Etiquetas

, , , , , , , , , , , , , , , , ,

Il gattopardoÉ 1860 e as tropas revolucionárias de Garibaldi desembarcam na Sicília, dispostas a lutar contra a monarquia dos Bourbons, e iniciar a unificação de Itália. Embora na mansão do Príncipe de Salina, Don Fabrizio Corbera (Burt Lancaster), tal seja motivo de preocupação, o seu sobrinho, o romântico Tancredi (Alain Delon) junta-se à rebelião, explicando que é preciso mudar algo para que tudo fique igual. Vencida a luta, a Itália muda. Tancredi volta como militar triunfante, e Don Fabrizio aceita a nova ordem, votando «Sim» no plebiscito que escolhe uma nova monarquia constitucional numa Itália unida, enquanto aprova o noivado entre Tancredi e Angelica (Claudia Cardinale), filha do oportunista Don Calogero (Paolo Stoppa), símbolo da nova ordem.

Análise:

Continuando a sua viagem do Neo-realismo mais espartano para um cinema barroco de contornos épicos e melodramáticos, Luchino Visconti apresentou em 1963 uma das suas obras primas, o drama histórico “O Leopardo”, baseado no livro homónimo de Giuseppe Tomasi, o último Príncipe de Lampedusa (na Sicília). Embora nascido em 1896, portanto mais de três décadas após os eventos descritos no livro, Giuseppe Tomasi de Lampedusa consegue dar à sua obra algo de autobiográfico, pelo menos no que diz respeito às suas posições morais e herança familiar. Segundo consta, foi já em plena Segunda Guerra Mundial, e ao ver a destruição à sua volta, nomeadamente no palacete da família após o desembarque aliado na Sicília, que Giuseppe Tomasi resolveu transformar a sua própria reflexão sobre as mudanças políticas e sociais que testemunhava, no espelho do seu bisavô, Don Giulio, que inspira o protagonista do seu livro. Pouco lembrado é o facto de o próprio Visconti descender de família nobre, sendo duque de Grazzano Visconti e conde de Lonate Pozzolo, e por isso testemunhando em nome próprio essa mudança de regimes e de mentalidades afectando a classe a que pertencia, ele que desde cedo passou a envergar a bandeira dos mais desfavorecidos, assumindo-se marxista e homossexual.

“O Leopardo” conta-nos a história de Don Fabrizio di Corbera (Burt Lancaster), Príncipe de Salina, no momento em que chegam as notícias do desembarque de Giuseppe Garibaldi, para o que seria o início das guerras revolucionárias que levariam à unificação italiana. Fiel ao reino das duas Sicílias, dos Bourbons, Don Fabrizio di Corbera é contagiado pelo sobrinho preferido, Tancredi (Alain Delon) de que o regime está podre e que «às vezes é preciso mudar alguma coisa, para que tudo fique na mesma». Com o desagrado do clero, representado pelo Padre Pirrone (Romolo Valli), da família, representada pela conservadora esposa (Rina Morelli), ou dos velhos servos, representados por Don Ciccio (Serge Reggiani), Tancredi luta ao lado de Garibaldi e vence, com a aprovação silenciosa de Don Fabrizio, o qual não hesita em votar «Sim» no plebiscito que vai escolher a monarquia constitucional de Vittorio Emanuele II, apenas porque é preferível uma nova ordem que uma maior desordem. Como se não bastasse, Don Fabrizio vai aceitar que Tancredi escolha para esposa, a bela Angelica (Claudia Cardinale, com dobragem de voz de Solveyg D’Assunta), filha de Don Calogero (Paolo Stoppa), o representante do oportunismo liberal que ditará a nova ordem.

Parábola política sempre actual, “O Leopardo” fala-nos do chamado «Risorgimento», o período revolucionário liderado pelas tropas de Garibaldi e a política de Cavour, que levou a que o território Italiano, então dividido entre vários estados – alguns dos quais sob domínio estrangeiro (espanhol Bourbon no Reino das duas Sicílias, e austríaco no Reino Lombardo-Vêneto), sem esquecer os Estados Papais no centro, o Reino da Sardenha e vários ducados independentes –, viesse a unificar-se em 1871 sob o reinado de Vittorio Emanuele II. Com os acontecimentos históricos sempre presentes, incluindo-se épicas cenas de batalhas, o filme de Visconti debruça-se principalmente sobre o modo como a família nobre de Don Fabrizio di Corbera, alinhada com o velho regime, escolhe movimentar-se nesse momento conturbado. À boleia do impulsivo e romântico Tancredi, que irá lutar por Garibaldi, Don Fabrizio vai surpreender todos ao acolher o novo regime, não por convicção, mas porque percebe que, nas suas palavras «para que tudo fique igual é necessário que, de tempos a tempos, algo mude.»

