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Bert Roach, Cinema, Cinema Mudo, Drama, Eleanor Boardman, James Murray, King Vidor
Nascido a 4 de Julho, tudo parece augurar um futuro grandioso a John Sims (James Murray). Mas a morte prematura do seu pai, e o realismo da vida levam-no a trabalhar, anos mais tarde, como um anónimo contabilista sem esperanças num enorme edifício de uma qualquer gigante companhia da desumana Nova Iorque. Apesar de tudo, John caminha feliz, e o enamoramento e casamento com Mary (Eleanor Boardman) não podia ser mais idílico. Mas a vida vai triturando as melhores intenções, e cedo o quotidiano do casal é causa de aborrecimento e dissensões, que o nascimento dos filhos vem mitigar temporariamente. Só que a tragédia derruba finalmente as defesas de John, que se vê sem emprego nem objectivos, em breve sem saber já porque luta, e o quanto pode ainda perder.
Análise:
Depois do grande sucesso obtido com “A Grande Parada” (The Big Parade, 1925), King Vidor, então já um realizador com longa carreira, sentiu-se à vontade para exigir uma certa liberdade criativa para levar a cabo um projecto de natureza bem mais pessoal. Tal foi o filme “A Multidão”, nascido de uma ideia sua, que encontrou receptividade da parte de Irving Thalberg, mesmo que Louis B. Mayer desconfiasse de se estar a lidar com um tema pouco comercial, o que valeria sucessivos atrasos na estreia.
O tema é o do sonho americano, e de todas as desilusões de que ele não fala, na pessoa de John Sims (James Murray), nascido a 4 de Julho, sob auspícios de uma vida grandiosa. Aos poucos essas ilusões desvanecem-se, John vê o pai morrer cedo, e muda-se para Nova Iorque para tentar triunfar, acabando como mais um rosto anónimo numa companhia impessoal. Mas o jovem John continua com ambições, e sonhos, e estes resplandecem quando conhece Mary (Eleanor Boardman), a mulher por quem se apaixona e com quem casa depois de um romance idílico. Só que o amor infinito prometido por John desvanece-se na rotina pobre dos dias, e o casal quase rompe, até Mary confessar que está grávida, o que leva John a dar uma segunda oportunidade ao casamento. Os anos passam e pouco muda. John não consegue melhorar a sua situação, o que lhe vale a desconfiança da família da esposa, e quando a tragédia bate à porta, levando um dos filhos do casal, John colapsa, despedindo-se e caindo numa apatia que não o deixa conseguir novos empregos e põe em risco o seu casamento.
Curioso que, um ano antes do crash da bolsa de Nova Iorque, que viria a abalar o sistema económico e a confiança dos norte-americanos no seu país, Vidor desse ao mundo um filme que traçava uma previsão do que seria um mundo de privações, onde o factor humano se deixava dilacerar nas malhas de um sistema desumano, onde as pessoas contam apenas como números. Nesse sentido, “A Multidão” é quase que uma uma prequela do que Chaplin faria em “Tempos Modernos” (Modern Times, 1936), um filme no mesmo tom amargo que surgiu como uma reacção a esse mesmo crash. Sintomático é, desde logo, o título, onde «multidão» representa a impessoalidade social dos formigueiros humanos, nos quais somos um anónimo número, e cujo movimento é tão cego e repetitivo que não deixa margem para diversidade, como John descobrirá quando tenta inverter o rumo.
Na história de John Sims, Vidor conta-nos uma história de joviais sonhos de infância (note-se como uma das primeiras cenas nos mostra as crianças a dizerem o que querem ser «quando forem grandes»), e a forma como eles não se concretizam. Começando em tom alegre, e um John Sims que é alguém com quem facilmente simpatizamos – ponderado, humano, divertido, – “A Multidão” vai passando por todas as fases da sua vida, alongando-se no enamoramento e início do casamento, de modo a fazer-nos sentir enorme empatia pelo casal, para logo de seguida nos mostrar como essa relação que parecia ter tudo para ser perfeita, descarrila, sem que se saiba bem porquê, apenas porque o peso do quotidiano tritura as melhores intenções.
É logo aí que começa a residir a grandeza de “A Multidão”. Sem se preocupar em definir uma história de padrões geralmente aceites, Vidor dá-nos um casal definido com realismo, onde encontramos jovialidade e alegria no início (note-se a espontaneidade dos gestos, dos carinhos, da relação física, muito acima do seu tempo), e amargura e dor no passar dos anos, sem que sejam necessárias grandes explicações ou dramatismos, para que entendamos aquilo por que os protagonista estão a passar. A decisão de filmar com actores pouco (ou nada) conhecidos, foi mais um triunfo para Vidor, que consegue um filme fortíssimo, com interpretações frescas, e sem prisões a estereótipos.
