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Bernardo Bertolucci, Burt Lancaster, Cinema, Cinema italiano, Dominique Sanda, Donald Sutherland, Drama, Filme de época, Gérard Depardieu, Laura Betti, Robert De Niro, Stefania Casini, Stefania Sandrelli, Sterling Hayden, Werner Bruhns
Em 25 de Abril de 1945, com o fim do regime de Mussolini, o povo pega em armas para se vingar dos antigos patrões, entre os quais se encontra a família Berlinghieri. Voltando atrás no tempo assistimos ao nascimento quase simultâneo de Alfredo Berlinghieri (Robert De Niro) e Olmo Dalcò (Gérard Depardieu). O primeiro será o patrão de uma família da aristocracia rural da Emília-Romagna, e o segundo liderará os pobres camponeses, explorados pelos senhores da região. Tal não os impede de, ao crescer juntos, se tornarem amigos, numa amizade que vai do crescimento aos primeiros amores e desilusões, mesmo que ela nem sempre seja sinónimo de compreensão, num mundo onde patrões e camponeses estão sempre em conflito, sob o peso do fascismo, aqui representado pelo sádico capataz Attila (Donald Sutherland).
Análise:
Deixando o cinema mais vanguardista de alguns dos seus filmes anteriores, Bernardo Bertolucci fazia, em “1900” (cujo título original, “Novecento”, significa “Século XX”), uma homenagem ao cinema clássico que era também homenagem ao povo italiano do seu século, na Emília-Romagna, e ao despertar de uma consciência social que vinha marcando a Itália do pós-guerra e da qual o realizador desde sempre se mostrou adepto, mais concretamente da ascensão do comunismo nas suas origens rurais e populares.
Talvez para marcar essa posição de forma indelével, o filme começa com o 25 de Abril de 1945, o dia da liberdade em Itália, que marca o fim da era de Mussolini. Com esse anúncio surgem os primeiros gritos pelo comunismo, e a revanche que leva à perseguição dos fascistas que massacraram o povo durante décadas. Sem qualquer contexto ainda, descobrimos o destino de Attila (Donald Sutherland) e Regina (Laura Betti), e vemos o patrão Alfredo (Robert De Niro) ser confrontado com a rebeldia juvenil que lhe traz lembranças da sua, sobretudo quando o rapaz que o persegue se auto-intitula Olmo, o nome do seu melhor amigo, e confronto de toda uma vida. Tudo isso acontece no estábulo onde Alfredo recorda que morreram o seu pai e o seu avô, motivo para encetarmos uma viagem no tempo e conhecermos a sua família.
A história começa no dia da morte de Verdi, com os nascimentos quase simultâneos dos netos de Leo Dalcò (Sterling Hayden) e de Alfredo Berlinghieri (Burt Lancaster), o primeiro empregado do segundo, mas dois patriarcas respeitados, cada um na sua classe. Os netos são Olmo e Alfredo, rivais, amigos e por fim herdeiros dos destinos das famílias. Já adultos, Olmo (Gérard Depardieu) é educado como socialista, e acaba por ir lutar na Primeira Guerra Mundial, enquanto Alfredo (Robert De Niro), é ilibado de tal tarefa pelo pai, Giovanni, que entretanto contrata para capataz o sádico Attila (Donald Sutherland). Quando os rapazes se voltam a encontrar, a amizade recomeça, mas algo é já diferente, pois Olmo assume a luta do seu povo, maltratado e explorado, enquanto Alfredo vai ignorando as diferenças com impassividade, mesmo depois de o pai morrer, e Attila, já fascinado com o ideal fascista, usar a sua nova força política para maltratar ainda mais os camponeses.
Mas é juntos que Alfredo e Olmo passam pelas várias etapas da vida, chegando a partilhar uma mulher, e por fim conhecendo Ada (Dominique Sanda), musa inspiradora do tio de Alfredo, espírito rebelde e moderno, com quem Alfredo virá a casar, enquanto Olmo casará com Anita (Stefania Sandrelli), namorada de infância, professora que tenta educar os pobres, e que morrerá ao dar à luz. A chegada de uma mulher da cidade traz consequências, pois Ada odeia os métodos de Attila (que virá a causar a morte da viúva Pioppi, e de um pequeno rapaz), e ressente-se da impassividade do marido, procurando refúgio em casa de Olmo, o que aumenta o fosso entre os dois amigos, num momento em que as greves, perseguições ao comunismo, e expropriação de casas quando a mão-de-obra diminui de valor, eram motivos de lutas sociais violentas nas terras dos Berlinghieri
Muitos mais são os episódios que ficam por contar, num filme épico de mais de cinco horas, que é manifestamente um retrato da luta de classes que descreve um momento da história de Itália. Poder-se-ia resumir, historicamente, o filme como o nascimento do ideal socialista italiano, a partir das desigualdades sociais e luta dos camponeses na primeira metade do século XX. Bertolucci nunca esconde de que lado está, nem qual o propósito do seu filme, que se inicia com uma longa exposição do quadro «O Quarto Estado» de Giuseppe Pellizza da Volpedo, que nos parece fazer regressar ao tempo de “As Vinhas de Ira” de John Steinbeck. Com uma forte dicotomia, Bertolucci representa os camponeses como humildes, bondosos, sofrendo injustamente, enquanto os patrões são arrogantes, distantes, ambiciosos, e quando muito (como acontece com Alfredo), ausentes, fechando convenientemente os olhos à injustiça. Chega depois o fascismo (representado por Attila), cruel, sádico, como o cão de guarda (dito expressamente) dos patrões, pronto a aniquilar qualquer foco de resistência, mesmo quando despreza os patrões que vê apenas como garantes da ordem, mas moralmente inferiores aos verdadeiros fascistas. A esperança vai-se fazendo ouvir no canto da Internacional, e nos toques a reunir dos camponeses, nos momentos mais difíceis, onde a camaradagem está acima de tudo.
