Nora HelmerNora Helmer (Margit Carstensen) é uma bela mulher, esposa, mãe de três filhos, habituada a ser mimada pelo marido, Torvald (Joachim Hansen), mesmo gastando sempre acima das possibilidades. O que Torvald não sabe é que Nora paga ainda um empréstimo antigo contraído à sua revelia, com assinaturas falsas, para pagar tratamentos dele. Agora que é nomeado director de um banco, Torvald recebe a visita de Krogstad (Ulli Lommel), o homem que concedeu o empréstimo a Nora, e que agora está disposto a revelar a verdade, manchando o nome da família, se não obtiver o lugar que quer no banco.

Análise:

Continuando a dividir a sua carreira entre o cinema e a televisão, Fassbinder dava-nos no início de 1974 o telefilme “Nora Helmer”, uma adaptação da peça de Henrik Ibsen “Casa de Bonecas” (no original em norueguês “Et Dukkehjem”).

Nora Helmer (Margit Carstensen) é uma bela esposa, com três filhos, habituada a uma vida de conforto, procurando sempre o embelezar da casa e todos os bens materiais que o dinheiro lhe possa dar. Tal coloca-a frequentemente em conflito com o marido, Torvald (Joachim Hansen), homem austero, de educação tradicionalista e religiosa, que vê com maus olhos gastos supérfluos, e, agora que é promovido a director do banco onde trabalha, recusa usar tal estatuto como forma de garantir os empréstimos que Nora sugere. Chega Kristine Linde, antiga colega que Nora já não via há anos, agora viúva, e quando aquela inveja Nora por não ter problemas financeiros, esta conta que não é bem assim, e ainda há pouco, quando Torvald esteve doente e teve de ir convalescer em Itália, ela fingiu pagar com dinheiro do pai, mas foi na verdade dinheiro de um empréstimo. Mais tarde chega o Sr. Krogstad (Ulli Lommel), alguém que todos descrevem como mau carácter, que vem falar com Torvald por causa da sua posição no banco. Vendo que não tem o favor de Torvald, Krogstad procura Nora, pois foi a ele que ela pediu o antigo empréstimo. Krogstad revela que Nora assinou promissórias falsificando a assinatura do pai, pois estas datam de após a morte dele. Ameaça revelar tudo, se Nora não interceder junto de Torvald. Esta tenta em vão, e quanto Krogstad regressa, a seu pedido, encontra apenas a Sra. Linde, e os dois reatam um antigo relacionamento. Quando os Helmer regressam, a Sra. Linde diz a Nora que não precisa se preocupar, pois Krogstad não levará a cabo a ameaça. No entanto a carta estava já no correio, e Torvald ao lê-la fica desgostoso com Nora, decidindo que ela não cuidará mais dos filhos, e se manterá em sua casa apenas para manter as aparências. Chega então uma nota de Krogstad, a devolver as promissórias e a determinar que tudo seja esquecido. Torvald rejubila e trata Nora como se nada tivesse acontecido. Mas Nora percebe que, na verdade, já não ama o marido, pois enquanto tudo o que fez foi por ele, preferindo enfrentar a verdade, ele sempre deixou que a aparência ditasse as suas acções. Por essa razão, confessando-se incapaz de educar os filhos, por ter sido sempre tratada como um objecto – primeiro pelo pai e depois pelo marido – Nora decide sair de casa para aprender a conhecer-se.

Desta vez deixando os seus habituais contextos contemporâneos, geralmente ligados às classes baixas de Munique, na sociedade alemã em transição e perda de valores dos anos 50, 60 e 70, Fassbinder – continuando a mostrar a sua dedicação ao teatro – optou por adaptar um drama de época, com personagens de classe média-alta, entre o tradicionalismo e a aparência de uma sociedade formatada e cristalizada.

A Noruega de Ibsen transforma-se assim numa Alemanha de Fassbinder, e nem mesmo as roupas luxuosas, discursos afectados e preocupações fúteis de classe alta interferem com aquilo que é a matriz de Fassbinder. Por isso continuamos a ter a luta de uma mulher, quer contra as convenções e olhares preconceituosos, quer contra si mesma, na ambição de se conhecer e superar. Nesse sentido, “Nora Helmer” lembra um pouco “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” (Die bitteren Tränen der Petra von Kant 1972), também ele a história de uma mulher que vive numa gaiola dourada, e que à custa de sofrimento e do conhecimento dos outros vai perceber o quanto tem ainda de lutar para crescer e se conhecer a si própria. Não faltam as interpretações (e mais uma excelente prestação de Margrit Carstensen), com o habitual frio e distanciamento de tons e comportamentos, aqui aliados à estilizada linguagem teatral.

Com um curto elenco, e um cenário limitado (completamente filmado num só estúdio), Fassbinder parece filmar num palco, onde a cenografia cuidada nos faz pensar estarmos dentro de uma casa de bonecas, apinhada de móveis, espelhos, cortinados, vasos e muitos outros detalhes onde tudo são laços e rendas. Fassbinder filma por entre os móveis, muitas vezes de trás de reposteiros, cortinas, vidros ou plantas, ou em reflexos ao espelho, num constante cortar de planos que nos trazem sempre os rostos nos seus momentos mais dramáticos, num jogo de enquadramentos, onde mais que a câmara, é a cenografia que os compõe, definindo espaços e ênfases (luz, foco, posicionamento) que dão atmosfera a cada momento.

Na visão de Fassbinder, “Nora Helmer”, assente numa protagonista forte, é a desconstrução do casamento burguês, numa estrutura de ligações de conveniência, onde a aparência é tudo e os sentimentos não têm importância. Mais cáustico ainda que a peça original, em “Nora Helmer” fica até a insinuação de que favores sexuais possam ter sido usados na obtenção do infame empréstimo, por parte de uma mulher ciente do seu poder sobre os homens, mas insegura do seu papel no casamento.

Curiosamente, duas outras versões desta peça de Ibsen tinham chegado ao cinema apenas um ano antes: “A Casa da Boneca” (A Doll’s House, 1973), realizado por Joseph Losey, e com Jane Fonda, David Warner e Trevor Howard; e “A Doll’s House” (1973), realizado por Patrick Garland, e com Claire Bloom, Anthony Hopkins e Ralph Richardson.

Produção:

Título original: Nora Helmer; Produção: Saarländischer Rundfunk (SR) / Telefilm Saar GmbH; Produtores Executivos: ; País: República Federal Alemã (RFA); Ano: 1974; Duração: 107 minutos; Distribuição: ; Estreia: 3 de Fevereiro de 1974 (RFA), 17 de Maio de 1983.

Equipa técnica:

Realização: Rainer Werner Fassbinder; Produção: Karlhans Reuss; Argumento: Bernhard Schulze [tradução da peça de Henrik Ibsen]; Fotografia: Günter Steinke [filmado em vídeo]; Montagem: Anne-Marie Bornheimer, Friedrich Niquet; Direcção Artística: Friedhelm Boehm; Figurinos: Barbara Baum; Caracterização: Marietheres List, Alois Woppmann; Direcção de Produção: Peter Wohlers.

Elenco:

Margit Carstensen (Nora Helmer), Joachim Hansen (Torvald Helmer), Barbara Valentin (Kristine Linde), Ulli Lommel (Krogstad), Klaus Löwitsch (Dr. Rank), Lilo Pempeit (Marie, A Governanta), Irm Hermann (Helene).

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