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Andréa Ferréol, Cinema, Cinema italiano, Drama, Marcello Mastroianni, Marco Ferreri, Michel Piccoli, Philippe Noiret, Surrealismo, Ugo Tognazzi
Quatro homens de classe média-alta, bem posicionados na sociedade, um aviador (Marcello Mastroiani), um cozinheiro (Ugo Tognazzi), um ex-bailarino e produtor de televisão (Michel Piccoli) e um juiz (Philippe Noiret), reúnem-se na mansão de campo de um deles, com um único objectivo, deixarem que a sua gula os domine, comendo todas as iguarias que conseguirem, nem que isso leve à sua morte. Esse retiro é depois complementado com sexo, com a chegada de algumas prostitutas e da professora local, Andrea (Andréa Ferréol), que desde logo adere aos ideais do grupo, numa orgia de excessos, decadência e hedonismo sem regras.
Análise:
Tendo começado a sua carreira de realizador em Espanha, o milanês Marco Ferreri estabeleceu-se na sua natal Itália nos anos 60, onde se tornaria notado por uma obra que, fruto do seu tempo, não temia em transgredir, chocar e ultrapassar as fronteiras do chamado bom gosto convencional. Exemplo cabal disso é o seu filme de 1973, “A Grande Farra”, numa co-produção italo-francesa, que contaria com actores famosos de ambos os lados dos Alpes.
A história, se de história se pode falar, conta-se brevemente. Quatro amigos, pessoas bem colocadas na sociedade, e de invejável reputação, retiram-se para a mansão desocupada de um deles, para se entregarem a um fetiche que é a suprema indulgência que podem conceber, e uma espécie de retiro da sua vida real: comer até não poderem mais. Eles são um aviador (Marcello Mastroiani), um cozinheiro (Ugo Tognazzi), um ex-bailarino e produtor de televisão (Michel Piccoli) e um juiz (Philippe Noiret). Cedo vão sentir a falta de mulheres, e Marcello traz três prostitutas, a que se junta a professora primária Andrea (Andréa Ferréol), que vai ficar com eles até ao fim. Por entre conversas inconsequentes, sexo e um total abandono das suas inibições, os quatro amigos vão mantendo um ritmo violento de ingestão de iguarias, que não páram de chegar e ser cozinhadas, até que, um por um, vão morrendo, e sendo comidos pelos que vão ficando.
Numa espécie de culto do hedonismo, que é, em simultâneo, uma crítica do consumismo e de crise de valores, e retrato grotesco dos excessos da decadente classe burguesa, “A Grande Farra” é uma espécie de crónica anunciada de auto-destruição, que cai do nada, sem que nenhuma explicação seja dada (nem necessária) para compreendermos a motivação dos quatro amigos. Começamos por vê-los nas suas actividades habituais, todos eles cidadãos exemplares, bem estabelecidos. Embora lhes possamos adivinhar carências afectivas ou desajustes sociais, nada fará prever que, quando decidem encontrar-se para um retiro na casa de campo de um deles, o objectivo seja essa auto-destruição.
O ambiente é sempre jovial, alegre e positivo, com as conversas banais a reverterem no cumprimento de desejos, desde os mais normais pecados de gula, até à necessidade de sexo, passando pelo afecto que leva a que Philippe (todos os protagonistas têm o nome próprio do actor que os interpreta) peça Andrea em casamento, mesmo que depois aceite partilhá-la sexualmente com os outros.
Mas, mais que explicações filosóficas ou psicológicas, “A Grande Farra” é, sobretudo, um festim visual, desde o quase gótico da mansão (ricamente decorada até ao ínfimo pormenor), às descrições de iguarias, desfile de pratos e de corpos nus. É óbvia intenção de Ferreri captar-nos para um mundo de grotesco (dos ataques aerofágicos de alguns personagens ao sexo público que não se coíbem de ter, não esquecendo as maneiras porcas à mesa), onde a constante ingestão de comida nos transporta para uma certa irrealidade, de onde as três prostitutas, ao deixarem a cena mais cedo, são as únicas a salvarem-se.
Com esse tour de force que é o enredo de Ferreri, associado à brilhante prestação dos protagonistas, que conseguem dar substância a papéis que, em actores menores seriam unidimensionalmente caricaturais, “A Grande Farra” é um filme repleto de simbolismo e discussões filosóficas, com um humor subtilmente absurdo (de fazer lembrar Buñuel), mas que não deixa de chocar e fazer-nos interrogar sobre os caminhos da sociedade ocidental, dada a alienações, excessos, hedonismo e muita (e por vezes pouco menos que criminosa) auto-indulgência, num cenário claustrofóbico de que nenhum dos protagonistas vai conseguir sair.
Filmando com longos planos-sequência numa atmosfera quase onírica, com “A Grande Farra” Ferreri conseguia um filme de reputado valor artístico, que se tornaria em breve objecto de culto, mesmo que chocando nos principais mercados, o que lhe valeu repetidas censuras e uma menor penetração, no que diz respeito ao circuito comercial.
Produção:
Título original: La Grande Bouffe/La grande abbufatta; Produção: Films 66 / Mara Films / Capitolina Produzioni Cinematografiche; Produtores Executivos: ; País: Itália / França; Ano: 1973; Duração: 112 minutos; Distribuição: Fida Cinematografica (Itália); Estreia: 21 de Maio de 1973 (Festival de Cannes, França), 22 de Maio de 1973 (França).
Equipa técnica:
Realização: Marco Ferreri; Produção: Vincent Malle; Produtor Delegado: Jean-Pierre Rassam; Argumento: Marco Ferreri, Rafael Azcona; Diálogos: Francis Blanche; Música: Philippe Sarde; Direcção Musical: Hubert Rostaing; Fotografia: Mario Vulpiani [cor por Eastmancolor]; Montagem: Claudine Merlin, Gina Pignier; Design de Produção: Michel de Broin; Direcção Artística: ; Cenários: Claude Suné; Figurinos: Gitt Magrini; Caracterização: Jacky Bouban, Alfonso Gola; Efeitos Especiais: Paul Trielli; Direcção de Produção: Alain Coiffier.
Elenco:
Marcello Mastroianni (Marcello), Michel Piccoli (Michel), Philippe Noiret (Philippe), Ugo Tognazzi (Ugo), Andréa Ferréol (Andrea), Solange Blondeau (Danielle), Florence Giorgetti (Anne), Michèle Alexandre (Nicole), Monique Chaumette (Madeleine), Henri Piccoli (Hector), Maurice Dorléac, Simon Tchao (Delegado da Embaixada Chinesa), Louis Navarre (Braguti), Bernard Menez (Pierre), Cordelia Piccoli (Barbara), Jérôme Richard, Patricia Milochevitch (Mini), James Campbell (Zack), Eva Simonet (A Secretária).