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Cinema, Cinema italiano, Drama, Elena Fiore, Eros Pagni, Filme de época, Giancarlo Giannini, Lina Polito, Lina Wertmüller, Mariangela Melato, Pina Cei
Em 1932, o camponês da Lombardia Antonio Soffiantini, conhecido como Tunin (Giancarlo Giannini), vê um amigo anarquista, que voltara para matar Mussolini, ser assassinado pelas autoridades. Tunin decide tomar ele o empreendimento, rumando a Roma, onde o seu contacto é Salomè (Mariangela Melato), prostituta do bordel de Madame Aïda (Pina Cei). Nos dias que antecedem o planeado atentado, Tunin vai viver no bordel, onde conhece Tripolina (Lina Polito), e os dois vivem um apaixonado romance, que Tunin sabe ser a prazo, pois seja qual for o resultado da sua missão, a sua morte é quase uma certeza.
Análise:
Continuando na senda do seu anterior e bem recebido “Ferido na Honra” (Mimì metallurgico ferito nell’onore, 1972), Lina Wertmüller voltou a realizar um filme escrito por si, e que assentava na colaboração com os actores Giancarlo Giannini e Mariangela Melato. Mais que isso, “Filme de Amor e Anarquia” volta a tocar os temas do filme precedente de Wertmüller, aqui contextualizados na ditadura fascista de Benito Mussolini. Voltamos a ter as desigualdades provincianas, a sombra da opressão totalitária (aqui o regime fascista, onde antes fora a máfia), e os personagens desalinhados, com vidas pessoais que não dominam e que se deixam entrelaçar em posições políticas, por vezes acidentalmente, com um sentido trágico-cómico.
Desta vez, ao contrário de “Ferido na Honra”, não temos uma comédia aberta, mas sim um drama de contornos cómicos, que se define logo no início, quando a seguir a vermos a morte trágica de um anarquista que voltou a Itália para matar Mussolini, vemos o seu amigo Tunin (Giancarlo Giannini) pegar no testemunho, e tentar completar o feito, dirigindo-se a Roma para encontrar o seu contacto, que descobre ser Salomè (Mariangela Melato), uma prostituta do bordel de Madame Aïda (Pina Cei). Como peixe fora de água, o tímido Tunin fica espantado com a cor e ruído do bordel, e o comportamento libertino das mulheres que nele trabalham, a começar pela própria Salomè, que o apresenta como primo, e logo o convida para a sua cama, por simpatizar com ele. Ambientando-se aos poucos ao ambiente do bordel, Tunin aceita o plano de Salomè de passarem o dia seguinte com o amante desta, Giacinto Spatoletti (Eros Pagni), chefe da segurança de Mussolini, para assim aprenderem sobre o local e segurança do dia do atentado. Com eles segue outra prostituta, Tripolina (Lina Polito), que fica com Tunin, enquanto Salomè mantém Spatoletti ocupado. Só que com a doçura e jovialidade de Tripolina conquistam Tunin, fragilizado pela ideia de que irá morrer, enquanto ela se deixa conquistar pela inocência e cavalheirismo dele. Os dois iniciam uma relação intensa, e com o aproximar da data fatídica, Tunin conta tudo a Tripolina, a qual, sem interesse em política chora a possível morte do seu amado. Por isso, no dia planeado, Tripolina não acorda Tunin, e impede Salomè de o fazer, a qual inicialmente protesta, acabando por aceitar as razões da amiga. Ao acordar, Tunin sente-se enganado, perdendo completamente a razão, e saindo a disparar contra a polícia, acabando preso, torturado e morto na prisão.
Se por um lado “Filme de Amor e Anarquia” tem um lado trágico que se sobrepõe à comédia satírica que víramos em “Ferido na Honra” – e muito devido à prestação de Giacomo Giannini, aqui grave e introvertido, facilmente encolerizável e um tanto bronco, quando antes fora histriónico e exuberantemente cómico no seu provincianismo e arrogância –, por outro há sempre uma atmosfera leve que contrasta com o peso da morte que se anuncia no homicídio planeado. Esta é trazida pelo lado divertido e ruidoso que se vive no bordel, local de alegria e vida, onde, se no início tudo parece confuso a Tunin – um pacato rapaz da aldeia que nunca teve tempo para pensar nessas coisas –, cedo esse ambiente o contagia a ponto de o fazer sentir-se em casa, e desse modo também ele vivo.
