Martha (Margrit Carstensen) está em Roma em turismo com o pai (Adrian Hoven), quando este sofre um colapso cardíaco e morre. Roubada, e perdida, Martha regressa à Alemanha, para encontrar uma mãe (Gisela Fackeldey), permanente alcoolizada, que a acusa de tudo, e a aliena durante todo o período fúnebre. Renegando uma proposta de casamento do patrão (Wolfgang Schenck), e deixando-se seduzir pelo estranho e agressivo Helmut Salomon (Karlheinz Böhm), Martha acede a casar com ele, para se descobrir numa vida de subjugação, abuso físico e emocional.
Análise:
Filmado imediatamente antes “O Medo Come a Alma” (Angst essen Seele auf, 1974), mas transmitido apenas após a estreia deste filme e da transmissão de “Nora Helmer” (1974), “Martha” conta-nos mais uma história centrada numa personagem feminina, novamente interpretada por Margrit Carstensen. O filme destaca-se por um orçamento muito superior àquilo a que Fassbinder estava habituado, resultando em valores de produção bastante elevados, incluindo requintados interiores, diversos exteriores, com filmagens em Itália, para além de planos-sequência com trabalho de câmara mais elaborado.
Baseado – algo livremente – no livro “For the Rest of Her Life”, de Cornell Woolrich, “Martha” mostra-nos a vida da nominal Martha Heyer (Margrit Carstensen), uma bibliotecária de 31 anos, solteira, virgem, e ainda com um pensamento de adolescente. Numa estadia em Roma, em que recebe a visita do pai (Adrian Hoven), Martha vê-o morrer de colapso cardíaco, ao mesmo tempo que lhe roubam a carteira. Já na Alemanha, depois da ajuda da embaixada, Martha é alienada pela mãe (Gisela Fackeldey), uma alcoólica que a culpa de todos os infortúnios. Recusando a proposta de casamento do seu patrão (Wolfgang Schenck), Martha vem a encontrar Helmut Salomon (Karlheinz Böhm), que ela conhecera em Itália, e que, após um recontro tenso, em que ele a critica, pressiona-a romanticamente, e vem a casar com ela, notícia que leva a mãe de Martha a tentar o suicídio. Logo a partir da lua-de-mel, Helmut revela-se dominador e sádico, controlando tudo, da dieta de Martha ao seu vício de fumar, retirando-a do emprego e forçando o seu gosto musical. Helmut tira prazer da dor da esposa, abusando dela sexualmente. Martha continua submissa, pensando que pode sempre surpreender o marido com actos de amor, como um novo penteado ou o seu jantar preferido, mas acaba sempre criticada e ridicularizada. O controlo de Helmut vai piorando, indo ao ponto de desligar os telefones da casa, e a proibir de contactar o exterior. Não aceitando a ideia de filhos Helmut permite que Martha tenha um gato, mas este surge morto pouco depois. Martha passa a temer o marido, e um dia, pensando que ele a quer matar, entra em histeria e foge, pedindo ajuda ao amigo Kaiser (Peter Chatel). Só que, no pânico, Martha provoca o despiste do carro, matando Kaiser, e acordando no hospital, paralisada da cintura para baixo, sob o olhar de Helmut, que promete ficar sempre com ela.
Continuando uma série de filmes onde a mulher é vítima da sociedade e duplo padrão masculino, Fassbinder conta-nos a história de uma alguém que desde o primeiro momento parece viver desadequadamente para aquilo que dela se espera. Duas situações, logo na sequência italiana, marcam a personalidade de Martha, tal como a vemos. Primeiro com o envio de um homem ao seu quarto (El Hedi ben Salem), que se despe à sua frente pensando que é isso que ela quer, depois com a chegada do pai, que reprime o contacto físico que a filha parece tentar a todo o custo. Num e noutro momento, tensão sexual, repressão erótica e talvez desejos (ou mesmo actos) escondidos lançam um pouco a confusão sobre quem é Martha, personagem que, saberemos mais tarde, é ainda virgem, e tem um comportamento algo infantil no modo como vê as relações adultas. Daí até ao conflito com a mãe (talvez vendo Martha como rival e não como filha), e um casamento de capricho com alguém que se revela manipulador, e parece entrarmos em território de “A Fera Amansada” de Shakespeare, com um marido que tenta moldar a esposa ao seu jeito.
