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Anouk Aimée, Barbara Steele, Cinema, Cinema italiano, Claudia Cardinale, Drama, Federico Fellini, Filme sobre Cinema, Madeleine Lebeau, Marcello Mastroianni, Rossella Falk, Sandra Milo
Guido (Marcello Mastroianni) é um realizador de cinema que se encontra num bloqueio criativo. Para se recompor de mente e corpo, Guido retira-se para uma estância termal. Mas mesmo aí as solicitações não param. Dos produtores à imprensa, da sua equipa técnica a actores em busca de um papel, todos gravitam à sua volta, ávidos de saber mais do novo projecto. Enquanto se tenta esquivar, Guido vai rever a sua vida, motivações e memórias, num entrelaçar de sonho, fantasia e realidade, enquanto vê as pessoas do seu passado e presente (familiares, amigos, amantes, colegas) surgirem como sonhos e pesadelos que não lhe dão um momento de paz.
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Análise:
Se “A Doce Vida” (La Dolce Vita, 1960) fora, para Fellini, o filme em que quebrara definitivamente com a estrutura narrativa convencional, para se deixar guiar pela não-linearidade, numa construção em que a sua subjectividade pessoal ditava ritmos, ligações, comportamentos e episódios, o seu filme seguinte era a confirmação desse caminho de exploração de um universo pessoal, que fugia a qualquer convenção ou categorização. Essa foi a via que “Fellini 8½” viria demonstrar, mesmo que se saiba hoje que nada foi fácil ou óbvio ao realizador nessa mesma via, ela própria feita de tormentos, hesitações e muita insegurança pessoal. Este, que seria o seu oitavo filme e meio (considerando as sete longas-metragens anteriores, e o episódio “Le tentazioni del dottor Antonio” no filme colectivo “Boccacio 70”, de 1962), era um momento de bloqueio para Fellini, que se interrogava sobre que caminhos seguir, sobre a sua própria inspiração, e sobre o processo de produção de um filme. E depois de se perder nestas questões e as sentir tolher-lhe o caminho, Fellini fez o que hoje parece normal, mas na altura foi inovador, pegou nessas dúvidas sobre a construção de uma obra, e tornou-as filme, contrapondo-o com todos os seus bloqueios pessoais, e formas idiossincráticas de ver a sua vida e realidade em torno.
Partindo de um preocupante bloqueio criativo, o qual nos é desde logo literalmente mostrado na muito imitada cena do engarrafamento de tráfego, na abertura de “Fellini 8½”, Guido (Marcello Mastroiani, alter ego de Fellini) retira-se para uma estância termal, onde supostamente irá descansar, longe das solicitações do seu trabalho, imprensa e conhecidos. Aí poderá pensar calmamente no seu próximo filme. Mas logo tal se irá revelar impossível, pois na mesma estância deambulam amigos, produtores, assistentes, actores, e até a sua amante (Sandra Milo). Toda a experiência, cada vez mais caótica e extenuante, se torna para Guido uma sucessão de confrontos com memórias do seu passado, fantasias inusitadas, em que reinventa factos a seu bel-prazer (como o curioso transformar mulheres da sua vida em elementos do seu harém), sonhos indesejados (por exemplo o enterrar do pai), e a pressão de todos os que querem saber mais sobre o filme. Por entre tormentas, verdadeiras ou imaginadas, Guido manobra por recorrentes indecisões e inacções, num acumular de tensões, intensificadas com a chegada da esposa (Anouk Aimée, com dobragem de voz de Renata Marini).
Abandonando a construção lógica, “Fellini 8½” espanta (e choca, quem não está preparado para o filme) por ser criatividade, loucura, sonho, conflito, memória, onde, mais que situações, lugares, pessoas e comportamentos concretos, temos a projecção e interpretação que o protagonista (que é como quem diz, o próprio Fellini) faz deles. O olhar para a mente conturbada de Guido traduz-se num carrossel de cenários, como as torres metálicas do seu filme, os corredores do hotel, as termas e a paisagem em torno, que servem de fundos que se desdobram sem relação entre si ou com os episódios que acolhem. Há sempre algo de irreal, teatral e circense nos personagens, uso da música (sempre Nino Rota), cenários e luz (por vezes apenas focos de holofotes), na fotografia de tons saturados, que ilustra mundo interior onde a fantasia, a caricatura, o grotesco e o onírico freudiano, estão de mãos dadas com as preocupações e desejos mais convencionais.