No campo pessoal as diferenças são ainda mais claras. Olmo, que se tornará herói da resistência, cresce consciente do socialismo (é um socialista de bolsos rotos, como já grita em criança), assume as lutas da sua classe, e dispõe-se a sofrer por elas (como o mostra a cena do martírio, pela falsa acusação do assassínio de um menino). Casa por amor com uma namorada de infância, e vê como ela se empenha na luta para educar o povo. Já Alfredo, deixa-se fascinar pela força de Olmo, que tenta imitar, foge para brincar com ele e declara-se socialista, sem saber o que isso é, apenas por piada. Evita a guerra porque o seu pai paga para o livrar, e casa com Ada porque esta é um objecto excêntrico que ele nunca tentará compreender, por fim fecha os olhos à maldade de Attila e sofrimento do seu povo, deixando que a crueldade do fascismo dite regras, sem que ele mova um dedo até ser demasiado tarde.
Mas “1900” é muito mais, fazendo uso da sua longa duração, da música comovente de Ennio Morricone, e da fantástica fotografia de Vittorio Storaro, o filme é um quase um documentário, que nos deixa pairar sobre um outro mundo, que filma com tempo, demorando-se nas cenas mais nostálgicas e planos gerais, parando para traçar quadros dos campos, das condições de vida, dos rituais sazonais dos agricultores, num espírito bem neo-realista, onde não faltam as danças e cantares tradicionais, e por vezes as imagens parecem captadas sem que os personagens saibam que estão a ser filmados. Num ritmo solene, mas sempre vívido, Bertolucci intercala na perfeição a languidez dos campos e momentos quase documentais com a acção e o drama dos protagonistas, fazendo conviver um neo-realismo quase académico com uma abordagem épica e altamente encenada. Mais uma vez, o realizador mostra como usa com mestria a a caracterização de espaços, tempos, momentos para crispar tensões e sentimentos.
Usando um elenco internacional (ainda que se possa sempre discutir o peso das dobragens) que inclui Robert De Niro (admiravelmente vulnerável, complexo, quase sempre perdido nas suas intenções), Gérard Depardieu (contemplativo, contido, como uma força da natureza que ainda não descobriu o seu poder), Dominique Sanda (intempestiva e complexa), Donald Sutherland (deliciosamente sádico), Burt Lancaster e Sterling Hayden (ambos como figuras bíblicas e majestosas de um tempo já desaparecido), “1900” destaca-se também pelas interpretações, com espaço para que todos possam brilhar, mesmo que os retratos de Attila e Regina possam ser demasiado caricaturais (algo que os actores conseguiram transformar em seu favor). O filme é um portento (com mais de 12 mil figurantes) que não deixa ninguém indiferente, seja pelos dramas familiares seja pelo retrato social, seja ainda pela beleza estética com que Bertolucci reconstrói a Itália depauperada e em estilhaços do tempo do fascismo.
Dada a sua longa duração foi decidido que “1900” seria exibido em duas partes, o que tem vindo a acontecer em muitos países, enquanto foi imediatamente negociada uma versão mais curta para ser exibida pela Paramount nos Estados Unidos. Embora Bertolucci tenha feito questão de presidir às duas montagens, outras viriam a surgir, com durações diferentes, sendo hoje ponto assente que a mais longa, de 5 horas e 17 minutos é aquela que melhor traduz a ideia do autor, sendo a que tem sido usada nas reedições em formatos de venda.
Como curiosidade, destaque-se a presença no elenco do conhecido produtor português Paulo Branco, no papel de Orso Dalcò.