Só que, se na peça de Shakespeare – embora esta possa hoje parecer datada e machista – temos um duelo de vontades e teimosias, no filme de Fassbinder passamos imediatamente ao campo do abuso (físico e emocional) de um homem dominador que se excita perante a dor da mulher, e a agride como forma de manifestação do seu desejo. Os exemplos são variados e constantes, com Fassbinder a filmá-los com insistência e demora, focando o rosto de Margrit Carstensen, na sua personagem algo tonta e fantasiosa, sempre perdida, e facilmente subjugada, com dificuldade em distinguir abuso de dever matrimonial, vitimizando-se por achar que é por culpa sua que recebe maus tratos, que são – como o crê – sinónimo de amor.
Sem nos dar muito sobre as motivações de Helmut, é a dor feminina e o citado duplo padrão que interessam a Fassbinder. É novamente, como fizera por exemplo em “Nora Helmer”, um exercício de desconstrução do casamento como instituição burguesa, numa sociedade presa a convenções questionáveis. Filmando de uma forma bem mais clássica, “Martha” aproxima-se muito do cinema americano, no que muitos têm visto como uma homenagem a Douglas Sirk, ídolo citado amiúde por Fassbinder. Não deixam, no entanto, de estar presentes algumas das imagens de marca do autor, como os longos planos do rosto da sua diva, e os enquadramentos contemplando espelhos ou vidros, deixando peças do cenário servir de moldura à imagem – note-se como a porta de saída de casa dos Solomon surge quase como um buraco na tela, portal para liberdade que nos mostra uma paisagem contrastante com a austeridade pesada do interior.
Por questões legais, levantadas pelos herdeiros do escritor Cornell Woolrich, o filme, que foi exibido na televisão alemã, não pôde passar ao circuito comercial. O processo cairia anos mais tarde, e o filme seria restaurado, e estreado em Veneza em 1994, tendo depois sido finalmente exibido nos cinemas.
Produção:
Título original: Martha; Produção: Westdeutscher Rundfunk (WDR) / Pro-ject Filmproduktion; País: República Federal Alemã (RFA); Ano: 1974; Duração: 112 minutos; Estreia: 28 de Maio de 1974 (RFA), 4 de Setembro de 1994 (Festival de Veneza, Itália), 2 de Junho de 1995 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Rainer Werner Fassbinder; Produção: Peter Märthesheimer; Argumento: Rainer Werner Fassbinder [a partir do livro “For the Rest of Her Life”, de Cornell Woolrich]; Fotografia: Michael Ballhaus; Montagem: Liesgret Schmitt-Klink; Design de Produção: Kurt Raab; Direcção Artística: Lothar Schulz; Figurinos: Gisela Röcken; Caracterização: Rosemarie Schönartz; Direcção de Produção: Fred Ilgner.
Elenco:
Margit Carstensen (Martha Salomon, née Heyer), Karlheinz Böhm (Helmut Salomon), Barbara Valentin (Marianne, Amiga de Martha), Peter Chatel (Sr. Kaiser), Gisela Fackeldey (Sra. Heyer, Mãe de Martha), Adrian Hoven (Sr. Heyer, Pai de Martha), Ortrud Beginnen (Erna von Scratch), Wolfgang Schenck (Sr. Meister), Günter Lamprecht (Dr. Herbert Salomon, Irmão de Helmut), El Hedi ben Salem (Hóspede no Hotel), Rudolf Lenz (Porteiro), Kurt Raab (Secretário da Embaixada), Elma Karlowa (Criada), Heide Simon (Enfermeira), Lilo Pempeit [como Lieselotte Eder], Ingrid Caven (Ilse).