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Anna Sigalevitch, Annie Girardot, Benoît Magimel, Cinema, Cinema austríaco, Cinema Francês, Drama, Elfriede Jelinek, Isabelle Huppert, Michael Haneke, Susanne Lothar
Erika Kohut (Isabelle Huppert) é uma professora de piano no Conservatório de Viena, de cerca de 40 anos, mas vivendo sob o domínio opressivo da sua mãe (Annie Girardot) e o peso de um pai doente psiquiátrico no hospital. Com uma máscara de impenetrável rigidez, Erika solta as frustrações em voyeurismo em cabines de sexo, ou em auto-mutilações em casa. Quando o aluno Walter Klemmer (Benoît Magimel) mostra interesse amoroso por ela, Erika vai tentar fazer dele a ferramenta para as suas fantasias de humilhação e submissão masoquistas, sem lhe permitir outra aproximação que não a que inscreve numa carta que lhe dá a ler.
Análise:
A partir do romance de 1983 “Die Klavierspielerin”, da escritora austríaca Elfriede Jelinek – que viria a ser prémio Nobel da Literatura em 2004 –, o também austríaco Michael Haneke realizou aquele que seria o seu mais mediático filme até então, e que era, afinal, a continuação de um percurso dedicado a um tema recorrente na sua obra cinematográfica, iniciada em 1989, e com seis longas-metragens já realizadas: o de histórias de disfunções sociais provenientes de pressões quer da sociedade contemporânea, família ou expectativas próprias, resultando em comportamentos extremos e conflituosos.
É essa a história de Erika Kohut (Isabelle Huppert), uma professora de piano no Conservatório de Viena, entusiasta de Schubert, com fama pela sua rispidez e nível de exigência, vivendo, aparentemente, uma vida de quase clausura, sob o domínio opressivo da sua mãe (Annie Girardot). Sob a frustração (todos os dias lembrada pela mãe) de ser apenas professora quando podia ter sido uma célebre pianista de concerto e com uma rotina (mais uma vez controlada pela mãe) onde cada minuto a mais na rua, ou cada compra feita para si são motivos de escrutínio e recriminação, Erika vive uma vida secreta. Nela, recorre a animatógrafos pornográficos, e busca na noite locais onde possa ver outros terem relações sexuais. Intimamente, albergando desejos masoquistas, Erika explora a dor que inflige a si própria e, por fim, irá ceder os seus segredos ao estudante Walter Klemmer (Benoît Magimel), que parece enamorado dela, mas do qual ela quer apenas uma relação de submissão e humilhação sexual. Perante a recusa dele em ceder aos caprichos de dominação e sadismo que Erika espera, Walter afasta-se, e Erika cai na extrema humilhação aos seus pés, até perceber que nada resulta, e se apunhalar de desgosto.
Com um foco intenso na actividade do ensino de piano (com longas dissertações sobre motivações e modos de tocar, e a execução extensiva de peças de piano), “A Pianista” faz a ponte entre a expressão musical e o desejo sexual, que aqui surge como algo desequilibrado, fruto de repressões que vêm da força opressiva da mãe (que terá sido baseada na mãe da própria escritora), da constante lembrança do falhanço profissional, e de uma vida controlada num objectivo único, que não permitiu a Erika outros meios de expressão emocional. Com cenas perturbadoras que incluem agressões físicas entre mãe e filha, uma quase tentativa de sedução sexual entre mãe e filha, uma cena de auto-mutilação com cortes de lâmina, e vários momentos de submissão e humilhação sexual, com agressões e uma quase violação, Haneke nunca se retrai no seu caminho de um realismo extremo e perturbador, onde descreve o mais inenarrável do comportamento humano.
Exemplo desse modo extremo é a sequência da auto-mutilação, que começa por chocar pelo modo como Haneke deixa o tempo correr, enquanto assistimos, de um modo clínico, às minuciosas preparações, que levam ao momento em que Erika se senta na borda da banheira a cortar-se com uma lâmina e a observar-se com um espelho que aponta para entre as pernas, enquanto o sangue escorre. O único som a chamar-nos à razão é a voz da mãe do outro lado, que chama dizendo que o jantar está pronto, ao que Erika responde com um frio (e talvez ambíguo) «estou a ir».
Para tal, nesse realismo, Haneke deixa as cenas correr, os planos alongam-se, os enquadramentos não buscam a beleza estética, mas fixam-se para gerar ainda mais desconforto e, sem banda sonora (para além dos tais momentos diegéticos de execução), deixa que sejam os comportamentos a contar a história, mesmo quando esta se desenvolve entre aparentes paradoxos (como o imaginarmos uma professora puritana e fechada que de repente se torna obcecada por um tipo de sexo que envergonharia os mais liberais, como o caso do seu estudante). Nesses planos, onde nada parece encenado, somos lembrados de que somos voyeurs, numa perversidade que é tanto de quem comete os actos como de quem permanece no fascínio de os observar.
A força narrativa de Haneke é tal que, depois de surpreendidos pelas exigências de Erika – na carta em que enumera os seus desejos sexuais –, e absortos no comportamento de Walter, indeciso em quão longe deve ir entre desejo e repugnância, passamos a esperar que esses desejos sejam cumpridos, e a aceitar até a cena de violação em que, aos nossos olhos, talvez Erika mereça ou tenha mesmo ficado feliz com o ataque sofrido. Esse é mais um paradoxo que Haneke nos deixa, desta vez centrado em nós próprios, que, tal como não chegamos a saber o que Erika pensou de tudo o que lhe aconteceu, não vamos perceber a cena final, um final em aberto, onde a facada pode representar muitas coisas diferentes.
