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Cinema, Cinema italiano, Drama, Gérard Depardieu, Marco Ferreri, Michel Piccoli, Ornella Muti
Gérard (Gerard Dépardieu) é um engenheiro civil, em crise de existência depois da separação da mulher Gabrielle (Zouzou), que o deixou a cuidar sozinho do filho Pierrot, de nove meses. Um dia, Gérard leva para casa a bela Valérie (Ornella Muti), professora do infantário de Pierrot, e os dois começam uma relação física, que não têm a certeza de onde querem levar. Gérard é possessivo, e orgulhoso da sua masculinidade, tanto temendo que Valérie se instale e mude a sua vida, como que ela parta e ele volte a ficar só. Já Valérie, é romântica e quer, acima de tudo, afecto e alguém que se preocupe com ela.
Análise:
Três anos depois do controverso filme “A Grande Farra” (La Grande Bouffe), e com um outro filme de permeio, Marco Ferreri, continuando as co-produções que envolviam dinheiros, técnicos e actores italianos e franceses, realizava mais um filme polémico. Tratava-se de “A Última Mulher”, no qual o autor, a partir de uma ideia escrita por si, questiona o papel da masculinidade nos anos 70, não se coibindo de exibir nudez frontal masculina e sexo quase explícito, num filme cru e amargo da primeira à última cena.
“A Última Mulher” é a história de Gérard (Gérard Depardieu, Giovanni na versão italiana), um engenheiro civil em crise de identidade, depois de deixado pela esposa Gabrielle (Zouzou) e com um filho de menos de um ano de quem cuidar. Um dia, ao conhecer a professora do infantário do filho, a bela Valérie/Valeria (Ornella Muti) leva-a consigo para casa, e os dois iniciam uma relação física. Resta saber o que fazer com isso, pois Valérie é romântica e fantasia ter um homem que a faça sentir bem-vinda, enquanto Gérard preza a independência. Mas quando Valérie começa a desconfiar que o egoísmo de Gérard a fará sempre sentir-se a mais, e procura sair, ele acusa-a de não querer compromisso. A partir daí a dinâmica do casal passa sempre por cada um a tentar impor-se ao outro. Gérard usando o sexo como forma de dominação, Valérie queixando-se de que ele não se preocupa em satisfazê-la. De incompreensão em incompreensão a distância entre os dois parece crescer, por mais que procurem afogar as mágoas fisicamente. Sem compreender o papel da sua masculinidade, Gérard, em desespero acaba por se castrar com uma faca eléctrica de cozinha.
Cru, cruel, brusco, tudo isto é o filme de Marco Ferreri, e, em simultâneo o retrato do seu protagonista. O impulsivo Gérard é um homem dos anos 70, em plena revolução sexual feminina, e esse é o tema que serve de pano de fundo ao filme, mesmo que apenas brevemente mencionado. Como resposta à libertação feminina, Gérard surge-nos nu durante grande parte do filme, quase nos esfregando na cara o símbolo da sua masculinidade, como o faz literalmente à sua companheira nalgumas cenas. Esta é mais jovem e inexperiente (por isso ainda com idade para sonhar e não para ter memórias, como referido a dada altura), e vê Gérard como uma curiosidade que a leva a trocar o paternalista Michel (Michel Picoli), por este engenheiro, com um filho, e uma personalidade imprevisível. Mas cedo, como Gabrielle (a esposa de Gérard, que surge uma vez por semana para estar com o filho) lhe diz, Gérard é egoísta e nunca se preocupará com mais nada que consigo próprio.
As dinâmicas caseiras (e quase todo o filme se passa em casa, tirando alguns breves momentos de exteriores, que nos mostram paisagens frias e desoladas em jeito de Antonioni) revolvem então em torno da desconfiança sentida entre os dois amantes. Gérard não quer dizer que precisa de Valérie, rejeita-a a todo o momento, e ressente-se de qualquer sinal de que ela possa sair. É desconfiado, ciumento, possessivo e bruto, usando o sexo como arma, procurando-o mesmo fora de casa, por alívio e necessidade de sentimento de superioridade. Válerie, apaixonada por Gérard, e em crescente instinto maternal (pelo filho de Gérard e mesmo por ele) ressente-se de que ele não procure satisfazê-la, e ameaça deixá-lo várias vezes, encontrando sempre a barreira de um homem que não entende a linguagem dela, e se perde em jogos de prepotência, atirando todas as culpas para o que acha ser a incompreensão da mulher moderna.
