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Anna Prucnal, Bernice Stegers, Cinema, Cinema italiano, Comédia, Donatella Damiani, Ettore Manni, Federico Fellini, Jole Silvani, Marcello Mastroianni
Snàporaz (Marcello Mastroianni) acorda na sua viagem de comboio para se sentir seduzido pela mulher (Bernice Stegers) que viaja diante de si. Perseguindo-a até à casa de banho, a sua aventura é abreviada quando o comboio pára numa estação e a mulher sai. Snàporaz decide segui-la, e após perder-se numa floresta vai ter a um hotel, onde decorre um congresso feminista surreal, que o toma como inimigo. Conseguindo escapar, Snàporaz vai refugiar-se em casa do conquistador Dr. Katzone, que glorifica a objectificação sexual da mulher. Só que, nessa noite, ao tentar dormir, Snàporaz vê-se caído num escorrega fantasioso que o leva a percorrer memórias sexuais da adolescência, terminando num julgamento sobre a sua atitude condescendente e arrogante perante o sexo feminino.
Análise:
Entrado na década de 80, e então com 60 anos de vida, Federico Fellini voltava a mostrar estar cada vez mais seguro do seu caminho, mundo e referências circulares, ao realizar “A Cidade das Mulheres”, um filme que aborda de uma forma completamente subjectiva e idiossincrática, a sua relação com o sexo feminino, quase do mesmo modo que o seu “Fellini 8½” (8½, 1960) lidara com a sua relação com o cinema. O mesmo é dizer que, com Marcello Mastroianni no papel de Snàporaz, o alter ego de Fellini, voltamos à atmosfera onírica, como uma viagem louca por um universo de comportamentos, momentos e espaços surreais, dominado pela associação livre, e uma cenografia fantasiada e marcante.
O filme, que começa e termina com a imagem (subliminarmente sexual) de um comboio a penetrar um escuro túnel, mostra-nos Snàporaz (Mastroianni) a dormir no comboio, acordando para ver uma mulher (Bernice Stegers) que o parece seduzir. Uma tentativa frustrada de sexo na casa de banho, leva-o a persegui-la fora do comboio, perdendo-o, e dando por si a deambular numa floresta, até deparar com um hotel onde decorre um congresso feminista. Aí, a sua curiosidade é substituída por temor, quando as mulheres o fazem objecto da sua raiva. Salvo por Donatella (Donatella Damiani), que o leva para um ginásio, onde mulheres patinam à sua volta, e treinam pontapés nos testículos, Snàporaz escapa com a ajuda de uma criada (Jole Silvani). Esta promete levá-lo à estação, para o enganar, e tentar violar numa estufa. Snàporaz é salvo pela chegada da mãe da mulher, que pede a um grupo de raparigas que o levem à estação. Cai a noite, e as raparigas, cada vez mais alteradas por bebida e drogas, começam a ameaçar Snàporaz, que volta a fugir, encontrando uma antiga mansão. Esta pertence ao Dr. Katzone (Ettore Manni), um conquistador à antiga, que odeia as feministas, e recebe Snàporaz como um par. Segue-se uma festa, onde o Dr. Katzone, vangloria a sua fama de conquistador, e se rodeia de convivas, algumas das quais são as feministas que Snàporaz vira antes, como Donatella. Entre os presentes está Elena (Anna Prucnal), esposa de Snàporaz, que logo o começa a repreender. Tudo é interrompido pela chegada da polícia (completamente feminina), que vem anunciar a demolição da casa. Snàporaz é levado para dormir, por duas mulheres nuas que não ficam com ele na cama, e ao ouvir ruídos de debaixo da cama, Snàporaz rasteja até um túnel por onde desliza, num escorrega infindável. Enquanto vai descendo, o cenário vai mudando, e Snàporaz vai vendo cenas do seu passado, nomeadamente mulheres por quem teve interesse romântico ou sexual. O fim da longa descida atira-o para uma jaula, e Snàporaz é levado a um julgamento, onde são lidas as suas acusações. Por fim, Snàporaz é libertado, e desafiado a subir a escada que o leva ao seu desejo, a mulher ideal que sempre se recusou a procurar. Snàporaz sobe e dá consigo num ringue de boxe, onde desce um balão em forma de mulher, para o qual ele sobe. Mas o voo é interrompido por Donatella, que desfaz o balão a tiro. Snàporaz acorda no comboio, em frente de Elena, e vê sentarem-se ao seu lado algumas das mulheres do seu sonho.