Sonho, fantasia e realidade misturam-se desordenadamente, coincidindo com episódios do filme adiado de Guido. Discute-se o papel do argumento (alguma vez ele faz filmes com um tema?), do produtor (perder dinheiro), da relação com actores e família (os pais, as memórias de antigas escapadas eróticas), com o público e as autoridades (na presença do olho censório da Igreja), e claro, com as mulheres. Para além da esposa e da amante, temos a fantasia (Claudia Cardinale), a consciência (Rossella Falk), as actrizes estrangeiras (Barbara Steele e Madeleine Lebeau, com dobragem de voz de Deddi Savagnone) e a curiosidade de infância (Eddra Gale). Tudo num assumir do egocentrismo desmesurado do autor, que confessa não ter nada para dizer, mas ainda assim precisar de o dizer.
Hoje, como então, ver “Fellini 8½” é (re)descobrir um caminho único, de poesia feita cinema, onde este é uma linguagem pura, desobedecendo à convencional lógica das palavras, livre das relações habituais com teatro e literatura. É assistir a uma obra que, para lá da assinatura de autor, nos conta uma história de complexidade humana, num elogio da subjectividade do autor, que coloca a sua paisagem interior e os defeitos pessoais como aquilo que nos distingue, num egocentrismo sem temor que se torna o principal tema a explorar, feito de qualidades, defeitos… e muitas mentiras, onde surrealismo e realidade são duas faces da mesma moeda.
É a ideia de que a nossa vida é um palco, e de que todos os que por ela desfilam são os nossos personagens, mesmo que fantasiados e alterados pela nossa percepção, numa festa onde o indivíduo é o protagonista (note-se como tantos personagens quebram a quarta parede, para um olhar directo ao autor). E é do assumir desta festa que resulta um dos finais mais originais, bem conseguidos e marcantes da história do cinema, numa verdadeira festa do indivíduo, que ninguém consegue descrever como Fellini.
“Fellini 8½” tornou-se um dos mais celebrados e distintivos filmes de Federico Fellini, valendo-lhe a nomeação para o Óscar de Melhor Realizador, e o seu terceiro Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Texto adaptado da crítica escrita para a Take Cinema Magazine a 4 de Abril de 2016.
Produção:
Título original: 8½ (Otto e mezzo); Produção: Cineriz / Francinex; País: Itália; Ano: 1963; Duração: 133 minutos; Distribuição: Columbia (França), Gala Film Distributors (Reino Unido), Embassy Pictures (EUA); Estreia: 13 de Fevereiro de 1963 (Itália), 24 de Fevereiro de 1964 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Federico Fellini; Produção: Angelo Rizzoli; Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano; História: Federico Fellini, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano, Brunello Rondi; Música: Nino Rota; Direcção Musical: ; Fotografia: Gianni Di Venanzo [preto e branco]; Montagem: Leo Catozzo; Design de Produção: Piero Gherardi; Cenários: Vito Anzalone; Figurinos: Piero Gherardi, Leonor Fini [não creditada]; Caracterização: Otello Fava; Efeitos Especiais: ; Efeitos Visuais: ; Direcção de Produção: Clemente Fracassi.
Elenco:
Marcello Mastroianni (Guido Anselmi), Claudia Cardinale (Claudia), Anouk Aimée (Luisa Anselmi), Sandra Milo (Carla), Rossella Falk (Rossella), Barbara Steele (Gloria Morin), Madeleine Lebeau (Madeleine, A Actriz Francesa), Caterina Boratto (A Senhora Misteriosa), Eddra Gale (La Saraghina), Guido Alberti (Pace, O Produtor), Mario Conocchia (Conocchia, O Sirector de Produção), Bruno Agostini (Bruno, O Segundo Secretário de Produção), Cesarino Miceli Picardi (Cesarino, O Inspector de Produção), Jean Rougeul (Carini, O Crítico de Cinema), Mario Pisu (Mario Mezzabotta), Yvonne Casadei (Jacqueline Bonbon), Ian Dallas (O Companheiro da Telepata), Mino Doro (O Empresário de Claudia), Nadia Sanders [como Nadine Sanders] (Nadine, A Hospedeira), Georgia Simmons (A Avó de Guido), Edy Vessel [como Hedy Vessel) (A Modelo), Tito Masini (O Cardeal), Annie Gorassini (A Amiga do Produtor), Rossella Como (Uma Amiga de Luisa), Mark Herron (O Pretendente de Luisa), Marisa Colomber (Uma Tia de Guido), Neil Robinson (O Empresário da Actriz Francesa), Elisabetta Catalano (Matilde, A Irmã de Luisa), Eugene Walter (O Jornalista Americano), Hazel Rogers (A Mulata), Gilda Dahlberg (A Esposa do Jornalista Americano), Mario Tarchetti (Secretário de Imprensa de Claudia), Mary Indovino (A Telepata), Frazier Rippy (O Secretário Laico), Francesco Rigamonti (Um Amigo de Luisa), Giulio Paradisi (Um Amigo), Marco Gemini (Guido Criança), Giuditta Rissone (Mãe Guido), Annibale Ninchi (Pai Guido)