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Cinema, Cinema alemão, Drama, Eddie Constantine, Filme sobre Cinema, Hanna Schygulla, Hannes Fuchs, Karl Scheydt, Lou Castel, Marcella Michelangeli, Margarethe von Trotta, Marquard Bohm, Novo cinema alemão, Rainer Werner Fassbinder
Em Espanha, a equipa de produção de um filme está reunida num hotel, onde vive vive em grande aborrecimento e frustração, pela falta de material, financiamento, e do realizador. O produtor Sascha (Rainer Werner Fassbinder) não consegue disfarçar a irritação, tratando todos mal, e quando Jeff (Lou Castel), o realizador, chega, vem encontrar actores e equipa envolvidos numa série de intrigas, conquistas fúteis e jogos românticos de invejas e ciúmes. Ele próprio deixa-se enredar, não sabendo já que rumo dar ao seu filme, descarregando frustrações em relações sexuais com homens e mulheres.
Análise:
Desta vez alargando o seu espectro de actores, para lá dos seus habituais colaboradores, incluindo alguns nomes estrangeiros, como o sueco radicado em Itália Lou Castel e o norte-americano Eddie Constantine, Rainer Werner Fassbinder realizou um filme sobre o cinema, mais concretamente sobre a sua experiência espanhola na gravação de “Whity” (1971), revelando frustrações e o verdadeiro carrossel de emoções e guerras internas que era o círculo que em torno dele girava.
A acção decorre algures em Espanha, com toda a equipa de filmagens (produtores, técnicos, actores), num clima de enorme aborrecimento, pois faltam materiais para começar as filmagens. A início o próprio realizador (Lou Castel) está ausente, deixando um dos produtores (Rainer Wener Fassbinder) nervoso. Pouco depois o realizador chega, e vai tentando planificar os dias seguintes, dirigindo actores e a sua equipa para o que terão de fazer quando começarem as filmagens. As tensões vão acontecendo, quer por dificuldades financeiras, quer por mal entendidos entre equipa e os proprietários do local – uma espécie de hotel – onde decorrerão as filmagens, quer – principalmente – entre os elementos da própria equipa, mais dados a jogos pessoais – intrigas, competições, ciúmes e jogos amorosos – de quem está com quem, contra quem, quer quem ou traiu quem. Tal vai deixando o realizador cada vez mais inseguro e fora de si.
Dando-nos um clima tenso, de permanente discórdia, e relações conflituosas e manipuladoras, onde os comportamentos infantilizantes de ciúmes e jogos de influências vão dominando o dia a dia de uma equipa de filmagens, Fassbinder terá, em “Cuidado com Essa Puta Sagrada”, querido dar-nos a conhecer um pouco do que seria o ambiente dos bastidores dos seus filmes (ele que ficou conhecido pelo ritmo alucinado e forma absolutamente obsessiva de dirigir), em particular, inspirando-se no seu recente “Whity”, filme que levaria Fassbinder e a sua equipa para um retiro, desenraizado do seu habitat habitual, em Espanha.
Filmando a cores, com câmara móvel entre os personagens, num constante deambular pelos cenários do espaço que deveria constituir o filme dentro do filme – espaços do hotel, interiores dos quartos, exteriores de esplanadas e terraços – Fassbinder opta por deixar que os seus personagens interajam quase caoticamente, em sequências que são depois editadas sem uma linearidade temporal aparente, onde cada cena não decorre necessariamente das anteriores. Mais que uma história ou um enredo fácil de seguir, o que se destaca em “Cuidado com Essa Puta Sagrada” é o ambiente feito de tensões, e os comportamentos inenarráveis de uma classe fechada dentro de um mundo muito próprio, quase que separado da realidade, onde toda a gente vai para a cama com toda a gente (indiscriminadamente do género), e todos parecem estar muito ou pouco alterados, seja por álcool, ou outras substâncias, no que era descrito como o normal dos dias de filmagens de Fassbinder.
Lou Castel (com casaco de cabedal à Fassbinder) é Jeff, o protagonista, no centro de quase todas as conversas e situações, marcando o tom, nos desesperos, violências e frustrações de um realizador permanentemente à beira de um ataque de nervos, e procurando bloquear-se a si próprio pela insegurança de querer ou não fazer o filme. Não é difícil lembrarmo-nos de “Fellini 8½” (8½, 1963) de Federico Fellini, como exemplo de filme que olha para dentro da cabeça de um realizador no momento em que este está bloqueado. Mas Fassbinder faz isso procurando principalmente o que se passa em torno do realizador. Por esse olhar externo e forma desconexa – podendo mesmo dizer-se cínica – de olhar para as pessoas, é principalmente Godard quem surge como influência, num filme que alguns também comparam a “O Desprezo” (Le Mépris, 1963).
