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Depois de Woody Allen, Alfred Hitchcock, Martin Scorsese e Ingmar Bergman, inicia-se n’A Janela Encantada mais uma integral dedicada a um grande nome do cinema mundial: Federico Fellini. Esta decorrerá às quartas-feiras, quinzenalmente, abarcando todas as longas-metragens do autor italiano. O primeiro filme surgirá mais logo. Até lá, ficamos com o texto introdutório, da autoria de Jorge Saraiva.
Texto de Jorge Saraiva
O termo «felliniano» entrou no vocabulário comum tal kafkiano ou orwelliano quando nos referimos a situações absurdas e inexplicáveis, ou a um controlo desmesurado e totalitário da vida privada das pessoas, respectivamente. No caso de Fellini aplica-se o termo a pessoas ou a situações bizarras que fogem completamente ao padrão que entendemos por normal.
Este termo faz algum sentido. Sem ser exaustivo, lembramo-nos de personagens como a vendedora de cigarros de “Amarcord”, o cineasta sem filme de “8 1/2” , a rapariga meio tonta de “A Estrada”, ou toda a colecção de personagens que desfilam num programa feminino de “Ginger e Fred”. Mas se faz algum sentido, também se pode considerar perigoso, porque pode pressupor que o cinema de Federico Fellini se resume ao desfile de personagens e situações insólitas. Embora elas existam, não são o elemento central da sua obra.
Fellini teve uma carreira longa e irregular, mas que nunca caiu na mediocridade ou na banalidade. Começou naturalmente pelo Neo-realismo, a corrente dominante do cinema italiano da década de 50, embora os seus filmes já revelem o grau de heterodoxia que caracterizariam a sua carreira posterior. Se “A Estrada” é o filme emblemático deste período, “As Noites da Cabíria”, e “Os Inúteis” são igualmente notáveis. A ruptura com a estética neo-realista acontece com “A Doce Vida” e prolonga-se com a obra prima absoluta “8 1/2”, provavelmente a reflexão mais genial feita em cinema sobre o processo criativo e a angústia que a sua ausência provoca. A partir daí, se há uma estética e um modo de produção e de realização que se vão mantendo constantes e claramente identificáveis, os seus temas vão sendo cada vez mais diversificados, do experimentalismo clássico de “Satyricon”, ao quase terror de “Julieta dos Espíritos”, passando pelo pseudo-documentário de Roma. Em todos eles, perpassa uma ironia fina, muitas vezes apenas implícita, mas frequentemente impiedosa e directa. Essa mesma ironia viria a revelar-se em todo o seu esplendor em “Amarcord”, a sua obra mais popular, de cariz autobiográfico que remete para a sua pequena cidade das costas do Adriático. Mas o sucesso internacional de Amarcord não o levou, ao contrário de muitos outros, a fazer concessões ou a abrir-se para um cinema mais comercial. A década de 80 demonstra-o amplamente, sobretudo através de filmes como “O Navio” e “Ginger e Fred” que facilmente emparceiram entre os seus melhores.
Aparentemente, Fellini tinha uma forma anárquica de filmar, dando, tal como Jean Renoir, uma grande liberdade de improvisação aos seus actores. Parece que as filmagens decorriam de forma desordenada, sem método e com grande boa disposição, catalisada pela personalidade extrovertida do cineasta. Sem nunca ter sido um maníaco dos pormenores como Luchino Visconti, os seus filmes revelam um inesperado cuidado em todas as suas fases. Gostaria de destacar em particular o trabalho de Nino Rota, talvez o melhor compositor da história do cinema e o excelente trabalho de direcção de actores onde Marcello Mastroianni brilhou a grande altura, em diversas fases da sua carreira, do jovem sedutor de “A Doce Vida”, até ao velho nostálgico de “Ginger e Fred”, passando pelo homem recalcado de meia idade de “A Cidade das Mulheres”.
Sei que é um lugar comum, mas não é possível imaginar a história do cinema sem Federico Fellini. E isto diz tudo sobre a sua importância.