeunet voltava a contar com Audrey Tatou no papel principal, fazendo muitos crer que se tratava de um filme semelhante. Só que, Jeunet preferiu trocar o colorido e lirismo inocente de Amélie pelo negrume da Primeira Guerra Mundial, numa produção dispendiosa que, por suceder o filme que sucedeu, acabou por lhe ficar na sombra.
Partindo de acontecimentos na Batalha do Somme (1916), na Primeira Guerra Mundial, o filme fala-nos da condenação e subsequente execução de cinco soldados que se terão ferido voluntariamente para escapar às trincheiras. Quando os factos chegam ao conhecimento de Mathilde (Audrey Tatou), a noiva de Manech (Gaspard Uliel), o mais jovem dos cinco, esta vai iniciar uma investigação por conta própria, que é ao mesmo tempo um golpe de fé e uma viagem pela relação que nunca passou da sua inocência e noivado. Através de muitas cartas, interrogações a oficiais, buscas em arquivos, e o procurar encontrar as pessoas que conheceram os cinco soldados, Mathilde vai interferir nas suas vidas e memórias, e descobrir que há muito que ficou soterrado pelo tempo, percebendo que alguns dos homens ficaram vivos, factos foram encobertos, verdades foram modificadas, e que Manech talvez esteja ainda vivo, mesmo que isso signifique que algo o impede de regressar a casa.
É verdade que “Um Longo Domingo de Noivado” pode ser descrito como um filme de guerra. Nele, a guerra é filmada com realismo, não ficando por mostrar o pânico, a tragédia, as mutilações e mortes, sendo que, pelo menos aparentemente, o filme não segue a linha humorística do trabalho anterior do autor. Mas há muito mais em “Um Longo Domingo de Noivado” do que a aparência faz crer.
Drama de guerra, com um enredo de mistério, o filme de Jean-Pierre Jeunet não renega o passado do autor. Centrado na personagem Mathilde, a qual carrega uma tristeza inerente (pela perda do noivo, claro, mas que encontra espelho na triste condição física que a poliomielite lhe deixou desde criança), o filme é uma viagem – com narração em off – que nos guia pela investigação dessa mesma Mathilde, que um tanto inconscientemente se recusa a aceitar que Manech – o seu noivo – tenha morrido da forma como é relatado nos autos militares.
E é aí, nessa recusa, que parece um faz-de-conta infantil, baseada numa crença pessoal (e que vamos vendo ser repetida em pequenos momentos nos quais Mathilde diz a si própria coisas como «se eu chegar à curva antes do carro, Manech está vivo»), e acentuada na ligação que Mathilde nos convence ser especial, e que vamos vendo a espaços com um álbum de memórias que nos mostra momentos da relação do casal, em que começamos a sentir a história como algo mais que uma narrativa realista, começando a vislumbrar-se insinuações do realismo mágico a que Jeunet nos habituou. Mesmo que ele exista apenas no olhar de Mathilde.
Não se preocupando em descrever-nos acontecimentos reais da Primeira Guerra Mundial, “Um Longo Domingo de Noivado” usa-a como cenário, filmando-a com exactidão e realismo. Quer em longos planos-sequência pelas trincheiras, quer no corte rápido das cenas de batalha, somos levados ao âmago da luta de trincheiras, vivendo a sua pestilência e claustrofobia, quase sentindo a lama, as angústias e o odor de morte. Nessa situação é-nos fácil simpatizar com aqueles que, propositadamente ou não, aproveitaram feridas para tentar escapar ao horror da guerra, e embora vendo-os caminhar para o seu fim nas cenas iniciais, também nós, tal como Mathilde, queremos que eles não tenham morrido e que haja mais a contar. Afinal, por esta altura na obra de Jean-Pierre Jeunet, já sabemos que cada imagem é apenas uma perspectiva, e que a subjectividade individual é mais importante no definir de uma linha narrativa que qualquer pretensão de realismo, sendo a linha narrativa de Mathilde (por analogia, a linha que a une a Manech, e aquela em que prometeu enforcar-se caso ele tenha morrido) a única que nos interessa.
E aí encontramos todo o lirismo habitual. Seja no MMM – Manech Aime (M) Mathilde – gravado no sino, ou na primeira noite que o par passa junto com o inocente despir à luz de fósforos que se vão apagando, seja nas preces/crenças de Mathilde. O humor vai então surgindo, como no episódio do carteiro e suas travagens na gravilha. E as histórias vão-se tornando rocambolescas, como o episódio das botas alemãs, ou o estranho pacto entre dois soldados para engravidar a senhora Gordes (Jodie Foster), no objectivo de obter uma dispensa para o marido desta. Aquilo que parecia uma simples nota de rodapé ganha complexidade com o surgimento de mais personagens e mais ângulos de perspectiva. A história torna-se na verdade um entrelaçar de muitas histórias que, com a motivação do desenlaçar promovido pela teimosa Mathilde, nos vai dando a conhecer outras pessoas e, no fundo, o modo como a guerra teve impacto de tantas formas diferentes.
