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Cinema, Donald Crisp, Dupla personalidade, Ficção Científica, Ingrid Bergman, Jekyll and Hyde, Lana Turner, Robert Louis Stevenson, Spencer Tracy, Terror, Victor Fleming
O Dr. Henry Jekyll (Spencer Tracy) é um médico de carreira promissora, noivo da bela Beatrix Emory (Lana Turner), filha do aristocrata Sir Charles Emery (Donald Crisp), o qual não vê com bons olhos as ideias arriscadas de Jekyll de procurar separar bem e mal na alma humana. Mas Jekyll coloca o seu interesse científico acima das boas maneiras, e decide isolar-se e experimentar em si próprio. O resultado é a mudança de personalidade que faz dele o ser maléfico a que dá o nome de Hyde, e que age sem piedade, tomando por amante, Ivy (Ingrid Bergman), uma mulher que o médico conhecera antes, e que o tentara então seduzir. Só que agora, tomando Ivy como sua, Hyde faz dela receptora de todos os seus mais degradantes e violentos instintos sexuais.
Análise:
Sendo a mais tradicional das produtoras da era dourada de Hollywood, geralmente vocacionada para filmes para toda a família, é um pouco contranatura a ideia de a Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) se lançar na produção do clássico de terror de Robert Louis Stevenson traduzido em Portugal como “O Médico e o Monstro”. Para apostar no seguro, a MGM decidiu comprar os direitos do argumento do filme do mesmo nome de 1931, realizado por Rouben Mamoulian para a Paramount Pictures, e tentar replicar o seu sucesso com a estrela Spencer Tracy e as caras bonitas de Lana Turner e Ingrid Bergman (esta, novamente cedida por David O. Selznick), entregando a realização ao homem do momento, Victor Fleming, que ainda respirava o sucesso estrondoso dos seus dois filmes de 1939, “E Tudo o Vento Levou” (Gone with the Wind) e “O Feiticeiro de Oz” (The Wizard of Oz).
Afastando-se um pouco do conto de Stevenson (o qual não fala das mulheres na vida de Jekyll), o filme mostra-nos a história do ponto de vista do Dr. Jekyll (Spencer Tracy), um homem bem na vida, com uma carreira promissora e um casamento em perspectiva com a bela Beatrix (Lana Turner), mas cujas ideias progressistas o colocam em choque com o futuro sogro (Donald Crisp). Sentindo-se impelido a tentar a sua investigação sobre a separação entre bem e mal na alma humana, Jekyll torna-se o proverbial cientista louco, que se isola do mundo para experimentar em si próprio. O resultado é tornar-se na versão maléfica de si próprio – Mr. Hyde – que vai procurar a noite boémia de Londres, encontrando a empregada de bar Ivy (Ingrid Bergman), que o Dr. Jekyll tinha um dia socorrido, para ser imediatamente seduzido por ela. A atracção é tal que Hyde a mantém quase cativa, escrava sexual da qual abusa e tortura fisicamente. Quando a noiva regressa de uma viagem ao estrangeiro, e o casamento é anunciado, Jekyll decide parar com as experiências, para descobrir que a mudança de personalidade já acontece espontaneamente, sem o seu controlo. Na mudança seguinte, Hyde mata Ivy que começava a adivinhar a verdade, e Jekyll, em desespero, decide romper o noivado com Beatrix, mas as suas constantes transformações lançam-no numa senda assassina, que levam a que seja apanhado e morto. )
Parece que, quando se fala de “O Médico e o Monstro” de Fleming, a primeira coisa que se faz sempre é comparar com a versão de Robert Mamoulian, interpretada por Fredric March, e apontar para aquilo que de negativo a versão de 1941 traz. Não é que Tracy seja pior actor que March, ou que as decisões da transformação (apostando mais na alteração de personalidade que na física, já que Tracy surge um pouco mais alterado para pior, sem ser exactamente monstruoso) não funcionem. Mas, não só o filme não traz nada de essencialmente novo, como perde alguma da irreverência, ou não estivéssemos já na vigência do Código Hays e os «bons costumes» fossem algo a defender. Por essa razão Ivy – a personagem de Ingrid Bergman – passa de prostituta em empregada de bar (embora a sua cena inicial, e consequente sedução do Dr. Jekyll em sua casa, seja do mais provocante que Bergman alguma vez tentou no grande ecrã); as alegadas marcas físicas nas costas de Ivy (várias vezes tema de conversa) nunca nos sejam mostradas; a relação entre Hyde e Ivy seja sempre cortada com elipses que nos levam para os dias seguintes (com as violações nunca mencionadas); e as cenas de violência – como o assassinato de Ivy – aconteçam fora de campo. Tais decisões (com Spencer Tracy a manifestar-se contrário, pois trazia algumas soluções bem controversas consigo) são castradoras para um filme que, todos sentiram, podia ter chegado mais longe, e assim não passou de uma imitação renovada.
