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Satan's Brew Walter Kranz (Kurt Raab), é um poeta anarquista, orgulhoso da sua intelectualidade, mas sem conseguir escrever uma linha, o que lhe traz problemas financeiros. Para o mitigar, Walter procura adiantamentos junto do editor, e o conforto das amantes, como casada Lisa (Ingrid Caven) e a submissiva Irmgart (Katherina Buchhammer), que ele acaba por matar. Em casa as coisas não são melhores, com a dominadora esposa Luise (Helen Vita), constantemente a queixar-se, e as obsessões infantis do irmão débil mental Ernst (Volker Spengler). A luz ao fundo do túnel chega na forma da fã sicofanta Andrée (Margrit Carstensen), que se muda para casa de Walter, com o seu dinheiro.

Análise:

Como já havia feito em “Cuidado com Essa Puta Sagrada” (Warnung vor einer heiligen Nutte, 1971), Rainer Werner Fassbinder voltava a debruçar-se sobre a ideia do autor em crise de inspiração, agora numa sátira surrealista sobre um poeta interpretado por Kurt Raab, e que podemos traduzir como “O Cozinhado de Satanás”.

Começando com uma citação de Antonin Artaud, “Satan’s Brew” conta-nos a história de Walter Kranz (Kurt Raab), um poeta anarquista, em crise criativa, que desespera por um adiantamento de salário por parte do seu editor. Recusado o dinheiro, Walter vira-se para as suas amantes, tanto a casada Lisa (Ingrid Caven), que o recebe sem entusiasmo, e com a complacência do marido Rolf (Marquard Bohm), como a submissa Irmgart von Witzleben (Katherina Buchhammer), que ele mata num impulso de cariz sexual. Em casa, Walter tem que suportar a pouco tolerante esposa Luise (Helen Vita) e o seu irmão obcecado com moscas Ernst (Volker Spengler), procurando inspiração na prostituta Lana von Meyerbeer (Y Sa Lo), enquanto são visitados frequentemente pelo detective Lauf (Ulli Lommel), que investiga a morte de Irmgart. Tudo melhora quando Andrée (Margrit Carstensen), uma provinciana e submissa admiradora de Walter, vem viver com ele e a família, trazendo o seu dinheiro para o financiar. A inspiração volta, e os fãs também, como o seguidor Urs (Vitus Zeplichal), embora se perceba que Walter mais não faz que imitar outros autores. Andrée, cansada de Walter, foge com Rolf, Luise morre, e os fãs de Walter abandonam-no por verem que este dá mais valor à vida que à morte elogiada nos seus poemas. Quando, por fim, Walter tenta incriminar o irmão da morte de Irmgart, este mata-o pelas costas. Mas no final, Lauf chega com Irmgart, e Walter descobre que também está vivo, e todos celebram juntos, enquanto Lisa declara que vem viver com Walter, tornando-se tão irritante quanto Luise era.

Com interpretações estilizadas e exageradas (por vezes quase parece estarmos a ver um desenho animado), Fassbinder traça um retrato de um poeta em crise de inspiração, na pessoa do seu habitual colaborador Kurt Raab, que participara em quase todos os filmes do realizador, mas nunca antes no papel principal, numa história freneticamente acelerada, com situações desconcertantes, e onde nenhuma personagem nos dá uma ponte com que nos possamos identificar, uma vez que comportamentos e reacções são sempre surpreendentes e a roçar a loucura.

O Walter Kranz de Raab é intempestivo, mimado, agressivo e egocêntrico, dado a acessos de fúria e de depressão, tendo o seu bem estar como única motivação. Tudo em torno a si parece contribuir para a atmosfera neurótica em que Walter vive, desde a esposa irritantemente dominadora (complacente com as escapadelas sexuais do marido, mas queixando-se que não têm sexo há 18 ou 19 dias), ao irmão débil mental, passando pelo casal Lisa e Rolf, a quem Walter paga (quando paga) pelos favores sexuais dela, a toda a trama de implorar por dinheiro, relações de submissão (como Irmgart, que de deixa matar no êxtase, e Andrée que deixa tudo na província para se sujeitar aos abusos do homem que admira), e o papel da arte (dos poemas copiados, aos seguidores cegos e sicofantas, à própria relação entre inspiração e dinheiro – ou falta dele).

Sempre presente está a linguagem sexual (note-se, logo na abertura, como Walter encontra a pistola na gaveta onde Irmgart guarda os seus objectos sexuais, e ela a recebe na boca, e pede que Walter a use nela), na relação de Walter com as várias mulheres, no uso da prostituta como inspiração, no modo como Ernst se excita ao ver as mulheres do irmão, e na forma como cada conversa pode acabar com um homem a exibir o seu sexo, ou mulheres nuas a rolar no chão, como acontece com Irmgart na sequência final. Há ainda o lado homoerótico, presente nas declamações de Walter para um público masculino, e que começam após um inusitado encontro sexual numa casa de banho, e se prolongam na persona que Walter assume, maquilhado de poeta do século XIX, pretensamente homossexual.

Provocador, exagerado, e com um enredo cheio de saltos e soluções perfeitamente surreais, “Satan’s Brew” é, acima de tudo, uma sátira onde, como vemos na frase introdutória de Antonin Artaud, se elabora entre a diferença entre o que chamamos civilizado e selvagem, aqui no exemplo daqueles (os poetas) que lidam com a intelectualidade. Repleto de humor negro e iconoclasta, “Satan’s Brew” não é um filme fácil a quem não o encarar como uma viagem alucinadamente divertida.

Volker Spengler em "Satan’s Brew" (Satansbraten, 1976), de Rainer Werner Fassbinder

Produção:

Título original: Satansbraten; Produção: Albatros Filmproduktion / Trio Film; Produtores Executivos: ; País: República Federal Alemã (RFA); Ano: 1976; Duração: 106 minutos; Distribuição: Cinegate (Reino Unido), New Yorker Films (EUA); Estreia: 7 de Outubro de 1976 (Mannheim-Heidelberg International Filmfestival, RFA), 2 de Março de 1977 (Dinamarca).

Equipa técnica:

Realização: Rainer Werner Fassbinder; Produção: Michael Fengler; Co-Produção: Hanns Eckelkamp; Argumento: Rainer Werner Fassbinder; Música: Peer Raben; Fotografia: Michael Ballhaus, Jürgen Jürges [cor por Eastmancolor]; Montagem: Thea Eymèsz; Design de Produção: Ulrike Bode, Kurt Raab; Figurinos: Ulrike Bode; Caracterização: Jo Braun, Evelyn Döhring; Direcção de Produção: Harry Baer.

Elenco:

Kurt Raab (Walter Kranz), Margit Carstensen (Andrée), Helen Vita (Luise Kranz), Volker Spengler (Ernst Kranz), Ingrid Caven (Lisa), Y Sa Lo (Lana von Meyerbeer), Ulli Lommel (Lauf), Armin Meier (Stricher), Katherina Buchhammer (Irmgart von Witzleben), Vitus Zeplichal (Urs), Brigitte Mira (Mãe Kranz), Hannes Kaetner (Pai Kranz), Peter Chatel (Eugen), Heli Finkenzeller, Marquard Bohm (Rolf), Christiane Maybach (Agentin, Agentur Milutinovic), Nino Korda (Empregado Bancário), Adrian Hoven (Médico no Hospital).

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