Com o epíteto de anárquico, que é algo que ele não sabe muito bem o que é (recorde-se as cenas iniciais em que uma criança recebe a resposta «é alguém que mata reis e acaba na forca»), apenas que serve para contestar a ditadura, Tunin vai viver dias intensos, onde morte e vida coabitam de uma forma que ele não espera. A morte é a imagem que ele traz da província, no desfecho do seu amigo, são as amarras do fascismo e é a história de Salomè que, perdendo o seu amante às mãos dos camisas negras, se viu atirada para a prostituição. A vida é a alegria que Tunin encontra, de quem não pensa em política, e é sobretudo o amor que vai encontrar em Tripolina, uma jovem a seu modo inocente e sonhadora, apesar de viver do sexo. A morte é o medo que lança Tunin em pânico, e a vida é os dias de amor que lhe dão esperança. E afinal é esse medo que alimenta a alegria do seu amor, tal como é este amor que aumenta o medo sentido.
Tal como acontecera no filme precedente de Wertmüller, o protagonista tem sempre de escolher entre o desejo pessoal no amor e o dever político ou social. Tal como antes, o protagonista luta entre os dois, convicto de ter nas mãos a capacidade de decidir o seu destino. Se em “Ferido na Honra” tal húbris o levava de erro em erro, num caminho tão sinuoso quanto ridículo, em “Filme de Amor e Anarquia” as suas decisões não interessam quando é nas mãos das mulheres que o amam que tudo se resolverá. O filme torna-se então um estudo sobre os limites desse dever, quando ele pode levar ao fim da felicidade que até aí não se julgara possível. Mas Tunin nunca se desviará do caminho, qual mártir anunciado – e talvez evocativo da história de Cristo, que apesar de pedir que Deus afaste de si o cálice que o espera, se resigna a sacrificar-se pelos homens – também Tunin, apesar de toda a tristeza e dúvidas, sabe que quer morrer pela causa a que se entregou. Afinal, como dirá Salomè quando ele é brutalmente espancado, ele morre como um cão, enquanto todos vivem como cães.
Mais uma vez Wertmüller – aqui com uma descrição do fascismo como um mal absoluto e seus partidários como repletos de maldade – constrói um enredo com diálogos coloridos, uso de dialecto e velocidade estonteante. Os cenários voltam a ser proeminentes, num estilo exuberante que traz algo de quase operático. E toda a velocidade e coreografia de movimentos, interiores labirínticos do bordel (onde quase toda a acção decorre) e algum grotesco no filmar de grandes planos, nas maquilhagens usadas e escolha de rostos nos lembra o barroco felliniano.
“Filme de Amor e Anarquia” valeu a Giancarlo Giannini o prémio de Melhor Actor em Cannes, e os Nastri d’Argento para Giannini e para Lina Polito, esta como Melhor Nova Actriz. O filme foi mais tarde adaptado ao teatro, com encenação da própria Lina Wertmüller.
O filme de Wertmüller termina com uma citação do célebre anarquista Errico Malatesta: «Quero enfatizar o meu horror por atentados que, mais do que frutos de uma malvadez própria, são estúpidos porque danificam a causa que deveriam servir… Mas aqueles assassinos são também santos e heróis… e serão celebrados no dia em que for esquecido o facto brutal para recordarmos apenas a ideia que os iluminou e o martírio que os sacralizou.»
Produção:
Título original: Film d’amore e d’anarchia, ovvero ‘stamattina alle 10 in via dei Fiori nella nota casa di tolleranza…’ [Título inglês: Love & Anarchy]; Produção: Euro International Film (EIA) / Labrador Films; País: Itália / França; Ano: 1973; Duração: 120 minutos; Estreia: 22 de Fevereiro de 1973 (Itália), 10 de Setembro de 1975 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Lina Wertmüller; Produção: Romano Cardarelli; Argumento: Lina Wertmüller; Música: Nino Rota, Carlo Savina; Fotografia: Giuseppe Rotunno [cor por Technicolor]; Montagem: Franco Fraticelli; Design de Produção: ; Cenários: Emilio Baldelli; Figurinos: Enrico Job; Caracterização: Jole Cecchini.
Elenco:
Giancarlo Giannini (Antonio Soffiantini ‘Tunin’), Mariangela Melato (Salomè), Lina Polito (Tripolina), Eros Pagni (Giacinto Spatoletti), Pina Cei (Madame Aïda), Elena Fiore (Donna Carmela), Giuliana Calandra, Isa Bellini (Zoraide), Isa Danieli (Prostituta), Enrica Bonaccorti (Prostituta), Anna Bonaiuto (Prostituta), Anita Branzanti (Prostituta), Maria Sciacca (Prostituta), Anna Melato (Prostituta), Gea Linchi (Prostituta), Anna Stivala (Prostituta), Josiane Tanzilli (Prostituta), Valeria Piaggio (Prostituta), Franca Salerno, Roberto Herlitzka (Pautasso), Anna Maria Dossena, Mario Nandi, Maria Capparelli, Gianfranco Barra, Luigi Antonio Guerra, Lorenzo Piani.