Com algo de série B nas decisões de produção (quase todas as cenas se passam à noite, sendo nitidamente filmadas em estúdio), Fleming não deixa de dar um ar sofisticado a várias das suas sequências, sejam as deambulações pelas ruas de Londres, os jantares de alta sociedade, uma noite no Royal Albert Hall, ou as visitas de Hyde aos bares de Londres. Central no filme é, obviamente, a transformação física de Spencer Tracy, conseguida por sobreposições de imagens que mostram a sua passagem do dócil Jekyll ao violento Hyde. Mas deixando lado o aspecto físico, o que mais marca o filme é essa ideia de que bem e mal podem ser separáveis.
Na verdade, e tal como a discussão ao jantar, com presença de um bispo, revela, mais interessante que separar (e possivelmente eliminar) o mal da alma humana é essa constatação de que ele existe, e é inerente ao ser humano, algo que as pessoas de bem à mesa têm relutância a aceitar. Uma vez provada a existência desse mal, a pergunta que Stevenson, Fleming, e tantos ao seu lado, fazem é: não estará ele sempre presente, e não será o monstruoso Hyde apenas um reflexo de um Jekyll oprimido? Afinal, não foi Ivy a mulher procurada por Hyde para satisfazer os seus instintos mais inenarráveis, a mesma que seduziu o civilizado (e leal noivo de Beatrix) Dr. Jekyll? Sintomáticos são também os sonhos, nas transformações de Jekyll, nomeadamente aquele em que ele se vê a chicotear – com ares de sadismo – dois cavalos, que depois se tornam Beatrix e Ivy.
É nessas ambiguidades que reside o triunfo do filme, e o mesmo é dizer, nas interpretações. De um sentido Spencer Tracy a uma exuberante Ingrid Bergman, como os americanos ainda não tinham visto (ela sofre, teme, luta, ri, canta, seduz, zomba, e tudo em igual medida) que coloca completamente na sombra a famosa Lana Turner, aqui, pouco mais que menina de coro, sem muito a dizer ou fazer. Notável é que Bergman foi escolhida para o papel da bondosa e santa noiva de Jekyll, mas recusou, preferindo interpretar a dissoluta e moralmente ambígua Ivy, num papel que ajudaria a lançar a sua estrela.
Mesmo tendo-se tornado um filme mal-amado com o passar do anos, e ter mesmo sofrido de ter as suas cópias destruídas, o que fizeram dele um filme perdido durante algumas décadas, “O Médico e o Monstro” foi nomeado para três Oscars (Fotografia a Preto e Branco, Montagem e Banda Sonora), contendo suficientes bons momentos para ser hoje considerado um clássico. E depois, não é todos os dias que vemos Ingrid Bergman a seduzir maleficamente, com uso do seu corpo, um casto homem comprometido.
Produção:
Título original: Dr. Jekyll and Mr. Hyde; Produção: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM); País: EUA; Ano: 1941 Duração: 108 minutos; Distribuição: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM); Estreia: 12 de Agosto de 1941 (EUA), 27 de Outubro de 1942 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Victor Fleming; Produção: Victor Fleming, Victor Saville [não creditado]; Argumento: John Lee Mahin [a partir do argumento de 1931, de Percy Heath, Samuel Hoffenstein e Paul Osborn, baseado no livro “The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde” de Robert Louis Stevenson]; Música: Franz Waxman; Música Adicional: Daniele Amfitheatrof [não creditado], Mario Castelnuovo-Tedesco [não creditado]; Fotografia: Joseph Ruttenberg [preto e branco]; Montagem: Harold F. Kress; Direcção Artística: Cedric Gibbons; Cenários: Edwin B. Willis; Figurinos: Adrian; Caracterização: Jack Dawn; Efeitos Especiais: Warren Newcombe; Coreografia: Ernst Matray.
Elenco:
Spencer Tracy (Dr. Henry Jekyll / Mr. Hyde), Ingrid Bergman (Ivy Peterson), Lana Turner (Beatrix Emery), Donald Crisp (Sir Charles Emery), Ian Hunter (Dr. John Lanyon), Barton MacLane (Sam Higgins), C. Aubrey Aubrey Smith (O Bispo), Peter Godfrey (Poole), Sara Allgood (Mrs. Higgins), Frederick Worlock (Dr. Heath), William Tannen (Estagiário Fenwick), Frances Robinson (Marcia), Denis Green (Freddie), Billy Bevan (Mr. Weller), Forrester Harvey (Velho Prouty), Lumsden Hare (Coronel Weymouth), Lawrence Grant (Dr. Courtland), John Barclay (Constable).