
É tempo de mais uma integral n’A Janela. Será a sexta vez que olhamos para uma obra integral de um realizador fundamental da história do cinema. Depois de Woody Allen, Alfred Hitchcock, Martin Scorsese, Ingmar Bergman e Federico Fellini, chega o alemão Rainer Werner Fassbinder. É com ele que passaremos – de forma acelerada e alienada – as Quartas-feiras deste ano. Para saberem porque devem acompanhá-la, é só ler o texto introdutório, da autoria de Sara Galvão.
Texto de Sara Galvão
Cineasta e montadora a trabalhar em Londres.
Editora da revista Take Cinema Magazine
Colaboradora do website Critics Associated
Uma das mais curiosas (e prolíficas) figuras do cinema europeu, Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), tem mais de quarenta longas-metragens, duas séries de televisão e vinte e tal peças no seu nome, fazendo qualquer mero mortal sentir-se uma lesma preguiçosa que nunca alcançará nada na vida. Quando acrescentamos que os seus quarenta e tal filmes foram feitos em 14 anos, então sim, camaradas, está na altura de desistir, porque estamos a falar de 2,8 filmes por ano. Envergonha-te, Woody Allen
Sim, a extrema produtividade está directamente relacionada com a morte súbita aos 37 anos (isso e uma quantidade considerável de barbitúricos e cocaína), mas o que é o valor de uma vida humana [*sarcasmo] comparada com a herança cinematográfica incrível que este homem nos deixou? Um só dos seus grandes filmes seria o suficiente para o colocar nos livros de História da Sétima Arte; quarenta e tal é basicamente gozar com os pobrezinhos.
Contexto: Alemanha anos 70. A primeira vaga do Novo Cinema Alemão tinha começado em 1962, com o Manifesto de Oberhausen, escrito por Alexander Kluge e outros. Os cineastas alemães tinham nas mãos uma tarefa complicada: a de criar um cinema nacional num país destruído pelo nacionalismo. Fassbinder será a figura da frente de uma segunda geração de cineastas independente, que incluem Werner Herzog, Jean-Marie Straub, Wim Wenders e Volker Schlöndorff.
Fassbinder começou a sua carreira no teatro, o que explica decerto a primeira fase das sua obra cinematográfica, bastante influenciada por Brecht e Artaud, mas «traduzida» para as massas, e feita para apelar a públicos contemporâneos (para Fassbinder, o cinema tem de ter um público). O seu primeiro filme, “Liebe ist kalter als der Tod” (1969), mistura Hollywood com avant-garde, e foi bastante mal-recebido na Berlinale. A história de gangsters «desconstruída», com Fassbinder como protagonista, já deixava antever alguns dos temas futuros do realizador – solidão, procura de amor, medo de traição. Outros dos filmes dignos de nota desta fase são “Der Amerikanische Soldat” (1970), “Whity” (1970) e “Beware of a Holy Whore” (1971) – um filme «auto-biográfico» sobre um realizador egomaníaco.
Quando o financiamento dos seus filmes aumentou devido ao seu sucesso, Fassbinder começou a moldar os seus filmes (com inclinação política de esquerda) ao modelo americano. O cineasta queria contar histórias populares, de narrativas simples, e que, mais uma vez, apelassem a uma audiência generalista. Nas palavras do próprio, «O cinema americano é o único que posso levar a sério, porque é o único que realmente encontrou um público. O cinema alemão costumava ter um público, antes de 1933, e claro que há realizadores individuais em outros países que estão próximos do seu público. Mas o cinema americano, em termos gerais, tem a relação mais feliz com o seu público, e isso é porque não tenta ser ‘arte’. O seu estilo narrativo não é complicado ou artificial. Bem, claro que é artificial, mas não é ‘artístico’».
Assim, Fassbinder tornou-se, entre 1971 e 1975, numa espécie de Douglas Sirk alemão, sem deixar de lado, por muito que tente, a sua sensibilidade europeia e política. Destaque-se “Die bitteren Tränen der Petra von Kant” (1972 – filmado dentro de um único espaço, extremamente claustrofóbico e teatral), “Wildwechsel” (1973 – sobre a relação sexual de uma miúda de 14 anos com um rapaz de 19), “Welt am Draht” (1973 – ficção científica!), “Angst Essen Seele auf” (1974 – um óptimo ponto de entrada na obra de Fassbinder, e que levará Fassbinder a uma audiência internacional), “Effi Briest” (1974 – que levou 58 dias a ser filmado, um recorde na carreira de Fassbinder) e “Faustrecht der Freiheit” (1974).
Naquela que iria ser a sua última e mais aclamada fase, Fassbinder vira-se para a história Alemã, com todos os seus problemas, e realiza a sua famosa serie “Berlin Alexanderplatz” (1980) – uma excepção naturalista desta fase, onde os seus filmes se vão mais uma vez estilizar. Destaque-se “Despair – Eine Reise ins Licht” (1978 – o seu primeiro filme em Inglês, adaptado de Nabokov), “Die Ehe der Maria Braun” (1979 – o seu maior sucesso na Alemanha), “Die Dritte Generation” (1979 – uma comédia negra sobre terrorismo), “Die Sehnsucht der Veronika Voss” (uma espécie de Sunset Boulevard, mas muito mais negro) e “Querelle” (o seu último filme, que a Time Out descreveu, muito politica incorrectamente, como «perhaps an entirely appropriate parting shot from a drug-crazed German faggot».
Em suma, uma carreira imensa, de um dos observadores mais implacáveis da natureza humana, com uma vida pessoal tão ou mais intensa que os seus filmes, que auto-proclamou a sua «marca» de autor: «Qualquer realizador decente tem um único tema, e só faz o mesmo filme vezes e vezes sem conta. O meu tema é o exploração abusiva de sentimentos, seja lá quem os estiver a explorar. Nunca acaba. É um tema permanente. Seja o estado a explorar patriotismo, ou numa relação entre um casal, onde uma das partes destrói a outra.»
Longe de passarinhos e finais felizes, Rainer Werner Fassbinder, que, com um enorme talento e quantidades aparentemente inesgotáveis de cocaína, nos deu uma obra imensa, complexa e extremamente variada, é um cínico genial que claramente nos daria uns senhores episódios do Black Mirror, se ainda estivesse vivo. Assim, só nos resta olhar para a sua obra, e suspirar porque, como dizia o Billy Joel, “Only the Good Die Young”.
Sara Galvão