Do lado dos lealistas, como Don Ciccio, isto parece uma traição, pois como o próprio diz, mesmo que nada entenda de política, se um dia jurou lealdade à coroa dos Bourbons, essa fica para sempre. Já Don Fabrizio pensa mais longe. Para ele, o essencial e manter aquilo que deseja intemporal, a família, o palácio, o nome, a nobreza. E como ele sabe, os governantes passam, as modas mudam, mas o essencial fica, desde que se saiba jogar com as marés. A nova burguesia em ascensão não pretende destruir a sociedade, apenas usufruir dela, tornando-se uma nova nobreza. Por isso Don Fabrizio assegura o futuro ao sobrinho Tancredi casando-o com a filha de Don Calogero, o representante da nova ordem. Tudo muda, mas tudo fica na mesma, como nos mostra o baile final, onde a nova nobreza se mistura com a antiga sem sabermos mais quem é quem.

É com esses exemplos da sabedoria serena de Don Fabrizio que o filme de Visconti nos vai surpreendendo, e mostrando que também ele é intemporal, repetindo ideias que ainda hoje temos como certíssimas, quase proféticas (como intemporal será o seu comportamento – nos passeios entre moradia de Inverno e de Verão, nos serviços religiosos ao domicílio, nas visitas às amantes, nas caçadas e bailes sumptuosos). Se o velho palácio (com salas intermináveis – sendo que apenas num palácio de que não se conheçam todos os quartos vale a pena viver) representa a velha ordem, note-se como o primeiro acto que vemos ao exército vencedor é quando o general (Giuliano Gemma), vencedor, mas submisso, lhe vem admirar os frescos. Da mesma forma, assim que o novo reino é estabelecido, o novo exército, feito de antigos revolucionários, deixa de vestir de vermelho, e passa a envergar o azul das tropas que derrotou. É assim quando o próprio Don Calogero, que sabemos corrupto (e vemos que manipula o plebiscito para a vitória ser 512-0), se pavoneia e humilha perante Don Fabrizio que ainda tem por moralmente superior. Por fim, é de representantes do velho regime, como o próprio Don Fabrizio, que o novo regime precisa para formar um Senado que seja respeitável. Tudo mudou, para que tudo tenha ficado na mesma. A única coisa que não se mantém é a idade, e é apenas isso que Don Fabrizio inveja na juventude de Tancredi (que ele gostaria de ser) e de Angelica (que ele gostaria de ter), lembranças bem vivas de que afinal algo muda para sempre.

E dessa forma, para além do retrato social e político, Visconti pinta ainda um fresco sobre a passagem do tempo, a melancolia da mudança, o envelhecimento, a forma como tendemos a cair nas mesmas rotinas, mal passa o entusiasmo dos ideais e, claro, a inevitabilidade da morte (a de Don Fabrizio, e a de um mundo em desaparecimento – o da nobreza do leopardo, agora sob assalto do oportunismo dos chacais e hienas). Nesse sentido, mais que testemunhar um período na história de Itália, a obra fala-nos da revolução em termos pessoais, das paixões às desilusões (como a vida sexual de Don Fabrizio, que ele comicamente discute com o padre), à constatação de que nada está ao nosso alcance mudar, tendo nós apenas de aprender a saber viver de acordo com os tempos, mesmo quando isso equivale a deixar viver, assistindo de longe. Por isso, “O Leopardo” é, em grande parte, uma obra contemplativa, um elogio de uma época (os 50 anos de Don Fabrizio, mais que 1860-1870), e um olhar ao mesmo tempo apaixonado e crítico sobre a Sicília, a tal que, segundo o autor – na boca de Don Fabrizio – odeia quem a acorda, mesmo que para a presentar com oferendas.

Com Burt Lancaster a interpretar o nobre e respeitável Príncipe de Salina, num papel para o qual Visconti escolhera inicialmente Nikolay Cherkasov e Laurence Olivier, o que mais marca em “O Leopardo” é a sua grandiosidade cénica, o rigor do design e guarda-roupa, o elaborado trabalho de encenação, os enquadramentos e uso de figurantes, quer em interiores, com o famoso e faustoso baile com o que filme termina, quer nos exteriores, como nas cenas de batalhas, ou travellings pelos campos da Sicília. Filmado durante cinco meses, numa homenagem ao cinema clássico, “O Leopardo” é um hino ao cinema como tradução literária, onde ideias, diálogos e descrições visuais nos são trazidas com interpretações sólidas e uma componente visual incrivelmente elaborada, onde cada plano nos parece uma pintura romântica (note-se, por exemplo, a semelhança entre as batalhas nas ruas e um quadro de Delacroix).