Desta vez declarando explicitamente que o seu filme é um sonho (com o protagonista, no final, ao aperceber-se desse facto, a aninhar-se no seu lugar para voltar a sonhar, desprezando a realidade que se senta a seu lado), Fellini dedica-se a explorar as suas limitações, erros, preconceitos, medos e atitudes na sua relação com o sexo feminino, e que são os erros, pecados e vergonhas não assumidas do sexo masculino em geral.
Não deixa de ser curioso, que o filme parta de uma ruidoso e caótico congresso de feminismo, e termine num chorrilho de acusações contra o sexo masculino, tendo sido fortemente atacado pelos movimentos feministas de então que o viam como uma má anedota e desrespeito por esses movimentos. Mas se há alguém em julgamento em “A Cidade das Mulheres” esse alguém é o próprio Fellini, e todo o exagero ou descrição grotesca são simplesmente espelhos daquilo que ele proclama como as suas limitações, anseios e erros.
Numa estrutura bastante mais concisa que o supracitado “Fellini 8½” ou outras viagens oníricas como “Fellini-Satyricon” (1969), “Roma de Fellini” (Roma, 1971) ou “Casanova” (Il Casanova di Federico Fellini, 1976), “A Cidade das Mulheres” é também uma viagem que se divide por diversos espaços, a saber: a aventura que leva à saída do comboio; o congresso feminista; a fuga de moto, quase violação e a viagem para a estação com as raparigas; a chegada à mansão de Katzone e consequente festa; a queda pelo escorrega com reminiscências do passado; o julgamento e a subida no balão. A iniciar e a finalizar temos as cenas do comboio, que mostram que Snàporaz dormia, com uma penetração num túnel a abrir e fechar o filme, na declaração explícita do simbolismo que o percorre.
Temos, acima de tudo, a viagem de um homem através da sua própria psique, no que diz respeito ao modo como vê as mulheres. E aí tudo é mesmo simbolismo, e produto de associação livre de uma mente em desarrumação e busca de algo que não encontra (a mente do Fellini de 60 anos, do aventureiro não assumido). Temos, no comboio, um exemplo de conquista, lascívia e libertinagem, num homem que confessa que o prazer sexual está acima de qualquer fidelidade ou relação séria. Passamos ao citado congresso, que é um carrossel de lugares comuns, ou medos do protagonista, onde as mulheres gritam frases de ordem anti-masculinas como «A penetração é invasão sem defesa» ou «Matrimónio, manicómio», enquanto denunciam a exploração masculina e a incapacidade do homem para compreender as mulheres. Cenas de treino a pontapear testículos, rodas de mulheres em patins que circulam Snàporaz, são simbolismos para aquilo que ele vai desejando sem conseguir: encontrar uma porta para a saída (tema recorrente do filme, e base de muitas frustrações).
Na mansão de Katzone (cujo nome lembra o vernáculo para pénis, em italiano “cazzo”) a simbologia inverte-se, e vemos agora a glorificação do falo, e do machismo. Nela, Snàporaz vai encontrar sons de mulheres, gravados no acto sexual, bem como uma festa de nítida objectificação da mulher, que celebra – com bolo e velas – as conquistas do anfitrião. Tudo termina com a chegada da polícia feminina que matou o cão de Snàporaz, num simbolismo de frustração e castração.
Finalmente, e depois de frustrar uma tentativa de sexo com duas belas mulheres, que nuas o conduzem à cama, Snàporaz, quando tenta dormir (sonho dentro de sonho?) vai ter uma queda, em jeito de montanha russa de um palco da Broadway, no mundo das memórias, onde vê diversas mulheres do seu passado (a criada da sua infância, a varina, a enfermeira das termas, motociclistas de circo, uma mulher espiada na praia, divas do cinema erótico antigo – com uma simulação de uma masturbação colectiva por adolescentes –, uma ida a um bordel), que o leva a uma jaula e julgamento. Aí, num clima festivo (a habitual atmosfera circense de Fellini, onde não faltam imitações de Bucha e Estica) são-lhe lidas as acusações como: não ser capaz de dizer o que ali faz, não encontrar a saída, não saber porque nasceu homem, nunca se ter dado, confiado ou dado prazer sexual a uma mulher, não reconhecer o seu lado feminino, ser culpado de se repetir, da sua auto-indulgência e auto-comiseração, de se calar e falar de mais, de se sentir culpado, de se levar demasiado a sério, ser culpado de não se dedicar a uma só mulher, e principalmente de acreditar que existe a mulher ideal.
