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Cinema, Dean Stockwell, Drama, Drama familiar, Eggene O'Neill, Jason Robards, Katharine Hepburn, Ralph Richardson, Sidney Lumet
Numa peça assumidamente autobiográfica, Eugene O’Neill dá-nos da ver um dia da problemática família Tyrone. Esta é composta por um pai, James (Ralph Richardson), outrora actor consagrado, que não aceita o seu declínio. Uma mãe, Mary (Katharine Hepburn), constantemente alienada, que vive no passado, e tem problemas com drogas. Um filho mais velho, Jamie (Jason Robards), que combate com álcool os erros e frustrações da sua vida. E e um filho mais novo, Edmund (Dean Stockwell), um escritor sensível, e orgulho de todos, mas com a notícia de que talvez sofra de tuberculose.
Análise:
Com a chancela da independente Embassy Pictures, Sidney Lumet filmou, em Nova Iorque, a peça de Eugene O’Neill “Long Day’s Journey into Night”, com a curiosidade de não ter alterado uma vírgula ao texto original, filmado de um só fôlego, depois de três semanas de ensaios como no teatro. Tratava-se de uma peça póstuma (O’Neill morrera em 1953), publicada e estreada em 1956, cuja apresentação na Broadway lhe valera um prémio Tony, e que se percebia ser fortemente autobiográfica.
A história passa-se em 1912, e acompanha um dia da família Tyrone. James (Ralph Richardson) é um actor outrora consagrado, agora a viver com dificuldade o afastamento dos palcos, tratando todos com uma forretice doentia. A sua esposa, Mary (Katharine Hepburn), que há 36 anos deixou os seus dois sonhos (ser freira ou ser pianista de concerto), para casar com ele, atravessa uma depressão crónica que a faz entregar-se às drogas e a refugiar-se em alienações de passados perfeitos. O filho mais velho, Jamie (Jason Robards), vive uma vida desregrada, de frustração, em que se considera um falhado aos olhos dos pais, que lamentam a sua entrega à bebida. Por fim, o filho mais novo, Edmund (Dean Stockwell), é um poeta e escritor sensível, o orgulho de todos, que secretamente o culpam pela queda da família, e agora têm de lidar com a notícia de que ele talvez sofra de tuberculose.
Com a acção a decorrer num só dia (de manhã até meio da noite seguinte), Lumet decidiu filmar a peça, tal qual está escrita, fazendo apenas uma cedência: os espaços. Assim, os seus personagens movem-se pelas diferentes salas, saem para a rua, caminham enquanto falam, ou solitariamente (por vezes em pequenos interlúdios sem palavras), para retirar o constrangimento do palco e tornar a experiência mais cinemática. Tal é também conseguido com uma complexa cadeia de plano/contra-plano, com apertados zooms e close-ups a juntarem-se às panorâmicas de interiores e exteriores e planos sequência de enorme duração.
Também por isso se sente uma evolução de um clima de paz e harmonia pela manhã, com idílicas paisagens, para o ambiente cada vez mais fechado e escuro dos interiores, onde, para finalizar, se junta o som fantasmagórico de uma sirene de nevoeiro. Esse sentimento de clausura é também reforçado pelo elenco, com apenas quatro actores (cinco se contarmos algumas breves presenças da criada), dos quais Jason Robards repetia o papel dos palcos, que de minuto a minuto vão demonstrando cada vez mais impaciência, irritação e raiva uns pelos outros.
Esse clima de crescente tensão surge quase do nada, sem que o esperemos, numa família aparentemente amigável, mas onde vamos percebendo que o peso de agruras passadas já faz com que cada palavra seja medida e cada tom de voz seja sempre interpretado como uma acusação. Todos os pares são testados, e entre todos há conflito. James e Mary, que começam por conversar da noite mal dormida porque ele ressona, cedo passam a acusações mútuas, ele porque ela se aliena nas drogas, ela porque ele já não é quem antes foi, e agora bebe por tudo e por nada. Ambos se ressentem dos problemas com a bebida e vida falhada de Jamie, culpando-se mutuamente por isso, enquanto ele os acusa, à mãe pelas drogas, ao pai por querer fazer dele uma sua cópia nos palcos. Jamie mostra várias vezes adorar o irmão Edmund, acabando por lhe confessar que também o odeia por o achar responsável pela mudança no comportamento da mãe, ao mesmo tempo que tenta ser o pior possível, para Edmund vencer sempre por comparação. Por fim, Edmund ressente-se que o pai não queira pagar-lhe os tratamentos, e que a mãe não aceite a sua doença, numa contínua negação da realidade.
Começando de modo civilizado, com as preocupações a surgirem de forma quase envergonhada, elas tornam-se acusações numa contínua escalada de tom, em que todos já evitam todos, e se ressentem de opções passadas feitas por outrem (por exemplo na história que Mary conta à empregada sobre a sua juventude). Todos os diálogos se tornam batalhas em que cada um tem sempre argumentos para colocar nos outros a causa das suas falhas, numa constante fuga em frente, como se por cada acusação feita e provada, houvesse mais uma descoberta a fazer, e uma forma de ela ser alienada.
Com longos (por vezes quase exagerados) monólogos e diálogos, o filme é feito de confrontos entre todas as combinações possíveis dos quatro protagonistas, com cada um a ter espaço de sobra para ser cândido, agressivo, amedrontado ou acusador. Katharine Hepburn consegue mais uma vez uma prestação notável como a alienada e dramática matriarca, contrastando com o pateticamente aristocrático personagem de Ralph Richardson. Jason Robards (num papel que Marlon Brando terá rejeitado) é visceral e cruelmente intenso, como poucas vezes foi em cinema, enquanto o então jovem Dean Stockwell (que se estreou no cinema com 9 anos), consegue um personagem sensível, mas forte.
Embora sem o impacto de um filme de uma distribuidora maior, “Longa Viagem para a Noite” permanece como um dos melhores casos de uma peça de teatro passada ao cinema, com diálogos e interpretações que são muitas vezes usadas como exemplo entre cineastas e actores. Também por esse motivo, a peça de O’Neill já foi adaptada diversas vezes a televisão.
Produção:
Título original: Long Day’s Journey into Night; Produção: First Company; Produtores Executivos: Jack J. Dreyfus Jr., Joseph E. Levine; País: ; Ano: 1962; Duração: 171 minutos; Distribuição: Embassy Pictures; Estreia: Maio de 1962 (Cannes Film Festival, França), (9 de Outubro de 1962, EUA).
Equipa técnica:
Realização: Sidney Lumet; Produção: Ely A. Landau; Produtor Associado: ; Argumento: Eugene O’Neill [directamente da peça de teatro do mesmo nome]; Música: André Previn; Fotografia: Boris Kaufman [preto e branco]; Montagem: Ralph Rosenblum; Design de Produção: Richard Sylbert; Cenários: Gene Callahan; Figurinos: Sophie Devine [como Motley]; Caracterização: Herman Buchman; Direcção de Produção: George Justin.
Elenco:
Katharine Hepburn (Mary Tyrone), Ralph Richardson (James Tyrone), Jason Robards (Jamie Tyrone), Dean Stockwell (Edmund Tyrone), Jeanne Barr (Kathleen).