Produção:
Título original: Novecento; Produção: PEA – Produzioni Europee Associate / Les Productions Artistes Associes S.A. / Artemis Film GMBH; País: Itália, França, RFA; Ano: 1976; Duração: 317 minutos; Distribuição: 20th Century Fox Italia (Itália), Paramount Pictures (EUA) / Les Artistes Associés (França) / United Artists (RFA); Estreia: 21 May 1976 (Festival de Cannes, França), 1 de Setembro de 1976 (França).
Equipa técnica:
Realização: Bernardo Bertolucci; Produção: Alberto Grimaldi; Argumento: Franco Arcalli, Giuseppe Bertolucci, Bernardo Bertolucci [a partir]; Música: Ennio Morricone; Fotografia: Vittorio Storaro [cor por Technicolor]; Montagem: Franco Arcalli; Design de Produção: Gianni Quaranta; Direcção Artística: Ezio Frigerio; Cenários: Maria Paola Maino; Figurinos: Gitt Magrini; Caracterização: Giannetto De Rossi; Direcção de Produção: Paolo De Andreis.
Elenco:
Robert De Niro (Alfredo Berlinghieri), Gérard Depardieu (Olmo Dalcò), Dominique Sanda (Ada Fiastri Paulhan), Burt Lancaster (Alfredo Berlinghieri, Avô), Donald Sutherland (Attila Mellanchini), Stefania Sandrelli (Anita Foschi), Francesca Bertini (Irmã Desolata), Laura Betti (Regina), Werner Bruhns (Ottavio Berlinghieri), Stefania Casini (Neve, Mulher Epiléptica), Sterling Hayden (Leo Dalcò), Anna Henkel-Grönemeyer (Anita em Criança), Ellen Schwiers (Amelia), Alida Valli (Senhora Pioppi), Romolo Valli (Giovanni Berlinghieri), Bianca Magliacca (Camponesa), Giacomo Rizzo (Rigoletto), Pippo Campanini (Don Tarcisio), Paolo Pavesi (Alfredo em Criança), Roberto Maccanti (Olmo em Criança), Antonio Piovanelli (Turo Dalcò), Paulo Branco (Orso Dalcò), Liù Bosisio (Nella Dalcò), Maria Monti (Rosina Dalcò), Anna Maria Gherardi (Eleonora), Demesio Lusardi (Montanaro, Camponês Orelhudo), Pietro Longari Ponzoni (Pioppi), Angelo Pellegrino (Alfaiate), José Quaglio (Aranzini), Clara Colosimo (Mulher que Acusa Olmo), Mario Meniconi, Carlotta Barilli (Camponesa), Odoardo Dall’aglio (Oreste Dalcò), Piero Vida, Vittorio Fanfoni (Fanfoni, Um Fascista), Alessandro Bosio (Fascista), Sergio Serafini (Jovem Fascista), Patrizia De Clara (Stella), Edda Ferronao (Filha de Stella), Winni Riva (Camponês Parisiense), Fabio Garriba (Camponês na Execução de Attila), Nazzareno Natale (Camponês na Execução de Attila), Katerina Kosak (Camponesa Parisiense), Ferruccio Amendola (dobragem de voz de Robert De Niro), Claudio Camaso [como Claudio Volonté] (dobragem de voz de Gérard Depardieu), Antonio Guidi (dobragem de voz de Donald Sutherland), Renato Mori (dobragem de voz de Sterling Hayden), Giuseppe Rinaldi (dobragem de voz de: Burt Lancaster), Rita Savagnone (dobragem de voz de Dominique Sanda).
Um grande filme épico, provavelmente o melhor de Bertolucci. Filme extremamente político com fascistas e comunistas em conflito em terras italianas.
Este tipo de cinema já não existe porque já ninguém consegue fazer algo tão grandioso (hoje para as coisas parecerem grandiosas fazem-se umas palhaçadas em CGI).
Devido à sua longa duração o filme foi exibido em duas partes (como é mencionado nesta resenha), formato esse que, anos mais tarde, Sergio Leone também queria adotar no seu filme “Era uma vez na América”. Infelizmente nunca aconteceu.
Lembro-me de, nos tempos áureos dos videoclubes, ver o “Era uma vez na América” em duas cassetes, e por isso mais caro que um filme de tamanho “normal”. Mesmo assim, foi como o vi pela primeira vez.
Sim, eu também aluguei essa caixa com duas cassetes. Havia outros filmes que também estavam em caixas duplas (Ben-Hur, Jesus de Nazaré (de Franco Zefirelli).
Mas essa versão VHS tinha duração de cerca de 235 minutos. Hoje em Itália há uma versão DVD um pouco mais longa de 240 minutos (recuperaram algumas cenas importantes em inglês que nunca foram dobradas em italiano).
Mas a ideia inicial de Leone era fazer um filme entre 5 a 6 horas (à semelhança de “1900”) mas não foi possível. Segundo consta, até havia material suficiente para umas 8 horas mas obviamente não era exequível ter um filme dessa duração nem essa questão alguma vez foi colocada.