Por tudo isto, “A Pianista” é também uma crítica social, no testemunho que faz da repressão familiar, no desmascarar das hipocrisias sociais (com o tanto que se pode esconder debaixo das aparências mais insuspeitas), e no examinar dessas pressões, da loucura (a familiar – do pai de Erika –, a dos músicos que ela admirava – Schubert e Schumann) ao desejo sexual (de Erika – disposta a todas as perversões –, a do aluno – excitado por conquistar uma professora mais velha), e toda a aparência e exigência social ligadas à intelectualidade, como exemplificadas na família Schobler, onde a pressão da mãe (Susanne Lothar), sobre a insegura filha Anna (Anna Sigalevitch), aluna de Erika, parece indicar o que poderia ter sido a educação de Erika, apontando Anna como uma Erika em potência.
Fulgurante é a presença de Isabelle Huppert – que não usa duplos nas partes de piano, uma vez que estudou piano durante doze anos –, a qual confere uma força incrível à sua personagem, no papel de uma mulher destroçada emocionalmente, incapaz de um momento de alegria ou compaixão, tornando o tal paradoxo (puritanismo/depravação) ainda mais credível, intenso e desconcertante, com uma interpretação rígida e economicamente eficiente.
Chocando tanto quanto fascinou o seu público, Haneke conseguiu o reconhecimento logo na estreia, ao vencer o Grande Prémio em Cannes, onde Huppert e Magimel venceram nas categorias de interpretação. O filme foi ainda premitado nos BAFTA e nos European Film Awards, com Huppert a ser premiada em muitos outros festivais.
Produção:
Título original: La Pianiste; Produção: Wega Film / MK2 SA / Les Films Alain Sarde / Arte France Cinéma / Österreichisches Filminstitut / Filmfonds Wien / Österreichischer Rundfunk (ORF) / Eurimages / Arte / Bayerischer Rundfunk (BR)/ Canal+ / Centre National de la Cinématographie (CNC) / Bavaria Film International; Produtores Executivos: Michael Katz, Yvon Crenn (MK2), Christine Gozlan (Les Films Alain Sarde); País: Áustria / França / Alemanha; Ano: 2001; Duração: 125 minutos; Distribuição: MK2 Diffusion (França) / Kino International (EUA); Estreia: 14 de Maio de 2001 (Festival de Cannes, França), 31 de Agosto de 2001 (França).
Equipa técnica:
Realização: Michael Haneke; Produção: Veit Heiduschka; Argumento: Michael Haneke [a partir do livro “Die Klavierspielerin” de Elfriede Jelinek]; Música: Franz Schubert, Frederick Chopin, Joseph Haydn, Johan Sebastian Bach; Orquestração: ; Fotografia: Christian Berger; Montagem: Monika Willi; Design de Produção: Christoph Kanter; Cenários: Hans Wagner; Figurinos: Annette Beaufays; Caracterização: Thi-Loan Nguyen, Ellen Just, Françoise Andreijka; Efeitos Especiais: László Kovács; Efeitos Visuais: Geoffrey Kleindorfer; Direcção de Produção: Michael Katz, Gebhard Zupan.
Elenco:
Isabelle Huppert (Erika Kohut), Annie Girardot (A Mãe), Benoît Magimel (Walter Klemmer), Susanne Lothar (Mrs. Schober), Udo Samel (Dr. George Blonskij), Anna Sigalevitch (Anna Schober), Cornelia Köndgen (Mme Gerda Blonskij), Thomas Weinhappel (Barítono), Georg Friedrich (Homem no Drive-in), Philipp Heiss (Naprawnik), William Mang (Professor), Rudolf Melichar (Director), Michael Schottenberg (Professor), Gabriele Schuchter (Margot), Dieter Berner (Professor de Canto), Volker Waldegg (Professor), Martina Resetarits (Professora), Annemarie Schleinzer (Professora), Karoline Zeisler (Professora), Liliana Nelska (Secretária), Luz Leskowitz (Violinista), Viktor Teuflmayr (Pianista), Viviane Bartsch (Mulher no Drive-in), Florian Koban (Aluno), Thomas Auner (Pianista de Haydn), Andreas Donat (Pianista de Chopin), Gerti Drassl, Klaus Händl, Erika Kollmann-Till, Nina Kripas, Esther Pils, Petra Reichel, Arbesi Sufi, Marcus Zeuner, Klara Herrer Barabyi (Playback de Erika), Thomas Auner (Playback de Walter).
Curioso, andei a ver o “Happy End” (inclusive publiquei a crítica hoje) e a rever o “Caché” nos últimos dias e nem tinha reparado que lhe andavas a dedicar um ciclo. Um muito merecido tempo de antena, diga-se de passagem. Um dos meus realizadores preferidos. É realmente uma figura incontornável do presente século, um dos mais consistentes no que toca à qualidade, com excepção para este seu último, que para mim está bem longe dos seus melhores filmes. Fico a aguardar a tua opinião sobre o dito.
Mas quanto a este La Pianiste, tenho-o muito provavelmente como o meu Haneke preferido. E isso é dizer mesmo muito, visto que gosto imenso de filmes como “The Seventh Continent”, “Funny Games”, “Amour”. Um óptimo estudo dessa linha entre o puritano e o libertino, como bem apontas. Curioso que seja Huppert a tomar as rédeas do protagonismo em “Elle” do Paul Verhoeven, sendo que ambas são precursoras de uma tomada do desejo que actua na zona do cinzento e testa o moralmente aceite.
Abraço,
Rafael
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