Caricatura de uma equipa, sátira ao mundo do cinema e seus intervenientes, auto-crítica ao seu próprio modo de trabalhar, “Cuidado com Essa Puta Sagrada” é um olhar, que chega a ser cómico e triste, para os bastidores do cinema, ou de algum cinema, o de uma equipa que vive já num ciclo tão fechado e vicioso como o era a de Fassbinder, onde a bagagem era já imensa, quando tantos estavam juntos há vários anos. No detalhe encontram-se os temas habituais em Fassbinder: o excesso, a falta de empatia emocional, a violência inerente ao ser humano, e a sociedade descaracterizada e caricaturizada.
Com várias músicas de Leonard Cohen em fundo, “Cuidado com Essa Puta Sagrada” é, sobretudo, a história de um realizador que não sabe bem o que quer, ou como quer, e se deixa levar num comboio que tem tanto de salvador como de triturador (afinal, uma espécie de conclusão sobre o que foi a vida de Fassbinder). Curiosa é a história que serve de prólogo, narrada por Werner Schroeter, que descreve um qualquer conto Disney onde Pateta, travestido, tenta ensinar num jardim infantil. Descoberto, deita as roupas fora, e estas são usadas pelo criminoso anão Wee Willy, que passa por menina para escapar à polícia, e acaba recolhido por Pateta. Só que o disfarce é descoberto e Wee Willy é levado, deixando Pateta a perguntar-se que choque a menina deve ter tido quando soube que afinal era um criminoso. Era o mote para uma história de pessoas que talvez não saibam verdadeiramente o que são, não deixando de ser vítimas disso, e de emoções deslocadas, colocadas indevidamente em quem não as merece.
Produção:
Título original: Warnung vor einer heiligen Nutte; Produção: Antiteater-X-Film / Nova International Films; Produtor Executivo: Peter Berling; País: República Federal Alemã (RFA) / Itália; Ano: 1971; Duração: 90 minutos; Estreia: 28 de Agosto de 1971 (Festival de Veneza, Itália), 1 de Setembro de 1971 (Hamburgo, RFA), 26 de Janeiro de 1986 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Rainer Werner Fassbinder; Argumento: Rainer Werner Fassbinder; Música: Peer Raben, Gaetano Donizetti, Teodoro Cottrau (“Santa Lucia”), Mike Kellie (“I’ve Got Enough Heartaches”), Spooky Tooth, Leonard Cohen; Fotografia: Michael Ballhaus [cor por Eastmancolor]; Montagem: Rainer Werner Fassbinder [como Franz Walsch], Thea Eymèsz; Design de Produção: Kurt Raab; Caracterização: Sybille Danzer, Maria Mastrocinque; Direcção de Produção: Ralph Zucker, Christian Hohoff.
Elenco:
Lou Castel (Jeff, o Realizador), Eddie Constantine (Eddie, Actor – O Próprio), Marquard Bohm (Ricky, Actor), Hanna Schygulla (Hanna, Actriz), Rainer Werner Fassbinder (Sascha, Director de Produção), Margarethe von Trotta (Babs, Secretária de Produção), Hannes Fuchs (David, Assistente de Realização), Marcella Michelangeli (Margret), Karl Scheydt (Manfred, o Produtor), Ulli Lommel (Korbinian, Director de Produção), Kurt Raab (Fred, Decorador), Herb Andress (Mark, Coach), Monica Teuber (Billi, Caracterizadora), Benjamin Lev (Candy, Director de Produção Espanhol), Gianni Di Luigi (Mike, Cameraman), Werner Schroeter (Deiters, Director de Fotografia), Magdalena Montezuma (Irm), Rudolf Waldemar Brem (Chefe Electricista), Thomas Schieder (Jesus, Electricista), Enzo Monteduro, Mario Novelli, Ingrid Caven (Statistin), Tanja Constantine (Linda), Katrin Schaake (Guionista), Achmed Em Bark (Proprietário), Michael Fengler (Spencer), Harry Baer (Mann der Statistin / David (voz)), Burghard Schlicht (Peter), Dick Randall (Porteiro), Peter Berling, Toni Bianchi (Blanco), Renato Di Laudadio, Franco Javarone [como Gianno Javarone] (Bill), Peter Gauhe (Jornalista), Marcello Zucchè, Irm Hermann (dobragem de voz de Magdalena Montezuma) [não creditada], Volker Lechtenbrink (dobragem de voz de Lou Castel) [não creditado], Manfred Seipold (dobragem de voz de Herb Andress) [não creditada].