Texto escrito originalmente
em Filmin.pt

Numa era em que os estímulos só captam o interesse se forem mais rápidos, mais ruidosos e mais coloridos, em que os limiares de atenção se tornam mais reduzidos, em que o conceito de fast-food se generaliza a quase tudo, em que somos dominados pela lógica opressiva da publicidade, videoclips, redes sociais e estrelas do Youtube, onde tudo o que exceder um certo tempo ou número de caracteres é ignorado, é quase paradoxal pensar que, insurgindo-se contra isto, reeducando-nos no gosto pelo classicismo dos planos demorados e definição lânguida de personagens, esteja a obra de um jovem que ainda não chegou aos 30 anos, viciado em música pop, consumidor inveterado de moda, e utilizador compulsivo de redes sociais como o Twitter e o Instagram.
Ele é Xavier Dolan, produto dos tempos acelerados de hoje e das solicitações pós-modernas que nos moldam o quotidiano e nos desafiam a identidade, mas alguém que conhece como poucos a importância fundamental de um plano, o significado do tempo, o papel da imagem, a elaboração estética e o diálogo, no construir de personagens, momentos, tensões e emoções.
Actor canadiano que enfrentou os ecrãs ainda criança, para logo perceber que era no cinema que queria desenvolver a sua vida, Dolan tornou-se realizador (além de produtor) aos dezanove anos, com o filme Como Matei a Minha Mãe, que lhe valeu uma ovação de oito minutos em Cannes. E aí percebeu-se, desde logo, aquilo que seria uma constante na sua (ainda curta) carreira. Como um verdadeiro autor, à luz de Ingmar Bergman, Federico Fellini, ou Woody Allen, Dolan privilegiava o seu espaço interior, narrando as suas preocupações, construindo personagens que podemos reconhecer de filme para filme como fazendo parte de um universo próprio, onde a subjectividade do autor é lenha para o fogo que a riqueza individual dos personagens faz arder.

Essa é uma das primeiras ilações que se tiram de assistirmos aos seis primeiros filmes de Dolan. São filmes em que, assumidamente, o autor fala da sua experiência, através de personagens que sentem como ele, que usam os seus diálogos e idiossincrasias, e que pertencem a um mesmo universo. É claro que nem todos os personagens nascem da experiência pessoal do seu criador, que, como o próprio diz, nunca passou por transições de género (Laurence para Sempre), nunca conviveu com um jovem com problemas psiquiátricos (Mamã), e nunca esteve sequestrado por ninguém (Tom na Quinta). Mas, nas suas preocupações e formas de se expressar, há muito de autobiográfico neste conjunto de filmes, o que confere uma enorme unidade (para não dizer honestidade) à sua obra.
Partindo da sua própria experiência, Xavier Dolan fala-nos de pessoas que sentimos imediatamente serem reais. São pessoas imperfeitas, que buscam algo, que agem por tentativa e erro, que mostram defeitos inultrapassáveis, que vivem numa raiva interior que não encontra meio de expressão, que têm dificuldade em comunicar com quem lhes está próximo, mas que não têm menos sonhos e desejos, ou necessidade de serem felizes que nós. São pessoas que sentem a solidão de viverem numa sociedade que não os compreende ou aceita, não por serem melhores ou piores, mas porque, por vezes, anseiam ser diferentes. São pessoas que sabem à partida que a solução pode ser inalcançável, mas que nem por isso continuarão a tentar.

Como temas base, encontramos em Dolan a descoberta e afirmação de sexualidade como traços que definem um trajecto pessoal (Laurence Para Sempre, Amores Imaginários); a tensão das relações familiares, nessa afirmação de sexualidade (Tom na Quinta, Tão só o Fim do Mundo); e o peso da figura maternal na evolução do carácter dos seus protagonistas (Como Matei a Minha Mãe, Mamã). Como pano de fundo está o seu Quebec natal, o Canadá francófono, cosmopolita, aparentemente evoluído, mas ao mesmo tempo ainda retrógrado e, por vezes, assustadoramente tradicionalista. Isto sem fazer dessas pessoas figuras metafóricas que utilizam as suas condições pessoais como cruzadas políticas ou sociais, como aquelas de que o cinema de Hollywood tanto gosta.
Tudo isto é filmado com um cunho pessoal que nos surpreende. Como dito no início do texto, Xavier Dolan não deixa de ser um produto do seu tempo, imerso na meta-sociedade de redes sociais, tecnologias de informação e precariedade de significados e significantes sob a velocidade consumista com que tudo é triturado. Observador introvertido do que o rodeia, Dolan é o exemplo de como tudo o que pensamos ser defeito pode ser uma força, e de como todas as correntes que imaginamos poderem matar o cinema o podem renovar. Assim sendo, Dolan usa o mundo instantâneo da moda para definir a fotografia do seu cinema, seja do simbolismo visual evocativo de Paul Thomas Anderson à construção grandiosa dos planos de Stanley Kubrick, Xavier Dolan vale-se do poder da imagem para moldar momentos e estados de espírito, em histórias tensas e claustrofóbicas que podiam ter sido escritas por Tennessee Williams, sejam elas filmadas com uma handycam que segue intrusivamente os personagens para espaços exíguos, usando a velocidade da montagem solta de um documentário ou de videoclip, ou desacelerando num demorado ralenti para nos esmagar com a beleza de um plano que podia ser uma pintura.

Do design de figurinos, o qual Dolan assume sempre, e que usa como ponto de partida para definir os seus protagonistas, à paleta de cores sempre propositada, onde a modernidade e o vintage dão mãos, tudo nas imagens de Dolan é pensado criteriosamente, ajudando a definir ritmos, atmosferas e personagens. E o melhor que se pode dizer é que é que todos estes ingredientes servem a história e as emoções, nunca se sentindo que são um mero exercício de estilo.
Com apenas 28 anos, e seis obras de autor já apresentadas, Xavier Dolan espanta-nos pela sua honestidade intelectual, profundidade do seu olhar, frescura estética, e uma enorme maturidade ao trazer-nos histórias e pessoas que ultrapassam em muito a mediania da actual ficção, e se revelam tão ímpares quanto reais.

Ciclo “Xavier Dolan”
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