Devido à sua duração, “O Leopardo” passou por diversas montagens, desde uma original de 205 minutos (considerada excessiva pelos produtores) até à de 195 minutos que foi exibida em Cannes, onde o filme recebeu a Palma de Ouro. O próprio Visconti reduziria o filme para cerca de três horas, que foi a versão que teve maior exposição, exibida no circuito comercial. Nos Estados Unidos, uma versão em inglês (onde apenas a voz de Burt Lancaster é a original) foi reduzida para 161 minutos, com a cor convertida para DeLuxe, e o formato para CinemaScope, opções que resultaram numa cópia mais pobre e menos apelativa.

O filme recebeu ainda os Nastri d’Argento para Melhor Filme, Fotografia, Guarda-roupa e Cenografia.

Burt Lancaster e Claudia Cardinale em "O Leopardo" (Il Gattopardo, 1963), de Luchino Visconti

Produção:

Título original: Il Gattopardo; Produção: Titanus / Société Nouvelle Pathé Cinéma / Société Générale de Cinématographie (S.G.C.); Produtor Executivo: Pietro Notarianni; País: Itália / França; Ano: 1963; Duração: 177 minutos; Distribuição: Titanus (Itália), Twentieth Century Fox Film Company (Internacional); Estreia: 27 de Março de 1963 (Itália), 7 de Outubro de 1963 (Portugal).

Equipa técnica:

Realização: Luchino Visconti; Produção: Goffredo Lombardo; Argumento: Suso Cecchi D’Amico, Pasquale Festa Campanile, Enrico Medioli , Massimo Franciosa, Luchino Visconti [baseado no romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa]; Música: Nino Rota; Direcção Musical: Franco Ferrara; Fotografia: Giuseppe Rotunno [filmado em Super Technirama 70, cor por Technicolor]; Montagem: Mario Serandrei; Design de Produção: Mario Garbuglia; Cenários: Giorgio Pes, Laudomia Hercolani; Figurinos: Piero Tosi; Caracterização: Alberto De Rossi; Efeitos Especiais: Dino Galiano; Coreografia: Alberto Testa; Direcção de Produção: Enzo Provenzale, Giorgio Adriani.

Elenco:

Burt Lancaster (Príncipe Don Fabrizio Salina), Claudia Cardinale (Angelica Sedara), Alain Delon (Tancredi Falconeri), Paolo Stoppa (Don Calogero Sedara), Rina Morelli (Princesa Maria Stella Salina), Romolo Valli (Padre Pirrone), Terence Hill [como Mario Girotti] (Conde Cavriaghi), Pierre Clémenti (Francesco Paolo), Lucilla Morlacchi (Concetta), Giuliano Gemma (General de Garibaldi), Ida Galli (Carolina), Ottavia Piccolo (Caterina), Carlo Valenzano (Paolo), Brook Fuller (Pequeno Príncipe), Anna Maria Bottini (Mademoiselle Dombreuil, A Governanta), Lola Braccini (Dona Margherita), Marino Masé (Tutor), Howard Nelson Rubien (Don Diego), Tina Lattanzi (Cozinheira), Marcella Rovena (Camponesa), Rina De Liguoro (Princesa de Presicce), Valerio Ruggeri (Coronel), Giovanni Melisenda (Don Onofrio Rotolo), Giancarlo Lolli, Franco Gulà, Vittorio Duse (Coronel), Vanni Materassi (Sargento), Giuseppe Stagnitti, Carmelo Artale, Olimpia Cavalli (Mariannina), Anna Maria Surdo, Halina Zalewska [como Alina Zalewska], Winni Riva (Criada), Stelvio Rosi (Sargento), Carlo Palmucci, Dante Posani, Rosolino Bua, Ivo Garrani (Coronel Pallavicino), Leslie French (Cavaleiro Chevally), Serge Reggiani (Don Francisco Ciccio Tumeo), Corrado Gaipa (dobragem de voz de Burt Lancaster) [não creditado], Solveyg D’Assunta (dobragem de voz de Claudia Cardinale), [não creditada], Carlo Sabatini (dobragem de voz de Alain Delon) [não creditado], Franco Fabrizi (dobragem de voz de Terence Hill) [não creditado], Pino Colizzi (dobragem de voz de Pierre Clémenti) [não creditado], Lando Buzzanca (dobragem de voz de Serge Reggiani) [não creditado].

Advertisement