Com uma fotografia em tom sépia, carregando nos cinzentos nas trincheiras, os habituais close-ups em que se vê só parte do rosto, as panorâmicas repentinas como que numa narração visual inocente, de criança – quanto terá Wes Anderson bebido em Jean-Pierre Jeunet –, o colorido vem dos personagens e situações, parecendo que toda a gente na história tem aquela característica semi cartoonística que conhecemos a Jeunet, sem que isso diminua a gravidade do mistério, e que todas as imagens são dignas de figurar num postal ilustrado.
Mesmo que na sombra de “Amelie”, de tom soturno, e história complicada de seguir, “Um Longo Domingo de Noivado” foi bastante bem recebido, acabando premiado em vários festivais, vencendo inclusivamente quatro Cesars da indústria francesa, um dos quais para Marion Cotillard, como Actriz Secundária, e recebendo duas nomeações aos Oscars (Melhor Direcção Artística e Melhor Fotografia)
Produção:
Título original: Un long dimanche de fiançailles; Produção: 2003 Productions / Warner Bros. / Tapioca Films / TF1 Films Production / Canal+ / Centre National de la Cinématographie (CNC) / Région Ile-de-France / Région Bretagne / Région Poitou-Charentes / Gerber Pictures; Produtores Executivos: Jean-Louis Monthieux, Bill Gerber, Fabienne Tsaï; País: França/EUA; Ano: 2004; Duração: 128 minutos; Distribuição: Warner Bros.; Estreia: 27 de Outubro de 2004 (França, Bélgica), 27 de Janeiro de 2005 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Jean-Pierre Jeunet; Produção: Jean-Pierre Jeunet; Produtor Associado: Francis Boespflug; Argumento: Jean-Pierre Jeunet, Guillaume Laurant [a partir do livro de Sébastien Japrisot]; Diálogos: Guillaume Laurant; Música: Angelo Badalamenti; Fotografia: Bruno Delbonnel [fotografia digital]; Montagem: Hervé Schneid; Design de Produção: Aline Bonetto; Direcção Artística: Mathieu Junot; Cenários: Véronique Melery; Figurinos: Madeline Fontaine; Caracterização: Nathalie Tissier; Efeitos Especiais: Les Versaillais; Efeitos Visuais: Alain Carsoux; Direcção de Produção: Jean-Marc Deschamps.
Elenco:
Audrey Tautou (Mathilde), Gaspard Ulliel (Manech), Dominique Pinon (Sylvain), Chantal Neuwirth (Bénédicte), André Dussollier (Pierre-Marie Rouvières), Ticky Holgado (Germain Pire), Marion Cotillard (Tina Lombardi), Dominique Bettenfeld (Ange Bassignano), Jodie Foster (Elodie Gordes), Jean-Pierre Darroussin (Benjamin Gordes), Clovis Cornillac (Benoît Notre-Dame), Jean-Pierre Becker (Esperanza), Denis Lavant (Six-Soux), Jérôme Kircher (Bastoche), Albert Dupontel (Célestin Poux), Jean-Paul Rouve (O Feitor), Elina Löwensohn (A Mulher Alemã), Julie Depardieu (Véronique Passavant), Michel Vuillermoz (P’tit Louis), Urbain Cancelier (O Padre), Maud Rayer (Madame Desrochelles), Michel Robin (O Velho no Campo de Batalha), Tchéky Karyo (Capitão Favourier), Jean-Claude Dreyfus (Comandante Lavrouye), Philippe Duquesne (Favart), Bouli Lanners (Chardolot), Stéphane Butet (Philippot), Christian Pereira (O Oficial dos Arquivos), François Levantal (Thouvenel), Patrick Paroux (O Médico Militar), Solène Le Pechon (Mathilde com 10 anos), Virgil Leclaire (Manech com 13 anos), Florence Thomassin (Narradora – voz), Thierry Gibault (Tenente Estrangin), Myriam Roustan (A Prostituta do Café), Gilles Masson (O Oficial Assassinado), Sandrine Rigault (Mariette Notre-Dame), Michel Chalmeau (O Padre de Milly), Marc Faure (O Director da Prisão), Rodolphe Pauly (Jean Desrochelles), Xavier Maly (O Companheiro de Chardolot), Till Bahlmann (O Prisioneiro Alemão), Tony Gaultier (Um Coveiro), Louis-Marie Audubert (Um Coveiro), Jean-Gilles Barbier (O Sargento).