Depois há todo o lado estético, que fez alguns verem o filme como experimentalista. Atente-se na sequência da chegada a Nova Iorque, com os múltiplos planos de multidões (muitas vezes filmadas com câmaras escondidas, sem licença) comportando-se como rebanhos bem comportados (mais uma vez Chaplin levaria o símbolo à letra), para subirmos na imponência do arranha-céus onde John trabalha, e conhecermos o seu interior avassaladoramente grande e esmagador, num plano imitado por Billy Wilder em “O Apartamento” (The Apartment, 1960). São, por um lado, as dissolvências que elicitam os paralelos que funcionam como comentários, é ainda a montagem de imagens contrastantes que lembra a teoria de montagem soviética, são os complexos movimentos de câmara, com planos picados e travellings imaginativos, é o uso de maquetas para a criação da ilusão de paisagens extensas que permitam os tais movimentos de câmara; é ainda a estética herdeira de Murnau na definição de interiores, com uma geometria evocativa do expressionismo alemão (note-se, a título de exemplo, os cenários do hospital onde John espera a notícia do nascimento do seu primeiro filho).
A isto junta-se toda a dinâmica do casal John-Mary, nas coreografias do interior do seu apartamento (onde um curioso sistema de economia de espaço nos mostra uma cama que se esconde na parede, e armários que surgem do nada), onde os ritmos – tanto os da rotina quotidiana, como os do definhar do casal – nos chegam num aumento de uma claustrofobia que nos cria desconforto, tal o crescendo de intensidade dramática e realismo de cada momento.
Como se não bastasse todo o negrume do tema de “A Multidão”, Vidor insistia num final em aberto, que não tranquilizava a MGM. A produtora pediu-lhe finais diferentes e foram tentados nove, dos quais, um (mostrando a família alegremente è volta de uma árvore de Natal) foi enviado aos cinemas como alternativa ao do realizador. Segundo Vidor, os cinemas raramente o passavam, preferindo o seu, que se tornaria um dos finais mais emblemáticos do cinema de Hollywood. Nele, depois de vermos mais uma tentativa de reconciliação do casal, sucumbindo à emoção onde a razão não lhes permitia mais viver juntos, uma elipse coloca-nos num teatro onde John e Mary (e toda a plateia) riem esfuziantemente. Com a câmara de frente para o público, afastando-se para abrir um plano geral, Vidor parece dizer-nos que somos nós o espectáculo de que quem os seus personagens agora riem, numa completa inversão de papéis entre público e obra, que parece indicar que fomos sempre nós, e não os seus actores, os verdadeiros personagens da tragédia de vida que ele acabou de contar.
Final bem mais triste teve o actor James Murray, que caiu no alcoolismo e acabou como pedinte nas ruas. Vidor reencontrou-o mais tarde e ofereceu-lhe imediatamente um papel num regresso ao cinema, mas Murray recusou por não querer ser alvo da sua pena. A sua morte por afogamento foi atribuída a um possível suicídio.
“A Multidão” teria um sucesso moderado, sendo bem recebido pela crítica, para a qual o estatuto do filme se tem cimentado com os anos. Recebeu ainda nomeações para o Oscar de Melhor Realizador e de Melhor Filme (então «Best Unique and Artistic Production», um Oscar só atribuído uma vez), que perderia para “Aurora” (Sunrise: A Song of Two Humans, 1927) de F. W. Murnau.
Produção:
Título original: The Crowd; Produção: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM); País: EUA; Ano: 1928; Duração: 103 minutos; Distribuição: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM); Estreia: 18 de Fevereiro de 1928 (EUA), 18 de Fevereiro de 1930 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: King Vidor; Produção: Irving Thalberg [não creditado]; Argumento: King Vidor, John V.A. Weaver [adaptado por Harry Behn a partir de uma ideia de King Vidor]; Intertítulos: Joseph Farnham; Fotografia: Henry Sharp [preto e branco]; Montagem: Hugh Wynn; Cenários: Cedric Gibbons, A. Arnold Gillespie; Guarda-roupa: André-ani.
Elenco:
Eleanor Boardman (Mary Sims), James Murray (John Sims), Bert Roach (Bert), Estelle Clark (Jane), Daniel Tomlinson (Jim), Dell Henderson (Dick), Lucy Beaumont (Mãe), Freddie Burke Frederick (Junior Sims), Alice Mildred Puter (Filha Sims).