Quer nas palavras, quer nos confrontos, e quer mesmo na linguagem visual e corporal usada, “A Última Mulher” é um exemplo típico da famosa “guerra dos sexos” (até na partilha dos afectos do pequeno bebé), com a nudez de Depardieu (nu durante quase todo o tempo) a ser arma explícita de Ferreri sobre o que é o cerne do seu filme. É a masculinidade, acima de tudo, que Gérard sente em causa (como o mostram as várias conversas com o seu filho ao qual fala no “direito de ter um pénis” como o último reduto dos direitos masculinos), e todos os seus conflitos vêm de não compreender os desejos femininos sob outra óptica que não seja o fim da sociedade patriarcal. No permanente distanciamento do casal, que apenas se parece encontrar no sexo, há quase que uma aproximação de Ferreri à incomunicabilidade de Antonioni, com soluções provindas de Bertolucci.
Fálico (em toda a simbologia, dos chouriços que se vão cortando, ao canhão oferecido ao filho) e chocante pelas cenas de nudez e sexo (algumas com um bebé quase de permeio) – onde não falta uma simulação de sexo oral com um preservativo na boca de Muti e uma cena de masturbação –, à brutal crueza (mesmo física) de Depardieu, Ferreri responde com a sensualidade delicada de Ornella Muti, então no auge da sua beleza. O filme não deixa de ser comovente pela frontalidade sincera dos personagens, e condição humana de incapacidade, contendo algumas cenas de um doce improviso entre o casal nu, em cumplicidade com o pequeno Pierrot/Piero. O final sangrento e macabro é como que um anúncio da morte da masculinidade, que Ferreri brande com a mesma crueza que matara o seu elenco no filme “A Grande Farra”, respondendo com um filme que mata essa masculinidade àqueles que o acusavam de misoginia.
Produção:
Título original: La dernière femme/L’ultima donna; Produção: Flaminia Produzioni Cinematografiche / Les Productions Jacques Roitfeld; Produtores Executivos: Gian Maria Avetta; País: França / Itália; Ano: 1976; Duração: 108 minutos; Distribuição: Fida Cinematografica (Itália). Columbia Pictures (EUA); Estreia: 21 de Abril de 1976 (França).
Equipa técnica:
Realização: Marco Ferreri; Produção: Edmondo Amati; Produtor Associado: ; Argumento: Marco Ferreri, Rafael Azcona, Dante Matelli [a partir de uma história de Marco Ferreri]; Música: Philippe Sarde; Canção “Lisboa Antiga”: José Galhardo, Raúl Portela; Direcção Musical: Hubert Rostaing; Fotografia: Luciano Tovoli [cor por Eastmancolor]; Montagem: Enzo Meniconi; Design de Produção: Michel de Broin; Figurinos: Gitt Magrini; Caracterização: Alfonso Gola; Direcção de Produção: Roberto Giussani, Maurizio Amati.
Elenco:
Gérard Depardieu (Gerard/Giovanni), Ornella Muti (Valérie/Valeria), Michel Piccoli (Michel/Michele), Renato Salvatori (Rene/Renato), Giuliana Calandra (Benoite/Benedetta), Zouzou (Gabrielle/Gabriella), Nathalie Baye (A Rapariga das Cerejas), Solange Skyden (A Funcionária do Bengaleiro do Night Club), Carole Perle (Amiga de Gabrielle), Daniela Silverio (A Amiga ‘Marilyn’ de Michel), Vittorio Ganfoni (O Polícia com os Cães), Guerrino Totis (O Chileno), David Biggani (Pierrot/Piero).