A conclusão é sempre a mesma, Snàporaz teme o que mais deseja: a mulher ideal. Não se compromete, não compreende, prefere objectificar e esconder-se atrás de clichés machistas, pois afinal tem e não tem culpa de ter nascido homem. Essa busca é simbolizada na subida a um balão, que mal é atingido é destruído a tiro… por uma mulher, talvez simbolizando que o sonho é inatingível não apenas por culpa do homem.
Mais que tudo, “A Cidade das Mulheres” é tanto um percurso idiossincrático de Fellini (e de Mastroianni, com o protagonista a ser tratado por Marcello, na parte final, no seu mais patético personagem), como um ensaio livre e subjectivo da relação entre os dois sexos, com suficientes espaços em branco para cada espectador preencher com a sua própria experiência pessoal, e uma estrutura solta, de passagens rápidas, personagens caóticos, e um infindável universo de referências onírico-fellinianas, em cenários tão grotescos como coloridos e estimulantes.
Algo derivativo de filmes anteriores, mas ainda assim original, e um perfeito testemunho do modo como Fellini se cita, se usa, e reverencia o seu universo subjectivo, “A Cidade das Mulheres”, não é nunca um filme sobre a complexa natureza feminina, mas sim sobre a incompleta natureza masculina. Embora estreado meses antes, o filme surgiu fora de competição no Festival de Cannes, onde foi aplaudido como mais um trabalho icónico do mestre do onirismo italiano.
Produção:
Título original: La città delle donne; Produção: Opera Film Produzione / Gaumont; País: Itália / França; Ano: 1980; Duração: 139 minutos; Distribuição: Gaumont Italia ((Itália), Gaumont (França), Artificial Eye (Reino Unido), New Yorker Films (EUA); Estreia: 28 de Março de 1980 (Itália), 15 de Maio de 1981 (Cinema Londres, Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Federico Fellini; Produção: Franco Rossellini, Renzo Rossellini, Daniel Toscan du Plantier; Argumento: Federico Fellini, Bernardino Zapponi, Brunello Rondi; História: Federico Fellini, Bernardino Zapponi; Música: Luis Bacalov, Mary Francolao (Música adicional); Direcção Musical: Gianfranco Plenizio; Fotografia: Giuseppe Rotunno [cor por Eastmancolor]; Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de Produção: Dante Ferretti; Direcção Artística: Giorgio Giovannini; Cenários: Bruno Cesari, Carlo Gervasi; Figurinos: Gabriella Pescucci, Piatelli (Guarda-roupa de Marcello Mastroianni); Caracterização: Rino Carboni; Efeitos Especiais: Adriano Pischiutta; Efeitos Visuais: Charlotte Quemy; Coreografia: Leonetta Bentivoglio; Direcção de Produção: Francesco Orefici.
Elenco:
Marcello Mastroianni (Snàporaz), Anna Prucnal (Elena, A Esposa), Bernice Stegers (Mulher no Comboio), Jole Silvani (Motociclista), Donatella Damiani (Donatella, Patinadora), Ettore Manni (Dr. Xavier Katzone), Fiammetta Baralla (Oliver Hardy), Hélène Calzarelli (Feminista), Catherine Carrel (Comandante), Marcello Di Falco (Escravo), Silvana Fusacchia (Patinadora), Gabriella Giorgelli (Varina de San Leo), Dominique Labourier (Feminista), Stéphane Emilfork (Feminista), Sylvie Matton (Feminista), Meerberger Nahyr, Sibilla Sedat (Juíza), Katren Gebelein (Enderbreith Small), Alessandra Panelli (Doméstica), Nadia Vasil (Feminista), Loredana Solfizi (Feminista Negra), Fiorella Molinari (Punk), Rosaria Tafuri (Bailarina), Sylvie Wacrenier (Feminista, Carla Terlizzi (Conquista do Dr. Katzone), Jill Lucas, Vivian Lucas.